Deve-se recomeçar a ladeira desde o início, deve-se tentar de novo, fracassar de novo, fracassar melhor. Por Biblioteca Popular Eduardo Martedí

[Nota do tradutor: O seguinte texto foi originalmente publicado na revista Dialéktica, nº 27, 2016, na segunda entrega do dossier que a revista produziu sobre a esquerda autônoma argentina. Mais do que uma simples apresentação do espaço de militância da biblioteca, o texto provoca e polemiza com esta própria esquerda autônoma da qual faz parte.]

el tiempo me moldeó
me puso en un lugar
y de ahí no me fui
y es que yo soy así,
nunca hice mucho por cambiar

y hoy amanecí
otro fracaso más
(Pez)

Somos parte de um espaço da política que já não existe. Um emergente do fracasso. Nossa orfandade prática é coerente com a ausência de enquadramentos teóricos que nos expliquem em que mundo vivemos e como deveríamos transformá-lo. Temos a práxis, claro, mas da derrota: já não apenas a dos anos 70, somados a esse fracasso colossal que foram os socialismos reais, epitáfio da modernização burguesa pela via socialista, senão também a que veio com a restituição da hegemonia das classes dominantes depois de 2003 [N.T.: início do governo de Nestor Kirchner]. Devemos voltar a começar.

Para muita gente isto é inaceitável, por isso seguem vigentes, e cada vez mais populares, o trotskismo, o guevarismo, e também, por que não, o autonomismo: cristalizações burocráticas do que alguma vez foram impulsos revolucionários. “A emancipação dos trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores”, belíssima frase marxiana que nós lemos nas páginas da revista Dialéktica. No entanto, nos perguntamos, e aqui reside boa parte da tragédia de nossa época: qual é nossa tarefa se aqueles que deveriam ser os protagonistas da revolução estão dia após dia mais conformados com esse mundo? Como atuamos ao ver que aqueles trabalhadores que, sim, se mobilizam pela abolição dos mecanismos de exploração, o fazem a partir de velhos e azeitados aparelhos burocráticos que, quando não colaboraram (e a conjugação verbal pode muito bem ser lida também no presente), não puderam senão fracassar nessa tarefa? Que fazemos se nós mesmos não buscamos mais do que guarda-chuvas, amparos teóricos, alienação na prática frenética?

Eduardo Martedí disse em algum lugar:

[Nahuel] Moreno, didaticamente, refletia sobre o que eu tento usar para outro caso: “você pode ter uma explicação para cada ocasião na qual chega tarde a uma reunião: em um caso o ônibus demorou, em outro o relógio ficou sem bateria e em outros não escutou o despertador, acabou a luz ou perdeu as chaves. Pode ter uma justificação para cada caso, defendendo sua coerência e formalidade. Mas se está acostumado a chegar sempre tarde, pela totalidade de sua conduta, minha conclusão é que você é um lumpen“. Com esse mesmo critério, simplificando, poderíamos dizer: “Você (a classe operária) fracassou dezenas de vezes durante os últimos 150 anos; posso explicar cada caso mas minha conclusão é que você é incapaz de superar a burguesia”. Não colocar essa hipótese é negar-se a resolver o problema. A “explicação” trotskista da “crise da condução revolucionária” não é assim: supõe que a solução é externa à classe, que vem de fora dela; ou seja, mais que uma explicação é uma confirmação da incapacidade intrínseca da classe operária para trilhar seu caminho e construir seu Estado-Maior; também é uma confirmação da capacidade superior da burguesia para o exercício de sua dominação. (aqui para a íntegra)

Nem um milhão de votos para a FIT [N.T.: Frente de Izquierda y de los Trabajadores, encabeçada por três partidos trotskistas – referência às eleições legislativas de 2013] nem fazer malabarismo na Sala Alberdi [N.T.: espaço ocupado e autogerido dentro do Centro Cultural San Martin – estatal – que foi despejado por Macri em 2013] nos permitem compreender a magnitude da nossa tarefa. A desordem intrínseca do capitalismo, sua dinâmica sempre disposta a acomodar-se e conservar-se, revolucionando-se, nos leva a insistir em construir uma ética, uma política, uma cultura própria que supere os dualismos, as tradições conservadoras, que respeite a diversidade e multiplicidade das lutas, mas que possa dizer, aqui e ali, sua política, seus limites, sua própria ética, sua aspiração. Hoje a intempérie parece ser o único projeto revolucionário.

