Repercussão da prisão de Miasnikóv (La Révolution prolétarienne, avril 1927)
Repercussão da prisão de Miasnikóv (La Révolution prolétarienne, avril 1927)

Quaisquer que tenham sido suas falhas, sua carreira heróica, sua recusa em comprometer seus princípios, são prova suficiente de sua integridade revolucionária. Por Paul Avrich

Miasnikóv passou os próximos três anos e meio na prisão, primeiro em Moscou, depois em Tomsk e Viatka. Ele continuou seus protestos, escrevendo para Stálin e Zinóviev, para Bukhárin e Rykov. Em Tomsk ele declarou uma greve de fome, sua segunda enquanto estava sob custódia bolchevique. Sua meta, ele explicou em uma carta contrabandeada para o Ocidente, era “forçar um indiciamento formal e abrir procedimentos judiciais contra mim, ou conseguir minha liberação”[86]. Ele não foi bem sucedido em conseguir nenhuma das duas. No décimo dia de greve ele foi submetido a alimentação forçada. Miasnikóv resistiu. No décimo terceiro dia, seus carcereiros, reforçados pela GPU local, arrastaram-no para fora de sua cela e o puseram num manicômio, um ato, Miasnikóv reclamou, que “estabeleceu um belo exemplo para os fascistas do mundo inteiro.” De fato, ele acrescentou, nem mesmo os fascistas empregaram tais métodos. “Eles não foram tão longe ainda, mas aqui o motivo é: quem quer que proteste é louco e seu lugar é entre os insanos! Particularmente quando ele é da classe trabalhadora e tem sido um comunista por vinte anos”[87]. Devolvido para sua cela, Miasnikóv foi mantido em isolamento. Ninguém teve autorização para falar com ele, nem os guardas nem os demais internos. Sua esposa, Daia Grigor’evna, e seus três filhos pequenos foram enquanto isso mandados para o exílio[88].

Prisão de Viatka
Prisão de Viatka

Em 1927, o próprio Miasnikóv foi banido para Erevan, capital da Armênia[89]. Ele foi mantido sob vigilância policial. Mesmo assim, em 7 de novembro de 1928, no décimo primeiro aniversário da Revolução Bolchevique [N. do T.: de acordo com o calendário juliano em vigor na Rússia, equivalente a 25 de outubro no ocidente], ele tomou parte em um manifestação contra o governo. Temendo ser preso, ele decidiu fugir para o exterior. Cortou o cabelo, fez a barba, encheu a mala com manuscritos e anotações e embarcou num trem para Dzhul’fa, uma cidade na fronteira da Pérsia [N. do T.: atual Irã]. Chegando em Dzhul’fa, ele saltou do trem e cruzou o Rio Araks pela Pérsia adentro, apenas para ser preso imediatamente. Depois de seis meses na prisão, foi expulso, sem passaporte ou visto, para a Turquia, onde foi continuamente assediado pela polícia. Numa carta para a seção russa dos Trabalhadores Industriais do Mundo [N. do T.: organização sindical internacional presente em países anglo-saxônicos, conhecida pela sigla em inglês IWW, com uma orientação revolucionária e autogestionária], escrita desde Constantinopla em 27 de novembro de 1929, ele descreveu sua perseguição sem fim: “desde 1922 até hoje eu nunca estive livre de cuidadosas atenções, às vezes da GPU, às vezes dos departamentos de inteligência de vários governos”[90]. Tão difíceis eram as condições que ele buscou o cônsul soviético em Trebizonda sobre as condições para voltar à Rússia, mas nenhum acordo pôde ser alcancado. Durante a primavera de 1929, Miasnikóv entrou em contato com o próprio Trótski, que tinha sido também exilado na Turquia naquele ano. Que Miasnikóv tenha precisado fazê-lo pode parecer surpreendente, já que foi Trótski, alguns anos antes, quem liderara a ofensiva contra os oposicionistas. Naquele momento, no entanto, Trótski, como Miasnikóv, tinha sido expulso do partido e expulso do país. Ele também, apesar do atraso, levantara a bandeira da democracia partidária contra a ditadura da máquina bolchevique. E apesar de negar que isto significasse “uma justificação de Miasnikóv e seus partidários”[92], os dois homens tinham o bastante em comum para se envolverem em discussão amigável. Os dois racharam com o partido comunista rumo a uma política anti-stalinista de esquerda, em questões externas e domésticas. Em relação à China, por exemplo, suas posições eram virtualmente idênticas[93].

