Há contradição entre as lutas identitárias e a luta classista? Camaradas debatem a questão, defendendo um projeto universalista e igualitarista. Por Camaradas.

A troca de correspondências que apresentamos abaixo surgiu a partir da notícia do lançamento do livro A esquerda identitária contra a classe na França, com textos de João Bernardo, Loren Goldner e Adolph Reed Jr. Houve neste livro uma compilação de textos de João Bernardo (que podem ser lidos aquiaqui e aqui), dentre eles um comentário ao artigo Pride: Uma luta que uniu identidade e classe de autoria de Ju e Simone. Foi principalmente a partir da questão da existência de contradição entre lutas identitárias e lutas classistas que os camaradas teceram seus comentários.

CAMARADA 1: Concordo que não há conciliação entre classe e identidade, o que NÃO significa dizer que não haja necessidade de se resolver questões “de identidade” dentro da classe trabalhadora. Tanto as questões que envolvem violências de todos os tipos, quando cometidas também por trabalhadores (e para isso um camarada nosso entende que “o problema só é resolúvel através de pressões, disputas e confrontos, incluindo os confrontos físicos, no interior desta classe”), mas também, e sobretudo, pela existência de explorações específicas de segmentos (“identidades”) dos trabalhadores, como foi indicado em uma nota do texto do turbante, que precisam ser superadas.

Essas duas linhas de enfrentamento — as violências internas à classe trabalhadora, os “negros dos negros” (negro aqui na acepção de escravizado); e a existência de mercados de trabalho com carnes mais baratas — são fundamentais para não jogarmos fora o bebê oprimido com a água suja do banho identitário. Concordam? Não é uma pergunta retórica, pois quando vejo uma associação quase automática entre o nacionalismo da extrema-direita europeia (que faz vídeos como este aqui) e os nossos identitários de cá, que estão ao lado dos oprimidos de lá (e do multiculturalismo), parece que estamos sim fazendo pouco caso da existência dos dois problemas apontados acima: o que é interno à classe e o que é oportunismo dos capitalistas.

Nos baseamos em uma análise que mostra a tendência desses movimentos de oprimidos “anti-sistema” de se dirigirem para a direita, destino dos judeus de Israel, dos rastafaris, do grupo gay da Bahia, de lideranças como Milo Yiannopoulos, Florian Philippot, Eduard Limonov e Pim Fortuyn, etc., mas isso não resolve nada em termos de intervenção (des)construtiva nas duas lutas. Afinal as identidades oprimidas (e por vezes duplamente exploradas) também existem a partir de lutas, e a maioria destas conta e deve continuar contando com uma presença significativa da ala esquerda dos trabalhadores.

Contra esse duplo aspecto, e deixando de lado o caráter excludente de algumas formas de luta, bem como seu horizonte reformista dominante, não é tarefa nossa trabalhar essas pautas numa perspectiva classista e anticapitalista?

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CAMARADA 2: Aproveito uma brecha no trabalho para deixar meu pitaco.

Há uma distinção entre a diversidade interna à classe trabalhadora e as questões de identidade.

Nos processos de formação da classe trabalhadora é evidente que a formação social de cada tempo e lugar influencia. Para um trabalhador inglês do século XIX é evidente que um trabalhador irlandês é um seu inferior, da mesma forma que um trabalhador russo da mesma época via um trabalhador polonês de modo semelhante, e por aí vai. Na mesma época, para um trabalhador escravizado nascido no Brasil um outro trabalhador escravizado recém-sequestrado de seu lugar de origem na África era seu inferior, sem contar ainda as diversas rivalidades inter-étnicas e as tensas relações entre escravizados e libertos, ou ainda entre os “brancos da terra” e os negros, ou entre todos estes e as camadas superiores da sociedade; toda esta complexidade foi portada para o mercado de trabalho livre, gerando diversas formas e modalidades de racismo. Da mesma forma, o trabalho feminino sob o capitalismo, em casa ou fora dela, tem sido historicamente subvalorizado.

O que diferencia, então, esta diversidade interna à classe trabalhadora e as “identidades”? Na vertente socialista/comunista/anarquista, a classe trabalhadora era infundida de um projeto de vocação universalista e igualitarista, que tendia a reconhecer esta diversidade para retirar, extirpar dela qualquer possibilidade de fundamentar relações de opressão e exploração. Basta ver a produção literária, cultural e política destas três vertentes do movimento operário entre os séculos XIX e XX para constatá-lo.

A militância “identitária” reconhece igualmente a diversidade, e é dela que extrai seu fundamento; mas ao invés de tentar encontrar algum elemento unificador, como era o caso do projeto político socialista/comunista/anarquista em sua vocação universalista e igualitarista, tal militância mantém as “identidades” apartadas entre si, afirmando-se cada qual autonomamente em relação às outras. Há nisto o enorme risco do solipsismo identitário, muito bem aproveitado pela direita.

O ponto máximo ao qual a militância “identitária” consegue chegar com esse quadro teórico é o conceito de “interseccionalidade”, segundo o qual as diferentes opressões sobrepõem-se, uma reforçando a outra. Ora, a meu ver, isto não é outra coisa senão o que os velhos marxistas chamam de “formação social”, ou seja, a sobreposição histórico-concreta de vários modos de produção sob a hegemonia de um deles; a substituição operada pela teoria da “interseccionalidade” sobre este modelo lógico está exatamente em trocar “modo de produção” por “opressão”. E não é de estranhar uma tal homologia, na medida em que a noção de “formação social” surge em meio ao marxismo estruturalista francês e a noção de “interseccionalidade” surge em meio à intelectualidade militante influenciada pelo pós-estruturalismo francês; a crítica pós-estruturalista ao estruturalismo, conquanto ataque-o em inúmeros pontos, ainda retém dele várias figuras e conceitos homólogos, empresta-os sub-repticiamente, e assim as contradições entre ideologias mostram-se menos contraditórias do que realmente aparentam ser. É a partir dessa linha de pensamento, por exemplo, que feministas “identitárias” e “interseccionais” compreendem os cruzamentos entre machismo, racismo, exploração econômica etc., mas centram-se na opressão contra as mulheres; que o movimento negro “identitário” e “interseccional” faça o mesmo, tendo como foco a opressão contra os negros; que o movimento LGBT “identitário” e “interseccional” proceda de igual modo etc. A sobreposição entre opressões nos casos histórico-concretos é reconhecida pelo “interseccionalismo” sem maiores problemas, mas cada qual “defende seu peixe” a partir de seu “lugar de fala”.

A meu ver, o que deve servir como critério distintivo entre aquilo que devemos combater e aquilo que devemos apoiar está na relação com o projeto universalista e igualitário a que me referi anteriormente: apoiar o que contribui, combater o que atrapalha. O resto é acessório.

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CAMARADA 3: Entendo a distinção fundamental em termos que costumam aparecer confusos em vários debates sobre o assunto. As desigualdades internas que fraturam a classe trabalhadora devem ser combatidas pelos revolucionários. Mas de que forma se dá esse enfrentamento?

O identitarismo — isto é, a política que afirma e reforça identidades — se apresenta como uma resposta a esse problema das desigualdades. No entanto, não só é uma resposta ineficiente, já que não consegue resolver o problema, como é pior: termina por ser reacionária. A afirmação da identidade do polo oprimido traz a promessa de destruir a relação de opressão, porém acaba reforçando-a, pois o que antes eram desigualdades passam a aparecer cristalizados como diferenças. Ao invés de se superar as fraturas num movimento que aponte para o universal (a reconstituição da classe, igualitarizante), o efeito é aprofundar essas fraturas, quando não criar novas. Nesse sentido, para mim pouco importa se o identitarismo é usado pela direita ou pela esquerda; ambos são igualmente nocivos e, aliás, se retroalimentam e se merecem — Fernando Holiday e Sâmia Bonfim são dois lados da mesma moeda.