Refúgio

Tendência recorrente a enxergar-se como mero edifício, como um fetiche, talvez não se possa vislumbrar o trabalho militante construído até o dia de hoje, principalmente quando a esquerda autônoma renunciou às micro-tomadas de poder. Seremos, então, uma versão pequena, paródica, do entrismo? Seremos mera caricatura da queda da Bastilha? Talvez. Deve-se lembrar o seguinte: que fomos um grupo político, de percursos múltiplos, que esteve em diáspora entre 2006 e 2009, ano no qual decidimos que podíamos, queríamos e que era desejável ter um lugar físico. Um teto para minha militância! E não o “ocupamos”: militamos este lugar com uma paciência zen. Frente à épica de ocupar-um-lugar-e-lutar-com-a-polícia, decidimos que se podia e que se queria desenvolver a imaginação para ver aí, no Centro Español de Sada y sus contornos, um lugar onde albergar nossos projetos[1]. Que relação social para estes tijolos? A biblio, assim a chamamos amorosamente, não é outra coisa que uma tentativa de colocar uma janela no Caos. Essa frase, que roubamos a modo de homenagem de Castoriadis, e que este refere à arte, nos fala de um vínculo estreito entre arte e política. Presentificar algo ali onde havia outra coisa. Anselm Jappe disse por aí: política sem política[2]. Frase que pode ser entendida como a política frente ao político. O político como dimensão relacionada a um poder explícito presente em toda a sociedade, qualquer que seja, onde estas instâncias se encarnem no chefe, na tribo inteira, nos anciãos. A política, contingente, como mandato de uma sociedade por darem-se as relações entre os seres humanos, destes com o mundo e as coisas. A política institui duradouramente formas novas a partir de nosso imaginário, de nosso horizonte; a política desenvolvida por nós irrompe no político com uma forma própria, com uma cultura própria, com um discurso herético próprio (heresia com relação ao instituído). A política, então, forja um grêmio libertário ali onde havia burocracia; uma biblioteca onde havia um centro de cultura galega moribundo; uma praça onde havia um terreno baldio; uma fábrica autogerida, ali onde o patrão dirigia; uma sexualidade poliamorosa-autônoma, ali onde havia cinismo sexual ou violência heteronormativa-patriarcal; um habitat sustentável com energias renováveis não contaminantes, ali onde o capital arrasava tudo em seu caminho; um agora ali onde havia uma sociedade de fomento clientelar-estatalista ou uma mutual privatizada [N.T.: cooperativas de crédito, de segurança social, etc.].

A contra-cara do refluxo assembleário é a diáspora, da qual – insistimos – fomos parte: o que aconteceu com as assembleias? Onde estão? O que ocorreu com essa classe média que soube chamar à desobediência impositiva para logo submergir na devoção do conforto? Uma lição pode ser: não existe política no vazio, tampouco a política ocorre sem um movimento de afirmação. Deve-se afirmar, deve-se ganhar. E talvez se devesse agregar: deve-se gerir, administrar sob nossos próprios preceitos libertários.

Na biblio repetimos um mantra: formação. Formação de Quadros de novo tipo. E gostamos de fazer um jogo de palavras meio besta: não queremos quadrados, queremos Quadros. E para isso se deve repensar um projeto político de fôlego longo, com a maior quantidade de mediações, mesmo que sirvam para serem descartadas quando estejam superadas, abolidas ou apodrecidas. Dissemos por aí que nos parece fundamental promover a formação e o debate, construir uma linguagem comum que vá mais além, muito além, do sentido comum, das palavras de ordem vazias e do consignismo, dos slogans irreflexivos. Estes também existem na esquerda autônoma: o horizontalismo a priori (existe igualdade de inteligência quando há divisão do trabalho manual e intelectual?); o hedonismo individualista tornado universal (ante a abolição do indivíduo, sua sacralização supostamente libertária); a suposta não-necessidade de um espaço (odes acríticas ao nomadismo); a renúncia aos grêmios [N.T.: luta sindical] (e TODAS as formas de estatismo, entre elas a organização política). A endogamia prefiguracionista, ainda que seja um momento da verdade comunista, parece descartar até aqui a necessidade de reconhecimento, o que redunda no auto-isolamento, na autoconstrução narcisista e objetificante do próprio “nós” (multiplicados na espuma social).