Repercussão da prisão de Miasnikóv (La Révolution prolétarienne, avril 1927)
Repercussão da prisão de Miasnikóv (La Révolution prolétarienne, abr. 1927)

Em algumas questões, entretanto, o acordo se provou impossível, acima de tudo sobre a alegação de Miasnikóv de que a Rússia não era mais um “estado operário.” Essa ideia foi adiantada em um manuscrito que ele enviou para Trótski em agosto de 1929, pedindo a ele que contribuísse com um prefácio[94]. Trótski recusou, agarrado à ideia de que, apesar de todas as suas deformidades burocráticas, a Rússia permanecia uma ditadura proletária. O manuscrito de Miasnikóv, o último trabalho conhecido de sua pena, desenvolveu as principais ideias de seus primeiros escritos. A burocracia, ele declarou, ecoando Machajski, tinha “completado sua marcha triunfal.” Ela tinha se tornado uma nova classe exploradora, com seus próprios interesses e aspirações que divergiam agudamente daqueles dos trabalhadores. A Rússia soviética, como resultado, tinha deixado de ser um estado operário. Era um sistema de capitalismo de Estado, governado por uma elite burocrática[95].

Na medida em que o capitalismo de Estado organizava a economia mais eficientemente que o capitalismo privado, Miasnikóv o considerava historicamente progressista[96]. Mesmo assim, os trabalhadores tinham sido roubados dos frutos da revolução e reduzidos a uma “classe submissa”. Para Miasnikóv, o único remédio continuava sendo a renovação da democracia operária. Isso iria implicar, como ele colocava, “uma forma de governo pluripartidário, assegurando todos os direitos e liberdades, de fato e de direito, aos operários, camponeses e intelectuais.” A hostilidade de Miasnikóv aos intelectuais tinha suavizado desde o tempo do manifesto do Grupo Operário. Ele agora distinguia entre burocratas e chefes, de um lado, e “intelectuais honestos de mentalidade proletária” do outro. Os últimos, unindo forças com operários e camponeses, deveriam se esforçar para derrubar a burocracia parasitária. Medidas parciais seriam inúteis, Miasnikóv insistiu. Apenas a destruição do capitalismo de estado e do governo de partido único poderia eliminar o “mal burocrático”[97].

Desse modo Miasnikóv, tendo começado em 1920 por tentar reformar o partido comunista, terminou por rejeitá-lo como sem salvação. Seu lugar seria tomado pelos “partidos comunistas de trabalhadores da USSR” – partidos ele enfatizava, no plural, como opostos ao governo de partido único. Ainda assim uma série de questões permaneceram sem resposta. Por qual processo as metas dos bolcheviques se perverteram? Como aconteceu que uma revolução que iria liderar a libertação da humanidade, rumo a uma sociedade sem classe e sem Estado, na qual a opressão teria deixado de existir, veio afundar no lodo do burocratismo e repressão? Em que medida a degeneração era devida a condições além do controle de qualquer um – do isolamento da revolução em um país atrasado e empobrecido, à devastação causada pela guerra civil, as dificuldades de administrar uma população rarefeita no meio do turbilhão revolucionário e conflito civil? Certamente esses fatores eram importantes. A degeneração não poderia ser atribuída apenas à “burocracia”, menos ainda as maquinações da liderança bolchevique. Além disso, por quê revolucionários que odiavam a tirania autocrática tinham construído sua própria burocracia opressiva? Um destino similar não tinha sobrepujado revoluções prévias? Todas as revoluções degeneram quando os ideais colidem com a realidade política, econômica e cultural?