Esse “identitarismo” do qual hoje falamos é um fenômeno novo, ou já aparecia em outras épocas? É evidente que as fraturas da classe trabalhadora não são de agora, mas acompanharam toda história do capitalismo — sendo talvez imprescindível a este modo de produção a existência de desigualdades desse tipo, ainda que suas colorações possam variar ao longo do tempo. No entanto, a forma como as lutas da classe enfrentaram esse problema foi mudando ao longo dos tempos — comparemos, por exemplo, as lutas das trabalhadoras na Revolução Russa, os Panteras Negras e o que vemos hoje. Hoje podemos analisar experiências passadas e encontrar elementos identitários, mas, no entanto, seriam já os predominantes? A diferença, a meu ver, é que hoje o identitarismo aparece como uma tendência (“parte da ideologia de nosso tempo”, me disse outro dia um camarada). Nesse sentido, temos que localizá-lo historicamente — talvez a partir da derrota das lutas revolucionárias das décadas de 1960-70, e sua recuperação invertida pelos mecanismos da mais-valia relativa.

Se podemos estabelecer algum paralelo ao identitarismo de hoje, talvez uma boa medida seja o nacionalismo dos séculos XIX e XX. Ainda que muitas lutas da classe tenham estado envoltas por ele, é verdade que jamais poderiam realizar seu potencial revolucionário nos marcos nacionais. O nacionalismo sempre foi, nesse sentido, também um entrave; quando não simplesmente reacionário, colocando os trabalhadores de diferentes nações uns contra os outros. Em algum texto recente, um camarada nosso ponderou que, sem a base econômica que os sustara outrora, os nacionalismos hoje perderiam lugar para o identitarismo. Ou então se cruzam… — ou, formulando melhor, talvez à luz das questões contemporâneas, o nacionalismo tenha se tornado mais um dos identitarismos. Talvez seja avançar demais a reflexão, mas fico pensando como é caduco todo debate travado por certo campo da esquerda de crítica ao “projeto democrático popular” sem levar em conta tais questões, e como é em muito esse identitarismo que tende a cumprir no próximo período o papel de reorganizar ideologicamente a esquerda da conciliação (ou “a socialdemocracia”, chame como quiser).

Entendo que estamos há anos tentando avançar nessas formulações, no entanto esse caminho não é linear, nem simples. Fomos chegando a partir da crítica de tendências nocivas que enxergávamos nas lutas, tentando localizar mais precisamente os alvos (basta ver como fomos mudando os termos: “feminismo excludente”, “multiculturalismo”, “identitarismo”…), para definir mais adequadamente o problema. A elaboração, entretanto, só vai avançando conforme os processos reais de luta forem se desenrolando. Sempre fomos atravessados pela angústia de fazer uma crítica negativa sem propor uma solução para esses problemas. Entre nós, acredito termos a tranquilidade de que não precisamos ser “propositivos”; mas, em termos da ação política, o que significa afirmar isso? Ora, se entendemos que é a própria luta da classe que coloca a questão, então temos o caminho para enfrentar esta angústia.

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CAMARADA 2: Acredito que a noção de “tradições inventadas”, inventada por Hobsbawn, não seja estranha entre nós: para ele, nas lutas pela formação dos Estados-nação, foram inventadas diversas tradições que ou bem eram irrelevantes, ou de fato nunca existiram. Exemplo clássico é a conhecida afirmação de Massimo Taparelli, marquês de Azeglio: “L’Italia è fatta. Restano da fare gli italiani” (“A Itália está feita. Resta-nos fazer os italianos”).

O identitarismo se relaciona com o nacionalismo ao apoiar-se igualmente em tradições inventadas. Veja-se, por exemplo, o caso da identidade occitana francesa: o principal esteio desta identidade são a língua occitana — falada hoje por cerca de 100 mil pessoas, francamente minoritária mesmo na província da Occitânia, mas tida como importante porque lá pelos séculos XI e XII foi uma das primeiras a se separar do latim — e a histórica separação, que data dos tempos romanos, entre a região da França que faz fronteira com a Espanha (Gallia Aquitania) e a região centro-norte (Gallia Celtica). Ora, qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento histórico sobre a formação da França enquanto Estado-nação sabe que não apenas todos os gauleses haviam perdido qualquer identidade própria na Antiguidade tardia, tendo-se misturado com os romanos para formar a cultura galo-romana, como também a língua occitana não tem nada a ver com a antiga língua aquitana, que serviu de substrato apenas e tão-somente para o gascão. A língua occitana permaneceu como pura curiosidade acadêmica entre os séculos XIII e XIX. Entretanto, o nacionalismo occitano reivindica a herança destes dois elementos para afirmar-se como “colônia interna” da região centro-norte da França. Diga-se de passagem que o Partido Occitano, ponta-de-lança político deste identitarismo, não está sozinho nas suas reclamações contra Paris, pois faz parte da federação Regiões e Povos Solidários junto com outros tantos partidos tidos como sendo, em sua maioria, partidos de centro-esquerda. Não por acaso, Hobsbawn iguala todos estes identitarismos ao nacionalismo burguês do século XIX, embora eu adicione aí outro aspecto: o nacionalismo burguês, o nacionalismo que resultou nos Estados-nação tal como os conhecemos, tem como corolário o colonialismo, o imperialismo, a partilha da África, a espoliação da Ásia etc., porque é a face, por assim dizer, de um nacionalismo “vitorioso”, de um nacionalismo empregue exitosamente por determinada classe social para mobilizar a sociedade em prol de seus interesses imediatos; o identitarismo que se lhe assemelha é um nacionalismo ressentido, um nacionalismo de derrotados, um nacionalismo de quem herda a tradição dos perdedores nos processos de formação dos Estados-nação entre os séculos XVI e XIX ou aproveita-as como combustível ideológico para a defesa — em favor próprio, pensando em termos de relações entre classes sociais — de tal ou qual medida autonomista ou independentista, e que por isto precisa ser analisado caso a caso (p. ex., as relações entre frações das classes capitalistas norte-irlandesas e britânicas no caso do lealismo do Ulster; o nacionalismo galês e córnico; etc.).

Mas há que reconhecer outra distinção além daquela que mencionei em mensagem anterior. Sob o manto do “identitarismo” convivem várias coisas. É um saco de gatos, tanto quanto o “autonomismo”.

Este identitarismo a que me referi acima não é outra coisa senão o velho regionalismo, conhecidíssimo de nós todos aqui no Brasil seja pela sua vertente reacionária (movimentos como o separatismo gaúcho ou o “São Paulo é meu país”), seja pela sua vertente pretensamente progressista (todos os movimentos que afirmam a Amazônia ou o Nordeste como “colônias internas” dos estados do Sul e Sudeste e pretendem combater tal status).

Outra coisa é o identitarismo pautado por características corpóreas. Não pensem que a coisa se encerra com o gênero, com a sexualidade ou com a “raça”. Estes foram apenas os primeiros. Há identitarismos ligados à idade, ao peso, ao transtorno psiquiátrico etc. O problema é de outro nível aqui. Trata-se de transformar certas identidades sociais em fundamento para a ação política. Diferentemente do identitarismo de primeiro tipo a que me referi, é impossível dizer que não existem as opressões contra as mulheres, contra os negros, contra LGBTs, contra jovens (em determinados contextos), contra idosos, contra gordos, contra loucos etc., basta olhar ao redor.

O problema está em partir destes fatos evidentes para construir toda uma teoria justificadora da afirmação e reforço positivo destas identidades, numa tentativa de “resgatar a autoestima” de quem sofre tais opressões. Isto levanta duas questões. Em primeiro lugar, um tal fundamento reflete a extremação da política de transformação de questões pessoais em questões políticas; em segundo lugar, transforma o narcisismo de grupo e o narcisismo das pequenas diferenças — os dois conceitos, especialmente o último, são de autoria de Sigmund Freud, constantes nos livros “Introdução ao narcisismo”, “O Mal-Estar na Civilização” e “Psicologia das massas e análise do eu”; sobre o mesmo assunto, recomenda-se também a leitura de “Massa e Poder”, de Elias Canetti — em fundamentos da política, com todos os problemas implícitos no próprio narcisismo.