Nossa tarefa central, acreditamos, é construir um projeto, um espaço ideológico-político que possa servir como referência e a partir do qual possamos interpelar nossos interlocutores, sejam kirchneristas desencantados, esquerdistas, ecologistas, hackativistas, aposentados ou trabalhadores. Até aqui, tratamos de fazer uma contribuição frente ao que consideramos uma falta generalizada de discussão política (sobre o político) e dar tempo à elaboração teórico-política, ocupar-se menos da prefiguração neurótica e projetar a médio e largo prazo. Convém esclarecer que não estamos propondo parar toda atividade até ter um mínimo de formação suficiente, tampouco afirmamos que a prefiguração esteja em seu teto máximo. Em todo caso, nos devemos uma discussão profunda sobre as implicações da prática teórica, ou sobre a práxis e as derivas de sentido que operam na militância. Dizemos que seria interessante forjar coletivamente, de hoje a um longo prazo (verdadeiro longo prazo, nem 2015 nem 2017), uma alternativa política com sustento real, que tenha vida e presença ampla além das eleições – e nas eleições se for necessário –, uma referência político-ideológica sólida, com militantes formados, capazes de levar a posição da organização a qualquer lugar e capazes de resolver por si mesmos em qualquer situação.

Tradição, quero fazer-te uma pergunta

Falamos de refundar a estratégia em função do projeto socialista, o que implica pensar como resolvemos a partir desta/de nossa (nossa?) perspectiva alguns aspectos do mundo contemporâneo onde não valem receitas do passado, nem citações de autoridade, onde mais está em jogo nossa capacidade para recriar o movimento emancipatório. Temas que apresentam paradoxos terríveis para essa invenção histórica colossal que desejamos. Nos perguntamos mais de uma vez: que fazemos e que solução oferecemos e nos oferecemos para a tessitura formada entre a chamada insegurança, os grupos armados que desaparecem pessoas, a prostituição e o trabalho escravo, vinculados com o narcotráfico, a cultura del aguante[3], a terceirização da repressão? Aproximações: ao lado da paródia de zapatistas fora de Chiapas e sem foco, haveria que desenvolver o lado bélico do zapatismo, a autodefesa armada que regule o território e que faça a guerra aos narcotraficantes expulsando-os deste espaço. Importantíssima, neste sentido, a entrevista que lemos em Lobo Suelto (aqui) sobre o balanço que o EZLN fez sobre a luta armada quanto ao momento de armar-se. Se trata – acreditamos – de um vigoroso exemplo de práxis política. De todo modo, não podemos esquecer: ni calco ni copia[4].

Que fazemos, como solucionamos o fato bem evidente de que existe um grau de consumo exacerbado, conspícuo, que implicaria declínio econômico não de todo agradável? Aproximação: não o resolve uma campanha para consumir menos, o monopólio do sentido jaz na mídia de massas, é necessário pensar em uma dose adequada de sabotagem ludita à indústria de telefones celulares, a produção de ares-condicionados etc; mas também denúncias/escrachos à produção constante de novas (e absurdas) necessidades. Se somos classistas, como repercute tudo isso na classe trabalhadora? O que fazemos com o desejo galopante de conforto, de hedonismo amoral que a sociedade inteira tem, espera ou deseja? Podemos e devemos reivindicar a “cultura do trabalho”? Aproximação: reivindicar a cultura do pónos (esforço) despojada da racionalidade instrumental, ali onde dizia “ganhar o pão com o suor da testa” poderíamos escrever “suarás em busca de tua felicidade e da felicidade daqueles à sua volta”.