Folha de rosto da “Plataforma para uma Internacional Comunista Operária” escrita por Miasnikóv em Constantinopla, em 1932

Sobre tais questões Miasnikóv jogou pouca luz. Nem ele próprio, é preciso adicionar, estava imune à crítica. Idealizando o proletariado, de cujas fileiras emergira, ele demonstrou uma feroz intolerância contra as classes médias, uma intolerância que teria condenado sua própria versão do socialismo se tivesse sido alguma vez posta em prática. Por todo autoritarismo e cegueira ética de Lênin, não é um crédito dele que tenha buscado alcançar uma acomodação com especialistas técnicos e outros não-proletários e alistá-los na tarefa da reconstrução econômica? O que é, de qualquer forma, um “Estado operário” e a quem ele iria beneficiar? Certamente é uma sociedade livre onde indivíduos de diferentes antecedentes e interesses podem viver juntos como seres humanos diversos ao invés de como unidades de um partido ou classe.

Pelo resto de sua vida o culto do proletariado dominou o pensamento de Miasnikóv. Nem a experiência decepcionante na Rússia, nem a amargura da vida de emigrado puderam quebrar suas grandes esperanças e fé fervorosa no triunfo final dos trabalhadores. Em seguida à recusa de Trótski, entretanto, ele se tornou uma figura isolada. De Constantinopla ele recebeu permissão para ir para Paris, onde se estabeleceu em outubro de 1930, encontrando emprego em seu antigo ofício em uma fábrica metalúrgica. Em 1931 ele publicou seu manuscrito sobre a burocracia soviética sob o título de Ocherednoi obman (A Ilusão Atual). Dois anos depois, quando o marxista francês Lucien Laurat publicou um tratado similar, Trótski foi rápido em notar o paralelo. Laurat, ele escreveu, estava “obviamente desinformado de que toda a sua teoria tinha sido formulada, apenas com muito mais fogo e esplendor, mais de trinta anos atrás pelo revolucionário russo-polonês Machajski,” e que, apenas recentemente, a mesma ideia tinha sido levada adiante por Miasnikóv, que sustentava que “a ditadura do proletariado na Rússia Soviética tinha sido suplantada pela hegemonia de uma nova classe, a burocracia social”[98].

Em Paris, Miasnikóv encontrou dificuldades para se ajustar. Gradualmente, no entanto, as coisas melhoraram. Ele aprendeu a falar francês e se casou com uma francesa (apesar de Daia Grigor’evna estar ainda viva). Ele encontrou dois conhecidos próximos oposicionistas de esquerda, Ruth Fischer e Victor Serge, que o mencionam em suas memórias[99]. Em 1939, quando Fischer o viu pela última vez, ele pareceu razoavelmente contente. Na deflagração da II Guerra Mundial, Fischer nos conta, ele tomou um curso de reciclagem e graduou-se como engenheiro[100]. Tinha então cinquenta anos de idade.

Miasnikóv permaneceu na França durante a guerra. Então, em 1946, ele desapareceu. Seus amigos em Paris, tentando descobrir o que aconteceu com ele, descobriram que tinha sido levado para a Rússia em um avião soviético. Se ele retornou por vontade própria ou foi sequestrado pelo MVD [N. do T.: sigla em russo para o ministério dos assuntos do interior, que tinha assumido as funções da anterior NKVD e depois as repassaria para a KGB], isto ainda não foi conclusivamente estabelecido. O relato mais confiável, fornecido por Roy Medvedev, segue-se da seguinte forma. No final da guerra um representante do governo soviético veio procurar Miasnikóv e tentou persuadí-lo a retornar. Miasnikóv a princípio recusou, talvez relembrando sua experiência de 1923, quando ele foi atraído de volta da Alemanha por falsas promessas. Ele recebeu garantias, no entanto, de que não havia nada a temer, de que o passado tinha sido esquecido e de que a permissão para viver livremente em Moscou tinha sido concedida pela “mais alta autoridade”, querendo dizer o próprio Stálin. Miasnikóv, apesar de seus temores, finalmente concordou em ir. Quando pousou em Moscou ele foi preso no aeroporto e levado para a prisão de Butyrki[101].