Isto para somar outros elementos ao debate.

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CAMARADA 3: Volto a indicar um texto que cheguei a enviar antes: “As ciladas da diferença”, de Antonio Flávio Pierucci, um clássico sobre a questão.

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CAMARADA 2: Gostaria de ressaltar outro aspecto curioso sobre esta questão, de que não tratei em oportunidades anteriores.

Entendo que toda ideologia é um retrato congelado de práticas preexistentes. Retira-se de determinadas relações sociais bastante concretas certas representações mentais, simbólicas, linguísticas capazes de “congelar” estas práticas num sistema estanque, e este sistema assim “congelado” é erigido em critério de percepção e compreensão da prática.

Vistas as coisas por esta perspectiva, a adoção da teoria da identidade social como fundamento ideológico das lutas identitárias representa um elemento a mais da fragmentação social extremada que vivemos na atual fase do capitalismo — e assim, mesmo a crítica do capitalismo, teórica ou prática, passa a ser tributária das relações sociais que critica, o que, de certa forma, é inevitável. Acompanhem o raciocínio.

A luta contra o capitalismo surge na medida em que os trabalhadores não apenas se percebem mentalmente enquanto integrantes de uma mesma classe social, mas também enquanto classe social oposta, na prática, às classes sociais que os exploram. Às primeiras manifestações de crítica prática dos trabalhadores nos dois primeiros terços do século XIX — quebra de máquinas, primeiras greves, revoltas etc. — correspondem as primeiras manifestações de crítica teórica ao capitalismo; não por acaso, elas orbitam em torno da Economia enquanto expressão teórica, ideológica das relações capitalistas. A Economia, em especial em seus primórdios, centrou-se na teoria do valor-trabalho e numa visão de totalidade da sociedade tanto em suas relações com a natureza quanto nas relações entre instituições sociais (mercados, países, organização do trabalho etc.); tratava-se, tanto em suas formulações iniciais quanto nas críticas a tais formulações, de expressões teóricas de projetos políticos globais de uma classe contra os projetos políticos globais de outra classe.

Na medida em que as formas de exploração dos trabalhadores foram sendo refinadas e multiplicadas pelos capitalistas ao longo dos dois primeiros terços do século XX, multiplicaram-se também as teorias e ideologias definidoras, justificadoras e legitimadoras desta exploração — e igualmente a crítica, prática e teórica, a estas teorias e ideologias. Ao planejamento econômico na macroeconomia e à “administração científica do trabalho” ao nível das empresas correspondem as lutas pela gestão operária da produção (operação-tartaruga, sabotagens, absenteísmo etc.) e as teorias da autogestão; ao planejamento urbano correspondem a ocupação de terras e prédios, as greves de inquilinos, as lutas de bairro por infraestruturas urbanas e as teorias críticas do urbanismo (escola francesa de sociologia urbana, advocacy planning, situacionistas etc.); à formação e consolidação da indústria cultural e à institucionalização de lazeres contrapuseram-se tanto as inúmeras contraculturas quanto as críticas a uma sociedade, digamos, “administrada”; e por aí vai. A especialização das disciplinas (Economia, Sociologia, Antropologia, Administração etc.), como que uma divisão do trabalho intelectual voltado à compreensão científica das relações entre sociedade e natureza e entre as instituições sociais com a finalidade de maximizar a exploração econômica, instaurou uma ruptura com aquele confronto entre projetos políticos globais de classes sociais distintas e antagônicas: um tal conflito, ainda que não superado, era visto agora pela ótica da teoria e da ideologia de forma fragmentada, parcelada, compartimentada.

A recuperação capitalista das lutas do ciclo que se costuma dizer inaugurado em 1968 instaura todo o processo de fragmentação prática e ideológica dos trabalhadores. Para ilustrar esta questão, lembro-me, muito particularmente, de um livro chamado “Manual de Guerrilha Trabalhista”, publicado no Brasil nos anos 1980 e voltado especialmente para administradores de empresa. A certa altura o autor, num tom muito bem-humorado (o livro foi escrito por um especialista em negociação trabalhista, Júlio Lobos, como resumo humorístico de um livro ainda maior, este sério, que escrevera anos antes), ensina como furar um piquete. Uma das técnicas: contratar umas vinte pessoas e vesti-las com camisas do Corinthians, outras vinte com camisas do Palmeiras e ainda outras vinte com camisas do São Paulo, fazê-las passar pela frente do piquete e simular uma briga de torcida, porque, dizia o autor, era certo que havia corintianos, palmeirenses e são-paulinos no piquete, e que eles ou bem entrariam na briga, desfazendo assim o piquete, ou bem brigariam com seus adversários futebolísticos dentro do próprio piquete, desfazendo-o igualmente. Outra das técnicas: bem tarde da noite, mandar alguém passar no piquete gritando “Ô Antônio!” várias vezes, porque sempre tem um Antônio (ou um José, ou um João, ou qualquer nome muito comum entre trabalhadores) nos piquetes; chamada a atenção dos antônios, dos josés, dos joões, destes cujo nome estava sendo chamado, o passo seguinte consistia simplesmente em gritar “Coooornoooo!” várias vezes, para insinuar aos piqueteiros com os nomes assinalados que, nos quadros de relações machistas de posse do homem sobre as mulheres com quem haviam constituído família, que sua “honra” estava sendo “maculada”, e que eles, nos mesmos quadros do machismo, precisariam sair do piquete urgentemente para “pegar os dois no flagra” e “lavar sua honra”.

Vistas as coisas por esta perspectiva, não é de estranhar que a teoria crítica ao capitalismo tenha sido deslocada progressivamente para disciplinas que ou são parcelares pela própria natureza de seus objetos, ou que, como no caso da teoria das identidades sociais, descem das instituições sociais — impessoais, totalizantes e coletivas por definição — ao último nível da fragmentação social, o indivíduo. Não é por acaso que na atual fase do capitalismo a teoria das identidades sociais, cujo fundamento primeiro se encontra na Psicologia Social (teoria do indivíduo, portanto), estejam em voga não apenas em meio à produção teórica, mas também na propaganda, no marketing focado, no uso extensivo de big data para a microssegmentação de “públicos-alvo” (“alvos” de tudo, de “políticas públicas” a sapatos, de “programas sociais” a propaganda eleitoral etc.)… E a crítica teórica e prática ao capitalismo, mais especificamente à dissolução dos indivíduos em meio à administração das coisas pelos gestores, vividas especialmente durante os Trinta Gloriosos, ao invés de resultar em concepções renovadas daquele projeto universalista e igualitarista de tempos atrás, tenha resultado na exacerbação do indivíduo, de suas particularidades, de sua singularidade frente a outras tantas singularidades (termo mal-emprestado da Matemática e das ciências da natureza, que nelas significa um ponto no qual um dado objeto matemático não é definido, ou um ponto de um conjunto excepcional onde ele não é “bem comportado” de alguma maneira particular).

A crítica ao capitalismo me parece ter evoluído, assim, da construção coletiva de projetos alternativos de sociedade pautados em noções outras de universalidade e de igualdade para a expressão individual de singularidades. Não que esta evolução tenha resultado na supressão das formas anteriores de crítica, muito pelo contrário: elas convivem em tensão, na medida em que seus fundamentos são muito diversos. Daí, por exemplo, a crítica de certos marxismos ortodoxos à integração no campo anticapitalista de outras lutas que não aquelas centradas no trabalho, ou mais precisamente no trabalho produtivo; daí a recorrência do sectarismo em certos campos do feminismo, do movimento negro, do movimento LGBT etc.