Somos classistas – dizíamos –, não num sentido “obreirista”, mas num sentido de um horizonte de sociedade sem classes; falamos de classes, sim, mas porque queremos sua abolição. Somos feministas-antipatriarcais e abolicionistas, por isso temos que pensar o que fazemos para que o povo trabalhador não consuma esta mercadoria chamada prostituição. Dizemos ao trabalhador com o qual lutamos por salário as implicações de seu desejo configurado pelo consumo de mercadorias, entre elas a mulher como objeto? A prostituição deve ser abolida ainda que muitas mulheres e trans vivam desta prática? Aproximações: comecemos pela casa. Para ele: pense em seu lugar de privilégio neste mundo com respeito a tudo o que se inscreva como “Não Homem Heterossexual”; para ela: empodere-se. A regulamentação do proxenetismo, que NÃO é um trabalho mais, pois captura de modo sinistro a sexualidade, não nos parece levar a lugar algum. No entanto, devemos a nós mesmos, enquanto abolicionistas, pensar como articular uma transição eficaz para as pessoas que queiram sair desta situação (que são muitas) e gerar outra subjetividade masculina diferente, superadora, daquela que se casa com a santa que lhe lava a roupa e subjuga, em outra instância, a puta, porque a paga.

Seguimos confiando na neutralidade da técnica como promotora do ócio e do tempo livre? É um tema crucial, que implica desde a produção de alimentos transgênicos até a clonagem, passando pela biopolítica do fitness como forma de regulação dos corpos: não por nada, talvez assistamos à bifurcação biológica das classes sociais, pois aqueles que vivem na esfera do conforto não são outros que os que possuem maior poder aquisitivo. Os “avanços” técnicos são um processo sem agentes, fora de controle, que produzem mais alienação e mais dominação do que nunca. Capítulo à parte, para internet: seria a internet – lugar por onde passam milhões de pessoas em suas vidas cotidianas – um lugar de disputa neutro ou, pelo contrário, se deveria reproduzir de modo sui generis um debate similar ao que ocorre a respeito do Estado? Aproximação: a internet produz alienação, autismo. Deve-se autorregular(-se) coletivamente e individualmente as horas de internet, deve-se estipular o quanto de saudável há nela (saudável não para ser mais produtivo, senão para produzir uma sociedade mais autônoma).

Se falamos de Saúde, como revertemos as assimetrias ferozes do acesso à saúde? Com mais Estado? Não deveríamos recriar o juramento hipocrático a partir do projeto socialista? Aproximação: a subjetividade médica se forja nas salas de aula das universidades. Estas instâncias estão colapsadas, transbordando de católicos. Então, inspirados na microfísica leninista deve-se recuperar cátedras [N.T.: na Argentina as universidades públicas em geral estão organizadas no modelo de cátedras, onde o professor titular “manda” em seu próprio feudo], revisar programas. Com mais Estado, tal como está, não chegamos nem na esquina, isto é, se reproduz uma saúde punitiva, heteronormativa, “pró-vida”, que depois se despeja sobre o sistema público de saúde. Nos hospitais percebemos que há uma hierarquia militar que separa o médico como elite, e o resto. Aqui, as organizações sindicais não fazem senão reproduzir esta divisão do trabalho.

Se falamos em Educação, estamos dispostos a reconhecer a evidente mediocridade da formação docente? Estamos dispostos a tratar de reverter o fato de que as estruturas sindicais participam desta mediocridade, pois suas funções jamais saem do salarial? Estamos dispostos a reconhecer que, por trás do suposto horizontalismo pedagógico, pode-se acabar deixando o campo livre para o mais brutal abandono dos setores populares? Quantas vezes docentes libertários se viram obrigados a recorrer à educação bancária como modo de resistência frente à subjetividade estudantil que demanda autoridade. Este é um processo já em andamento, posto em prática por necessidade de sobrevivência por milhares de docentes em todo o sistema educativo. Assim, restituindo a autoridade não-autoritária, colocando [Paulo] Freire entre parêntesis (ou relendo-o hereticamente), restituindo também a ideia de transmissão cultural intergeracional, apelamos ao paradoxo da paidéia libertária que diz que há que ensinar o outro a ser livre, autônomo em coletivo.

A privatização da educação via incremento das instâncias de formação e a flexibilização nos níveis do ensino médio e graduação universitária reproduzem a estrutura social, sustentando a diferença entre aqueles que podem e aqueles que não podem pagar seus estudos. A necessidade política de incrementar as porcentagens de formados e graduados não é, precisamente, um esforço que tende à igualdade, e a proliferação de colégios privados, bacharelados, mestrados, doutorados e titulações é suficiente para compreender sua falta de inocência. Como relacionamos isto com o chamado mercado de trabalho? De que modo disputamos o sentido de nossa educação? Como pensamos a necessidade de formação permanente? Podemos pensar a educação sem pensar a partir de uma racionalidade instrumental?