A meu ver, como ressaltei em outro momento, o foco é outro. Precisamos ter abertura suficiente para entender em que medida as lutas das mulheres, dos negros, dos LGBT etc. concorrem para aquele tipo de projeto universalista e igualitarista a que me referi anteriormente.

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CAMARADA 4: Belo debate, só discordo de uma colocação: não acho que a crítica identitária tenha a capacidade de virar uma “nova conciliação” como o “nacional popular” que critica, precisamente pela pulverização que leva a cabo. Pela lógica da coisa, seu fim político necessário é a impossibilidade de qualquer tipo de pacto. Por sua lógica interna, só pode levar à destruição mútua. Nesse sentido, um exemplo que falta no argumento daquele que fala das “identidades nacionais forjadas” são os Hútus e Tútsis de Ruanda…

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CAMARADA 2: Quanto aos Hútus e Tútsis, preferi não entrar em polêmicas, pois a antropologia genética tem debatido muito seriamente diferenças genômicas significativas entre ambos, sugerindo origens diferentes; havendo ou não diferenças neste âmbito, o fato, neste caso, é que os alemães e depois os belgas apoiaram a dominação da minoria Tútsi sobre a maioria Hútu (e sobre os ainda mais minoritários Twa) na região dos Grandes Lagos para criar conflitos interétnicos cujos resultados vemos até hoje.

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CAMARADA 1: Gosto bastante quando vocês puxam questões das formações pré-capitalistas ou do engendramento do capitalismo. Tenho pesquisado sobre os processos ideológicos em torno da Conjuração Baiana (1798) e me chama a atenção a distância entre um discurso que afirma/politiza a diferença e ao mesmo tempo defende a igualdade (central em 1798 e em outros movimentos baianos da primeira metade do século XIX) e um discurso que afirma a diferença oprimida e defende essa diferença, como certo “mulatismo patriótico” que surgiu com crise da Independência, e que propunha uma integração política sócio-racial nos quadros daquela mesma formação escravista — isso se manifestou na época da regência em gritos como “D.Pedro II é cabra como nós!“ e na defesa de uma desracialização do escravismo, que não questionava a instituição em si, mas apena a identidade entre negro e escrav(izad)o.

Sinto falta nesse debate de qualquer menção a um tema bem explorado pelos colegas do Anti-Valor/Gorz/Kurz: a luta dos trabalhadores contra a identidade de trabalhador. E a sua contraparte, o fascismo do “quem trabalha não suja as suas mãos”, o identitarismo da classe trabalhadora como sujeito moralmente superior. Essa discussão toca a caracterização do proletariado como herói negativo pelo jovem Marx: espécie de Macunaíma, um sujeito sem caráter, sem características positivas para além de sua luta contra o regime de extorsão.

E claro, sinto falta de resposta às questões que levanto na mensagem inicial. Não me sinto “contemplado” pelas discussões que vieram na sequência, ainda que sejam excelentes e importantes para uma limpeza de terreno.

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CAMARADA 5: Tomei cuidado ao entrar no debate pois ele parece partir de uma afirmação contraditória que não é resolvida e acaba se constituindo como uma premissa: a de que não há conciliação entre classe e identidade, mas que ao mesmo tempo, o processo de exploração social também se sustenta pelo critério da identidade. Isto é totalmente contraditório. Desse modo, creio, nosso debate possui dois problemas: 1. Uma confusão entre identidade e identitarismo; 2. Uma noção de classe (e luta de classes) tão abstrata quanto o conceito de identidade. Apesar das lutas por reconhecimento partirem da ideia de opressão (e está ai o real problema), ela não necessariamente recai no identitarismo. Por exemplo, a reivindicação de uma identidade subversiva não necessariamente se dá por critérios “biológicos” ou “naturais”, mas justamente enquanto uma possibilidade de construção social. Basta ver um dos seus fundamentos teóricos, a queer theory. Agora por outro lado, creio que pautar o debate a partir de categorias como “diversidade” ou “fraturas” dentro da classe trabalhadora é recair no mesmo problema da reivindicação de uma identidade, uma reivindicação de um “eu” ou um “nós” (e dai o problema não é necessariamente o individualismo). Acho que o ponto é que, uma ideia básica no marxismo é o conceito de exploração, de relações sociais de produção, que constituem o capital, portanto, não entendo, por que ainda tratamos das inúmeras desigualdades a partir da ideia de opressão? Dessa maneira, apenas importamos um problema tal como nos é apresentado, não o enfrentamos a partir de um outro critério explicativo. É certo que determinadas formas de dominação/desigualdades não emergem com o capitalismo, e daí muita gente afirma a distinção entre capitalismo e patriarcardo, por exemplo. Se nos propusermos a tratar as desigualdades de gênero ou raça necessariamente como critério de identidade, creio que essa distinção seja suficiente. Agora, se entendermos que essas desigualdades estão diretamente ligadas ao processo de exploração social, ela não pode ser afirmada como uma “opressão”, temos que ampliar os horizontes e entender como o capitalismo integra esses marcadores em sua própria força motriz, que por sua vez, não vive só de trabalho. Acho que um caminho pouco explorado e que tende a ser produtivo é começar a se defrontar com a questão do reconhecimento a partir do conceito de exploração social. Não tenho conhecimento de uma vertente da teoria do reconhecimento que não esteja calcada na ideia de opressão.

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CAMARADA 1: São oportunas algumas observações da Camarada 5, em especial o que ela considera “totalmente contraditório”. Mas não creio que pudesse ser diferente. As classes possuem uma realidade totalmente relacional, não possuem histórias em separado e podem ser categorizadas de mais de uma forma — não por acaso esse é um debate interminável.

Vejamos os processos revolucionários. Como observou o Zizek, as revoluções parecem sempre deslocadas, ocorrendo “no lugar errado”, “no momento errado”, em geral antes que suas condições históricas “estejam prontas”. Mas tem mais um “detalhe” aí, importante para a nossa discussão: as classes que se unem e se formam politicamente nestes processos estão longe de constituir um conjunto não contraditório e não atravessado por questões nacionais e de identidade. Para ir diretamente ao ponto: a fragilidade política do proletariado nas revoluções tem sido apenas uma contingência história ou é algo que diz respeito ao próprio ser das classes trabalhadoras na luta de classes, sempre atravessado por outros fatores? Novamente, como combater o identitarismo e o nacionalismo sem fazer pouco caso das opressões experimentadas pelos trabalhadores?

19 COMENTÁRIOS

  1. A operação ativa de parte dos gestores para agravar a fragmentação dos trabalhadores tem sido abordada pelos documentários de Adam Curtis. Já em seu “O século do Self” (2002, produzido pela BBC) ele explica alguns dos primeiros mecanismos do marketing inspirados na psicanálise, e também a cooptação contracultural dos ano 70-80 nos EUA. Ano passado o mesmo autor lança o “Hipernormalização”, também produzido pela BBC, onde enlaça a guerra ao terrorismo, as “fake news” e a internet como processos de aprofundamento da fragmentação.

  2. Tá fazendo falta duas coisas pra um monte de “camaradas”; 1- Rever o método de análise da realidade, só pela economia nós não demos conta, esquerda radical de compreender a totalidade social e torna-la outra. 2- Organização política e um projeto global, que articule as diferentes lutas num sentido comum. Afinal, é bom se por a pensar se essa aparente fragmentação, vista é claro com o zóio de branco, não será a fortaleza e o fator diferencial de um novo processo de reorganização das classes trabalhadoras e oprimidas pra derrotar o estado, o capital e tudo que domina. Não dá mais tempo de idealizar a luta de classes, é necessário luta-la.

  3. “só pela economia nós não demos conta” = foda-se a economia, dá muito trabalho entendê-la; abracemos o caminho fácil do identitarismo.

  4. Preguiçosa, tô querendo conhecer um único exemplo de revolução socialista bem sucedida, com base exclusiva no econômico e que reuniu no decorrer de seu processo, em sua base social somente o sujeito histórico o proletariado urbano! E é precisamente por essa razão que relativizo muito a importância de todas as análises que orientam esforço militante unicamente para esfera do trabalho para mobilizar processos definitivos de transformação social. Quem só faz isso, militar na esfera do trabalho, portanto está idealizando a revolução ou está órfão de organização política pra medir por onde é melhor meter as mãos primeiro. E já que exemplos não vai ter, dos processos bem sucedidos então teremos que reconhecer que os velhos “camaradas” ou estudaram pouco a economia ou que simplesmente sua análise mais bem elaborada e erudita foi e segue inútil para a empreitada que todos nós ainda temos por diante.
    Obs;Fora a canalhice que noto por parte dos atuais de ficar cagando textinhos rebuscados usandos para tentar destruir vínculos identitários importantes entre quem milita lado-a-lado nas lutas de classe mas que também se reconhece pertencente a uma cor e a um gênero dominado, e isso está, desde onde milito, muito mais para o fascismo do que para o socialismo.

  5. O comentário de Rude RS é uma ilustração do principal problema do identitarismo: jogar fora o bebê com a água do banho.

    Pelo que pude ver, o artigo é uma troca de correspondência entre camaradas que, me pareceu, desejam sinceramente estabelecer pontes de diálogo entre as questões gravíssimas que fundamentam a militância identitária e a questão de classe, definindo, cada qual com seu ponto de vista, os pontos cegos em meio a este debate. Creio que é um passo importante para a construção de uma estratégia revolucionária.

    Antes que o bebê se afogue em meio à água jogada fora, tentemos salvá-lo.

    Em primeiro lugar, Rude RS apresenta exatamente a visão reducionista do que certas teorias, como o marxismo, entendem como a “centralidade do trabalho”. Com isto não se quer dizer que vá todo mundo militar em sindicatos, nos locais de trabalho ou coisa parecida. Quer-se dizer que no capitalismo a exploração de uma classe social pela outra se dá por meio do trabalho, e que para as classes exploradoras pouco importa se quem trabalha é mulher, negra, cego, jovem etc.; pelo contrário, importa-lhe isto que um dos camaradas (ou seria uma das camaradas?) chamou de “diversidade interna à classe trabalhadora”, usada exatamente para que se ponham setores da classe trabalhadoras uns contra os outros e assim melhor explorá-los. O reconhecimento da “diversidade da classe trabalhadora”, pelo que entendi, pressupõe exatamente reconhecer em que situações uma mulher é mais explorada quem um homem (ou o contrário), em que situações um índio é mais explorado que um negro (ou o contrário), e assim compor um quadro mais rico e complexo do que é a classe trabalhadora, suas contradições internas etc. Se este quadro será empregue na militância em seus locais de trabalho, na militância sindical, nas escolas, no bairro etc., isto já é uma questão da sua aplicação concreta, o que é outro debate.

    Em segundo lugar, Rude RS tem razão ao dizer que não houve uma só revolução em que o proletariado urbano tenha sido o único sujeito a dela tomar parte. Mas ao mesmo tempo em que tem razão, erra feio ao confundir hegemonia com exclusividade. A diferença é simples: quem hegemoniza conduz o processo, toma as principais iniciativas, dá a tônica dos principais acontecimentos, enquanto exclusividade, como visto, é impossível de existir em processos revolucionários. Postas as coisas em seus termos adequados, é somente ao se reconstruir a complexidade de cada classe social em cada formação social específica que se poderá projetar — ou seja, apostar, fazer existir a partir da ação política — a tal hegemonia, no presente, ou analisá-la, no caso dos processos revolucionários do passado.

    Em terceiro lugar, Rude RS cai num antiintelectualismo a meu ver inexplicável, pois o só fato de apresentar os pontos de vista que apresenta demonstram um trabalho intelectual de sua parte. Se não de sua parte, de quem tenha lido, ou de com quem tenha conversado, para construir sua posição. Processos revolucionários não são puros resultados dos “instintos”, por assim dizer, mas igualmente de um processo de reflexão sobre o que estamos fazendo em nossa ação política. E mesmo os que renegam o trabalho intelectual via de regra nada mais fazem senão papagaiar as teorias de algum filósofo, economista, sociólogo, antropólogo etc. que se deu ao trabalho de sistematizar seu pensamento e expô-lo ao público.

    Em quarto lugar, a rejeição de Rude RS ao diálogo, manifesta por diversos modos, ilustra o tipo de sectarismo que surge quase como consequência do particularismo que vai embutido em certas vertentes do identitarismo. Ao invés de debater, o que há é “tombamento”, variações sobre o tema da argumentação ad hominem (notadamente o argumento contra albis ou o argumento contra virilem), distorções acerca do que vem a ser o “lugar de fala” e por aí vai. E antes que me venham com interdições parecidas, lembrem-se: vendo somente estas letrinhas na tela ninguém terá como saber se, ou o quê, almocei hoje, quanto mais o resto.

    Por último, já me remetendo diretamente ao texto e não aos comentários de Rude RS, gostaria de deixar uma contribuição sobre a contradição entre classe e identidade. Pelo que vi, esta contradição é tomada como se as duas categorias fossem mutuamente excludentes. Não entendo desta forma. Trata-se de níveis distintos de concepção. A classe, por exemplo, permite um nĩvel de abstração que não a descaracteriza, desde que imbricada com a noção de trabalho abstrato; já a identidade é eminentemente concreta, e só permite abstração a um nível tão alto que a torna objeto não mais da política, mas da lógica. Quer dizer: é possível conceber uma classe trabalhadora abstrata, o que permite, de um lado, compreendê-la como uma classe social global, e de outro enraizá-la em contextos sociais e históricos para assim compreender quem lhe dá carne, concretude; já as identidades não permitem uma tal abstração, pois é-se negro, homem, mulher etc. apenas em contexto.

    Teria mais a dizer, mas o momento não me permite. Retornarei mais adiante.

  6. Certa vez, alhures, o velho e sábio Foucault jocosamente apontou que, independente dos caminhos tomados, a filosofia moderna sempre forçosamente se voltava para um único pensador, e como querendo sair dele retornava forçosamente, Kierkegaard, Nietzsche e o velho Marx lhe foram presas cativas, quanto mais se debatiam mais se ajustavam a sua garra… (mistério). É engraçado como os camaradas discutem Reconhecimento, Identidade, Sujeito, negatividade, contradição sem ao menos citá-lo uma única vez… (mistério). Não importa, das nuvens da contradição e totalidade ele deve olhar com alguma graça e refletir: Quem pensa abstratamente?

  7. A grande maioria das identidades pelas quais hoje se lutam são identidades vindas de fora para dentro. Tomam o efeito como causa. As lutas de classes não são um fenômeno exclusivo do capitalismo. Elas “movem” a história de todos os modos de produção, seja ele o capitalista, o feudal ou o asiático. Uma breve exemplificação: tanto a existência das “comunas” feudal, “pré-colombiana”, e outras tantas, não significavam a inexistência de classes, e não significavam muito menos a inexistência de exploração de uma classe sobre a outra. Em todos estes modos de produção, ainda que houvessem “comunas”, havia classes e exploração de classes, ou seja, classes e exploração de classe eram seu fundamento, sua base, a razão de sua existência… Portanto, para a reinvindicação de certas “identidades”, especialmente aquelas baseadas em “melhores tempos idos” (Zé Ramalho – AdmirávelGado Novo), é bom lembrarmos a existência do Rei Montezuma, Rei Zumbi, Rei Momo, Rei Leão, Rei Elvis Presley, Rainha Elizabeth, Rainha Xuxa… etc… Enfim, onde houver rei, haverá reinado… E o rei governa, dividindo. Os conflitos no interior da classe trabalhadores não são de origem interna. Não são os trabalhadores que se dão esta ou aquela identidade, mas esta ou aquela identidade lhe é imposta de cima. É fato que o trabalhador negro ou mulher ganha menos que o trabalhador branco, mas quem determina o preço da mercadoria trabalho, ou quem organiza o trabalho, as fábricas, os espaços? É fato que há diferentes tratatamentos dados a brancos, negros, mulheres, não só na sociedade capitalistas, como nas demais, mas quem os determinam, os explorados ou os exploradores? Aquilo a que se chama de “privilégio” de gênero, raça, etc, é oferecido (ou imposto…) por qual classe? E, supondo que surgido no interior da classe trabalhadora, por que motivo teria surgido? Seria um comportamento por ação ou por reação da classe trabalhadora?