Pensamos as artes mais além da instrumentalidade? Não deveríamos deixar ao mundo elementos profundos de nossa cultura, de nossa cosmovisão? Não deveríamos, os militantes socialistas libertários, ser capazes de criar coletiva e individualmente novas formas, formas belas? Não deveríamos subverter a forma mesma da beleza? Não estaremos confundindo a visão classista, popular, antipatriarcal, feminista, com a cultura da pobreza ou com o relativismo mais vulgar? Aproximação: percepção fundada com respeito ao visto, ouvido e escutado nas atividades que fizemos na biblio, constatamos que a criatividade, em sentido profundo, não estaria na ordem do dia. Para sair da pose Pomelo Rock[5], da pose falsamente bukowskiana, do esnobismo poético, aqui como em qualquer política, é necessário formação. Foi Pizarnik[6] quem nos legou a ideia de que uma poesia política é uma poesia ruim e também uma política ruim. Mantendo presentes os limites da arte na intervenção nos conflitos ali onde eles ocorrem, reiteramos a ideia da arte como Janela para o Caos, como uma clareira para a cenografia das zonas escuras do abismo e as ferramentas que este habilita para elaborá-las. Um grupo artístico pode pensar em que medida a ficcionalização lhe permite interpelar os afetos e representações sedimentados, os quais facilmente podem apresentar-se verbalmente mas dificilmente transformar-se na prática. Talvez este nível de experimentação, de intervenção da carne, seja igualmente importante para ser pensado pelos grupos de militantes que se regozijam em poder repetir uma e outra fez as palavras de um panfleto. Inclusive Bertolt Brecht não se desligava rapidamente das dificuldades de colocar em cena uma obra que efetivamente posicione o ator e o espectador em uma proposta emancipadora.

As mídias alternativas que soubemos construir possibilitarão que nossa verdade comunista prolifere? Ou, pelo contrário, nos damos conta que somente forjamos instâncias de “estágios” que permitem criar mídias de curta viagem para praticar o vício de brincar de jornalismo sob a consigna de “popular/autogerido”? Aproximação: uma anedota nos fez pensar sobre a impossível eficácia dos meios chamados alternativos na hora de “disputar” o monopólio das significações. Uma conhecida intelectual apontou que escrevia e publicava artigos no Clarín porque ninguém lia os meios alternativos; se ela queria dar a conhecer as vicissitudes das lutas ambientais, tinha que recorrer às mídias de massas legítimas, aproveitar a confrontação com o governo ainda que com o risco de que a mídia direitosa e “macartista” se apropriasse destes argumentos [N.T.: texto escrito durante um governo kirchnerista]. Até onde é replicável esta atitude, depende da capacidade de oratória em acordo com a época, da formação de quadros – insistimos – teórico-políticos, do carisma. Poderíamos pensar em Luis Zamora, se este personagem não fosse a paródia do estalinismo no campo da autonomia: como farsa, tem o triste mérito de exercer em uníssono o personalismo autoritário para dentro e o discurso horizontalista e democrático para fora.

Para além do necessário momento instrumental que as mídias propõem, deveríamos retomar a discussão sobre o que deveria ser o eixo central da alternatividade: a relação entre comunicação e cultura, a necessária construção de outra cultura na qual estas mídias alternativas proliferem. Que lugar de possibilidade nos dão as mídias? Sua influência na construção de hegemonia parece inegável. Cabe, e falta, discutir um programa de intervenção a partir das chamadas mídias populares e alternativas à esquerda das corporações económico-midiáticas. Nenhum projeto comum se ordenou a partir delas, pois nenhum que interpele sensibilidades a partir de um discurso de esquerda se conformou com a proposta de solidez que gesticulam as grandes mídias.