    Acredito que a identidade verdadeira só é possível em uma sociedade sem classes e de iguais, onde todas as possibilidades e diferenças humanas possam se realizar. Neste sentido, a verdadeira acepção de educar “educare, educere, que significa literalmente “conduzir para fora” ou “direcionar para fora” os potenciais humanos. Indentitarismo, multiculturalismo “formam” (põe na “fôrma”), ensinam “(ensinar: “insignare”, por um sinal, uma sina…) identidades e culturas forjadas, na maioria das vezes, pelos exploradores, do passado e do presente, e, quando encetadas pelos explorados, são muito mais na condição de reação às condições impostas pelos exploradores do que por sua própria ação…

    Se os capitalistas alcançam a hegemonia se internacionalizando, não será se fragmentando que os trabalhadores lograrão êxito em sua emancipação…

  8. Douglas, convenhamos, o sábio Foucault foi discípulo de Jean Hyppolite, este por sua vez discípulo de Alexandre Kojève, ambos com monomania por… (mistério). Reconhecimento, Identidade, Sujeito, negatividade, contradição, são temas basilares da lógica e da gnoseologia, não há filósofo de relevo que não os enfrente. Voltemos ao centro do debate, faz favor.

  9. Manolo,
    Você sabe tão bem quanto eu – ou talvez não (?) – que o modo de colocar o problema geralmente define sua resposta. Reconhecimento, negatividade e sujeito, ao contrário do que você diz, não são temas da filosofia como um todo senão da filosofia moderna e ainda assim tema de uma pequena pletora de filósofos. Desse modo, conforme sua assertiva mal humorada, grande parte dos filósofos não são de relevo porque não se preocuparam com essas categorias (Narciso acha feio o que não é espelho). Sujeito e identidade, principalmente, nem chegam a ser nomeados como um problema em si mesmo por grandes pensadores e aqui destaco a santíssima trindade do pensamento alemão – Kant, Hegel e Marx (talvez esse último seja o que mais vai se aproximar da noção vulgarizada de sujeito grassada no século XX pelo seu problema com o direito) – mas sim pelos comentadores ou discípulos de cada um deles. Entretanto, só essa questão daria laudas de comentários
    Nós estudantes de filosofia (realmente, devido aos grandes problemas herdados por um marxismo vulgar, estamos mais preocupados em interpretar o mundo do que transformá-lo, já que bastante gente tentou esta última e deu cabeçada), sabemos muito bem que, em especial, o conceito de Reconhecimento teve grande impulso no posterior desenvolvimento do que se chama hoje de Teoria Crítica. Debate iniciado por Habermans e culminando com Axel Honneth a partir da matriz hegeliana onde – pasme – esse conceito vai surgir pela primeira vez, talvez na Fenomenologia do Espírito. (Quem sabe se Hans-Jürgen Krahl tivesse sobrevivido ao acidente de carro o debate se desse em outro nível tendo em vista a forte discordância que este, como aluno dileto de Adorno, tinha em relação as posições teóricas de Habemans?).
    Infelizmente tem-se ainda uma visão acachapante na qual “no início era a luta de classes” e tudo que fuja ao jargão pré-estabelecido a priori por conceitos que forçam a coisa a seus limites é descartado como abstrato demais… Regra segundo a qual se foge do centro do debate. Limpado os caminhos. Em primeiro lugar, se se está realmente interessado em se debater identidade, sujeito e reconhecimento não se pode ignorar Hegel, nem a psicanálise para início de conversa. Marx teve aqui e ali alguns lampejos sobre os problemas acerca do sujeito histórico que, em todo caso, permaneceram incompletas.
    Não é à toa que, depois de mais de duzentos anos, quem vai perceber que a noção de reconhecimento parta da categoria de trabalho seja alguém afastado de qualquer concepção marxista: Judith Butler. Ora, se os camaradas se atentassem minimamente ao suábio, perceberiam que o resultado da experiência do escravo – na vulgarizada conhecida dialética do senhor e escravo – não é nenhuma redenção senão o reconhecimento de seus próprios limites ao refrear, por medo do sopro absoluto da negatividade, seus desejos. Há um elemento nesse reconhecimento que poderia chamar bastante atenção: não se trata apenas de negar o Outro (o senhor, o patrão, o burguês), mas de enxergar nesse Outro o negativo como constitutivo de sua própria identidade enquanto escravo (proletário, preto, pobre e favelado). E aqui se estabelece um diálogo com as conclusões justapostas de Judith Butler: será que quanto mais se esforçar mais escravo, o escravo se torna, ou o próprio desenvolvimento do instrumento de trabalho juntamente com o ato declamatório forneceriam as bases para a liberdade efetiva? Ora, mas para o credo tais questões são abstratas demais, não é?
    O assim chamado “socialismo real” fez mais estragos do que se imagina. É, do mesmo modo, curioso, como alguém como Kurz que se julga afastado desse mesmo marxismo seja impregnado das mais decrépitas noções acerca de Hegel. Sem contar Mészáros e sua terrível compreensão sobre Hegel e muita gente boa que ficou mal resolvida simplesmente por ignorá-lo. (Curiosamente Lenin não!). Parafraseando Terry Pinkard, Hegel é o único filósofo que todo mundo julga saber algo a respeito, não obstante, algo sempre falso. E já que você julga que o centro do debate não esteja em sua filosofia nada posso acrescentar…

  10. PS: Ah sim! sim! é uma defesa ao de volta a Hegel!
    Sem ele só enxergo derrapada teórica em conceitos formulados a partir de sua fundamental contribuição ao pensamento e por consequência a revolução.
    Beijos do Bozo

  11. A armadilha preparada por Douglas por meio de um dilema destrutivo implícito é evidente: ou bem se demonstra que as categorias discutidas são o mais básico da lógica e da gnoseologia pelo menos desde Aristóteles, e assim desviamos completamente o debate para as nuvens; ou bem não se o demonstra, e assim resta aceita e inconteste sua opinião (ilustrada e erudita, conquanto equivocada) acerca da questão. Prefiro não aderir à monomania e deixar espaço aberto ao mistério.

  12. Alguém entre os camaradas, ou entre as camaradas, falou em “sobreposição” ao expor a transposição da teoria dos modos de produção para a prática identitária. Queria aqui falar sobre outro tipo de sobreposição, a entre as classes, com um olhar mais objetivo sobre a composição desses movimentos identitários…

    Já não é de hoje que o pensamento marxista justifica o racismo, o machismo e tudo aquilo que se passou a ser chamado de opressões como uma forma de clivagem intra classe trabalhadora usada racionalmente pelas classes dominantes. Assim, se é possível pagar um salário menor a um negro ou a uma mulher, se é possível explorá-los mais (intensiva e extensivamente) dando-lhes piores condições de trabalho, que seja, muito melhor. Aumenta-se a produtividade, aumenta-se os lucros e cria-se barreiras à recuperação da exploração feita pelo conjunto dos trabalhadores, obrigados agora a aceitar níveis de remuneração não muito distantes daqueles percebidos pelos que somam à sua exploração uma carga maior de opressão.

    Digressão: os trabalhadores “privilegiados” (vejam só, ser explorado passou a ser um privilégio quando não se soma a uma carga muito intensa de opressão!) costumam lutar não contra a opressão que cai sobre os trabalhadores negros e mulheres, que nos final das contas também recai sobre a própria exploração, mas contra a participação deles no mercado de trabalho, quase sempre intensificando a opressão, mas tirando-lhes o direito de ser explorados. É assim que o fascismo vem crescendo contra os imigrantes, e o separatismo se torna a nova coqueluche. É exatamente aqui que os identitários vencem cotidianamente os “classistas” nas disputas pela hegemonia das lutas sociais, pois parece existir uma racionalidade instrumental, fria e calculista, na prática dos gestores capitalistas quando usam das opressões para intensificar a exploração, fragmentar a classe trabalhadora e consequentemente diminuir a resistência, mas não há entre os trabalhadores a compreensão oposta exigida pela cartilha, já que os mesmos não combatem essas opressões de forma generalizada, e na maior parte dos casos até joga a favor, prejudicando a si e aos trabalhadores negros e mulheres, para ficar nos dois exemplos mais conhecidos. Os identitários dizem que os trabalhadores não agem contra si, eles fazem isso porque é lógico que o façam, é lógico que exerçam seus “privilégios” e que há um ganho nisso que precisa ser reparado. Os “classistas”, no seu turno, já não sabem o que dizer, a maioria até capitula.

    Mas voltando ao que importa, quero ir para a outra ponta da luta de classes e identificar lá uma parte do movimento identitário.

    Há algo que não se encaixa nessa racionalidade capitalista, que é quando essa opressão chega no nível dos gestores. Por que diabos há menos gestores mulher e negro do que “ômi” branco!? Se um negro ou uma mulher são tão capazes quanto os homens brancos em tudo, inclusive em explorar os semelhantes, se os gestores capitalistas deveriam para o seu próprio bem entender o mundo desta forma instrumental, então estarão eles reduzindo a sua própria capacidade de reprodução por mero diletantismo? Seria apego a estas clivagens que deveriam ter morrido no passado? Ou os capitalistas não são tão racionais assim, e portanto são também racistas e machistas mesmo quando atuam em nome dos interesses de classe?

    Pois bem, é sabido também que nem todos nascem gestores, tornam-se (saudade do tempo quando máximas parecidas também valiam para “negro” e “mulher”!). E nesse processo de se tornar gestor, muitos partem do seio dos trabalhadores para chegar até lá. A esquerda, por exemplo, faz dos sindicatos e partidos as suas escolas de gestores, mas há muitíssimas outras escadas. Essas escolas de gestores selecionam seus alunos no meio da classe trabalhadora imersa nas clivagens de todos os tipos. Nesse vestibular não há cotas e as opções de múltiplas escolhas são as cabeças que uns terão que pisar para se chegar na classe de cima. A concorrência entre eles permite que se use destas armas quando outras faltam munições. Ora, um marido subjuga a mulher não porque concorrem entre si, assim como um colega de turma não chama o outro de macaco porque vai tirar algum proveito disso. Na real, o marido torna a sua própria relação matrimonial um lixo, sem falar na vida da mulher um inferno, enquanto o racista cria a sua volta um ambiente hostil por ter destruído o espírito (e muitas vezes o corpo) do vizinho. Na concorrência, por outro lado, pelo menos um pode se dar verdadeiramente bem. Na irracionalidade do racismo e do machismo cotidianos entre os trabalhadores todos se lascam, apenas uns se lascam mais do que outros.

    Não ignoro com isso que o mesmo se passe entre os já nascidos gestores. Talvez até mais do que entre nós, trabalhares (ou seria eu um gestor tentando prega-lhes uma peça?). A questão é que esse outro lado do problema podemos pouco atacar. Se por lá os preconceitos são reflexos da mera concorrência, códigos culturais ou simples burrice pouco me importa neste exato momento. O que eu destaco aqui é que enquanto o capitalismo exige um tipo de racionalidade, o racismo e o machismo entre os trabalhadores já residem em outra, que às vezes se contradizem, às vezes se complementam, mas não sem que alguns saibam jogar com isso e outros fiquem completamente reféns dos seus preconceitos.

    As lutas identitárias então são uma das possíveis confluências dessas duas racionalidades. Os gestores precisam que os melhores e mais qualificados, independentemente da cor e do gênero, cheguem aos escalões mais elevados de poder, e os trabalhadores precisam que as clivagens dentro da classe deixem de existir para que as lutas tenha mais força e para que a vida seja mais suave. Uma parte do movimento identitário, geralmente o setor de origem universitária (os sindicalistas e os movimentos sociais transformados em lobbies também), querendo chegar a um posto entre as elites, e sabendo que nelas não cabem todos, centram suas forças em tirar de lá os que lá já estão. Os “classistas” burocráticos pelo menos sonham mais alto, e querem derrubar toda a elite e ocupar por completo o lugar dela. Os de baixo, os trabalhadores no geral, quando transformam suas lutas em identitárias querem “apenas” parar de morrer por terem mais melanina ou parar de apanhar dos companheiros e não poder sequer pedir proteção. Claro que para os trabalhadores há muitas outras exigências vinculadas ao fim do racismo e do machismo, portanto essa lista está muito longe de ser exaustiva, mas todas as exigências são de ordem prática, com implicações diretas no cotidiano, assim como fazem quando pintam suas lutas de vermelho e exigem coisas que afetam a todos e não somente determinada fração. Daí eu concluo que essas lutas identitárias atravessam as classes (vão dos trabalhadores aos capitalistas) porque criam barreiras para os objetivos particulares de todas, cada um a sua forma, mas para os gestores funcionam de forma ambígua, pois sabem tirar proveito do racismo e do machismo existente entre os trabalhadores.

    Por isso me parece besta quando dizem uns que o movimento identitário é burguês e outros ainda mais quando dizem que é a revolução. Ele é ambos: elitista e necessário. Os que gritam que ele é a revolução geralmente o fazem por precisar que as suas contradições nunca apareçam, entre elas o uso das opressões sofridas por muitos para a ascensão de poucos. Enquanto aqueles que o chamam de burguês tapam os olhos para o que se passa na frente: o racismo e o machismo que brutalizam ainda mais a vida cotidiana. Não se trata aqui de mais uma defesa da “interseccionalidade”, não se trata de fazer um novo mosaico — mas desta vez um mosaico com uma grande peça vermelha em destaque. Se trata de pintar um novo quadro, fazer uma nova arte, que consiga refletir as aspirações do nosso tempo.

    Ora, se a gente tem esse instrumento que é a máquina de apontar as contradições e que ajuda a separar o que não deveria andar junto, então usemo-lo mais uma vez. Não é a opressão que não deve andar junto da exploração em nossas análises: o que se precisa é desvelar a contradição das lutas identitárias e a formação de mais uma fração da classe gestorial a partir delas.

  13. Relendo o que o Camarada 5 pontua já ao final da troca de mensagens, a saber: “Desse modo, creio, nosso debate possui dois problemas: 1. Uma confusão entre identidade e identitarismo; 2. Uma noção de classe (e luta de classes) tão abstrata quanto o conceito de identidade!”, me parece ser esse ponto de partida. Há diversas lutas que giram em torno das identidades, mas nem todas são um reforço dela, muitas alias são contra as identidades, pois a identidade é imposta de fora. Enquanto os nascentes gestores dentro do movimento identitários precisam reforçar essas identidades fazendo o mesmo jogo só que ao lado oposto dos racistas*, os que cotidianamente sofrem com as opressões costumavam lutar contra essas identidades. Hoje há uma inversão e a hegemonia dos gestores identitários por dentro desses movimentos que partem das identidades fazem com que as mesmas aconteçam na dualidade da afirmação/negação de si. Ora, os gestores que capitalizam seus dividendos de grana e poder pelas identidades só podem ascender a um cargo nas elites políticas e econômicas se a escada que os levam até lá permanecer sólida, mas nem todos estão dispostos a ser escada. Creio que fazer esse recorte nas lutas que nascem e são pautadas pelas identidades, entre aquelas que reafirmam e aquelas que negam; ou fazer a separação entre as práticas dentro da mesma luta que apontam pra lados opostos, é mais do que necessário.