Nossa futura ferramenta política suportará semelhantes tensões? Poderá fazer-se ouvir ou terá, em seu próprio devir, que gerar as próprias condições de escuta? Aproximação: em que medida deve-se renunciar o centralismo democrático é algo que devemos voltar a discutir. De um modo brilhante Eduardo Martedí diz: “a caricaturização do leninismo levado a cabo pelo estalinismo, que disfarçava sua brutalidade sob o lema de ‘centralismo democrático’, levou marxistas como Ciryl Smith a apontar que existem aqueles que defenderam esta prática de acordo com Três Princípios: 1) Papai sempre sabe o que é melhor; 2) Nunca na frente das crianças; 3) Mantenhamos tudo em família”[7]. Para nós, abrem-se duas leituras possíveis: ou tentamos, agora sim, fazê-lo direito, como DEUS manda, um Verdadeiro centralismo democrático, ou então, uma vez sob a Intempérie, vemos o que fica disso para a reciclagem.

Sísifo seria um alpinista?

Quando republicamos em Intempérie a Carta de Eduardo Martedí al Comitê Central do MAS em 1998, nos chamou poderosamente a atenção que esta carta fosse lida por certos epígonos da esquerda tradicional como se fosse uma piada. Palavra mais, palavra menos, sentia-se um eco de reprimenda: Como é que deixaram de lado o centralismo democrático!? Como puderam abjurar da classe operária como sujeito revolucionário!? Não viram onde terminou isso!? Foi Eduardo Martedí quem usou de modo leninista o mito de Sísifo. É Zizek quem nos oferece um Lenin beckettiano: deve-se recomeçar a ladeira desde o início, deve-se tentar de novo, fracassar de novo, fracassar melhor. Recusemos qualquer transigência a respeito da falsa piedade da realpolitik, “definitivamente – diz Zizek – deve-se ‘voltar a começar’, ou seja, não ‘continuar construindo a partir dos cimentos’ da época revolucionária do século XX (…), senão ‘descer’ até o ponto de partida e escolher [e forjar] um caminho diferente”.

Parece que outra vez estamos frente à ladeira da montanha. Outra vez a Rocha. Outra vez nos dispomos a retomar essa tarefa pela subida. Outra vez: Pensa Sísifo. Pensa.[8]

 

Notas

[1] Os que integramos a Biblioteca Popular Eduardo Martedí viemos de diversas experiências militantes. Uma delas foi a Comunidad de Resistencia, uma experiência de militância no bairro de Pompeya que combinava o trabalho territorial com empreendimentos produtivos e formação teórico-política. Anteriormente, participamos nas Defensorías Populares Autónomas (DPA), um espaço conformado por uma rede de movimentos sociais (Mocase, MTD Aníbal Verón, MUP, entre muitos outros) que se articulavam a partir do eixo dos Direitos Humanos, entendidos de forma integral. Também fomos parte do coletivo de comunicação alternativa ConoSur, a assembleia de Ángel Gallardo e Corrientes, e o Centro Social y Cultural Flores Sur.

[2] Política sin política.

[3] N.T: gangsterismo de grupos, como no caso das torcidas organizadas (barrabravas) ou patotas e bate-paus sindicais que realizam tarefas de repressão e que compartilham um “espírito grupal” típico da cultura argentina.

[4] N.T.: Ni calco ni copia, sino creación heroica. Famosa frase de José Carlos Mariátegui, marxista peruano, fundador do Partido Socialista do Perú na década de 1920, um dos primeiros interlocutores lationamericanos do marxismo com vertentes “lationamericanistas” (indigenistas, nacionalistas, etc).

[5] N.T.: Pomelo Rock é um personagem do humorista Peter Capusotto, que representa a vertente mais cultural do rock argentino enquanto estilo de vida.

[6] N.T.: poetisa argentina.

[7] Citado por Eduardo Martedí em Un sujeto para una historia sin Sujeto, revista Debates, 1998.

[8] Carta de Eduardo Martedí al Comité Central del MAS.

Traduzido do espanhol por Primo Jonas para o Passa Palavra.

Os desenhos que ilustram o texto são de Giovanni Francesco Guercino, com exceção do último, de Luca Cambiaso.

2 COMENTÁRIOS

  1. BEamongTWEEN:

    Gratíssimo, Primo Jonas, pelo auxílio luxuoso: a tradução de um texto cujo (sub)título bem que poderia ser FRACASSAR MELHOR – DIY.

  2. Fazia tempo não encontrava no PP um texto desta relevância, de onde vivo ao menos, só posso dizer obrigado por publicar algo vivo.

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