    *Por exemplo, hoje está em voga a análise de fenótipos e pesquisa sobre a ancestralidade para determinar quem é e quem não é negro nas disputas por vagas nas universidades e concursos públicos, resgatando práticas outrora consideradas nazistas.

  14. Há quem acredite que por ter pai e mãe (seja lá sob que forma familiar…), não é filho de chocadeira…
    A granja, orgânica ou não, é granja… portanto, ovos são ovos e frangos são frangos…
    Embora humanos, somos recursos, capitais…
    Sendo assim, a identidade é (sempre) o registro geral…

    Blade Runner 2049? Não! 2017… A identidade de K, mesmo quando ele se “identifica” como Joe, é “K”… “kkkkkkkk…!”
    Quantas são, então, as “memórias” de “paraísos perdidos” e de “tempos de glória”?
    “K”:
    – “kkkkkkk….!”

    E nós, sempre especiais… sempre os “escolhidos”…

    Embora o (R*)egistro seja (sempre) “G”eral, dizem, nos falta “classe”. A (I)dentidade ( etimologia: identidade do latim idem, igualdade e continuidade. A qualidade daquilo que é idêntico, o estado de uma coisa que não se modifica…) é (R*)evolucionária… isso sim é ter “classe”…

    Mas os Tempos são Modernos… e a (R*)evolução não será televisionada… em tempos de fraternidades “compartilhadas” (afinal, dizem, o futuro, (A*)nticapitalista inclusive, será “compartilhar” não só a carona… mas a casa, a cama, a escova de dente, a cueca, a camisinha…)… os “likes”, os “emojis”, os “hastags” farão a vez da TV… a própria (R*)evolução será “permanente” em um “App” de atualização automática para todas as tribos de todas as cores… salvo se não houver crédito no celular…

    *(R) Marca Registrada.
    *(I) Marca Registrada.
    *(A) Marca Registrada.

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  15. Finalmente, uma resposta que contempla e que se soma com maior afinidade às inquietações do início do debate:

    “Por isso me parece besta quando dizem uns que o movimento identitário é burguês e outros ainda mais quando dizem que é a revolução. Ele é ambos: elitista e necessário. Os que gritam que ele é a revolução geralmente o fazem por precisar que as suas contradições nunca apareçam, entre elas o uso das opressões sofridas por muitos para a ascensão de poucos. Enquanto aqueles que o chamam de burguês tapam os olhos para o que se passa na frente: o racismo e o machismo que brutalizam ainda mais a vida cotidiana. Não se trata aqui de mais uma defesa da “interseccionalidade”, não se trata de fazer um novo mosaico — mas desta vez um mosaico com uma grande peça vermelha em destaque. Se trata de pintar um novo quadro, fazer uma nova arte, que consiga refletir as aspirações do nosso tempo.
    Ora, se a gente tem esse instrumento que é a máquina de apontar as contradições e que ajuda a separar o que não deveria andar junto, então usemo-lo mais uma vez. Não é a opressão que não deve andar junto da exploração em nossas análises: o que se precisa é desvelar a contradição das lutas identitárias e a formação de mais uma fração da classe gestorial a partir delas.”

    E digo mais: assim como nem toda luta operária é comunista, nem todo movimento identitário é identitarista. Os partidos/tendências se alimentam (ou ao menos deveriam se alimentar) de determinadas lutas concretas e específicas, mas estas lutas são sempre atravessadas de contradições, alimentando tendências que por vezes podem se antagonizar.

    Não é razoável aconselhar um movimento identitário qualquer a se integrar (e diluir) em um movimento classista – por vezes compondo uma seção ou coletivo interno, no caso dos partidos – quando este não resolveu internamente os problemas que originam o movimento identitário. Mas expor as contradições dos movimentos e denunciar o identitarismo como tendência oportunista, regressiva, corporativa e gestorial para milhões de trabalhadoras e trabalhadores, essa sim me parece ser uma tarefa dos comunistas – que vem de “comum”, de “igual”, o que hoje parece preciso lembrar.

  16. dizem por aí que as lutas criam a comunidade proletária, a classe para si. Que fazer? Lenin defendeu que a luta tradeunista apenas não levava à revolução. Certamente não em um país eminentemente camponês. Qual é o horizonte das lutas? Lutar no enquadro das relações de exploração é o que nos transforma em nemesis do capitalismo; lutar no enquadro de demandas identitárias gera alterações nas diferenças específicas entre os seres humanos.
    Existe no discurso do sentido comum identitaristas um apelo ao exclusivismo que é maléfico: tudo o que é luta por melhores condições para as mulheres trabalhadoras é feminismo, tudo o que é luta por melhorar as condições para os negros trabalhadores é anti-racismo. Fora da linha política identitária não existe luta pelas condições de vida de nenhuma minoria, não reivindicar-se feminista é igualado a machismo, não reivindicar-se anti-racista é ter uma linha política racista. Creio que disso falam xs camaradas a respeito da tradição universalista. Será que um dia voltaremos a poder lutar contra o racismo sem que se tenha que ser negro, que nossa organização tenha uma comissão específica de negros para que lutem especificamente sobre a questão dos negros, e uma específica só com as mulheres negras, ad infinitum? Por que é que não criar todo esse aparato, retórico ou organizativo, é idêntico a “abandonar as pautas identitárias”, ou “privilegiar o econômico”?
    Acho que essa última pergunta aponta justamente àquilo que os últimos comentários chamam de “denunciar as tendências oportunistas” e a “formação de novos quadros gestoriais” a partir da lógica identitarista. Que no extremo se identifica com o liberalismo de esquerda, por mais que se denuncie o capitalismo de forma genérica.

  17. “Pelas ruas marchando indecisos cordões. Ainda fazem do dread seu mais forte refrão. E acreditam nos dreads, nos rastafáris, nos moicanos, nas carecas, vencendo o canhão…”

    O artigo “O macrismo não é um golpe de sorte”, traz um conceito interessante, “multi-target”: “fomentados por uma gestão multi-target que se segmenta em setores tão específicos como a seita dos runners, as demandas éticas dos veganos e as pautas insondáveis dos amantes de bichos de estimação, terminam de completar a ideia do macrismo como uma força política moderna e cosmopolita, à altura dos tempos”(http://passapalavra.info/2017/10/115792). “Cambiemos” então: as IDENTIDADES ou IDENTITARISMO dos runners, veganos amantes dos bichos de estimação (todas tão em voga também na esquerda capitalista…) e substituamos por qualquer outra IDENTIDADE ou IDENTITARISMO… a o conceito e a “GESTÃO” “multi-traget” permanecem os mesmos para direita e esquerda: modernos… cosmopolitas… à altura dos tempos… Portanto, não é só o macrismo que não é golpe de sorte…

  18. Mais uma contribuição para a conversa dos camaradas. Mário Maestri refuta a tese do Sílvio Almeida de que o racismo possa ser estrutural:

    “Os variados meios extraordinários de super-exploração do trabalho podem ser usados em forma ampla ou restrita, significativa ou moderada, intermitente, periódica ou permanente. Ou podem, até mesmo, não serem utilizados. O essencial na reprodução capitalista é a exploração da força de trabalho, sendo que não são essenciais suas características singulares. Devido a isso, mesmo importantes, as peculiaridades da força de trabalho não são elementos estruturais, necessários, ao processo de produção capitalista. São elementos conjunturais, mesmo quando se mantêm por longuíssimo tempo e assumem larga importância.”

    Vale a leitura do artigo:
    https://maestri1789.wixsite.com/mariomaestri/post/o-racismo-não-é-estrutural?fbclid=IwAR3pcz6SX2wR4iH4HZtgGN46T8SfK7zegOcNF1P6SQbVXpGZABpzcNd-FbI

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