Prisão de Butyrki
Prisão de Butyrki

A tragédia, enquanto isso, tinha recaído sobre a esposa e filhos de Miasnikóv. Durante a guerra contra Hitler, todos os seus três filhos tinham se juntado ao Exército Vermelho e perecido na frente de batalha. Como resultado, Daia Grigor’evna sofreu um colapso nervoso e tinha sido colocada em um hospital psiquiátrico. Liberada depois de um ano, ela nunca se recuperou completamente. Em 1946 veio o choque final. Visitada pela polícia, ela foi informada de que seu marido, o qual ela não via em vinte anos, estava na prisão de Butyrki, e de que ela teria permissão para visitá-lo. Desnorteada pela notícia, ela buscou o conselho de amigos. Finalmente, depois de uma semana de atraso, ela foi a Butyrki. Era tarde demais. Miasnikóv, lhe disseram, tinha sido fuzilado. Ao ouvir isso, Daia Grigor’evna sofreu outro colapso mental e foi levada de volta para o hospital, onde morreu não muito depois[102].

Esse foi o destino de Miasnikóv e sua família. Por seus ideais, pagou o preço final. Mas não foi apagado da memória histórica. Quaisquer que tenham sido suas falhas, e foram muitas, sua carreira heróica, sua recusa em comprometer seus princípios tanto sob o czarismo como sob o bolchevismo, são prova suficiente de sua integridade revolucionária. Tais homens raramente são esquecidos. O historiador da Rússia, explorando os anos após 1917, é conduzido várias e várias vezes a oposicionistas do estilo de Miasnikóv, a suas críticas da política oficial e suas propostas alternativas de construção de uma sociedade socialista. A visão central de Miasnikóv – a visão da participação dos trabalhadores na gestão, de democracia proletária e partidária, de liberdade de discussão e debate, sobreviveu na dissidência soviética recente, e está por chegar o dia em que suas ideias, expressas com tanta persistência e auto-sacrifício, influenciarão a modelagem da política comunista em benefício do povo russo.

Este artigo será publicado em quatro partes:
Introdução
Antes e durante a Revolução Russa
Depois da expulsão do partido
Exílio e últimos anos

Notas

[86] Letters from Russian Prisons, p. 84.

[87] Ibid.

[88] Ibid., pp. 84-85.

[89] Vasser, “Razgrom anarkho-sindikalistskogo uklona,” p. 77, informa incorretamente o local como sendo Bacu.

[90] Maximoff, Guillotine at Work, pp. 272-273, onde a data tem a data informada erroneamente como sendo de 1927.

[91] Cópia da carta de Miasnikóv ao cônsul soviético foi preservada no Arquivo Trótski (T-15048). Ver também Biulleten’ oppozitsii, May 1930; e L. Trótski, Writings of Leon Trotsky (1930), Nova Iorque, 1975, pp. 218-219.

[92] L. Trótski, The New Course, Nova Iorque, 1945, p. 29.

[93] Carta de Miasnikóv a Trótski, 28 nov. 1929, Arquivos Trótski; Biulleten’ oppozitsii, maio 1930.

[94] Carta de Miasnikóv a Trótski, 3 ago. 1929; carta de Trótski a Miasnikóv, 18 set. 1929, Arquivos Trótski; Biulleten’ oppozitsii, maio 1930.

[95] G. Miasnikóv, Ocherednoi obman [A última mentira], Paris, 1931, p. 8. [OBS.: O Passa Palavra está realizando esforços para traduzir este escrito e publicá-lo o quanto antes.]

[96] Tiunov, por contraste, considerava o capitalismo de Estado – ou a “autocracia burocrática”, como também o chamava – uma fase regressiva, sendo “puramente parasitária”. Ciliga, Russian Enigma, pp. 216, 303.

[97] Miasnikov, Ocherednoi obman, pp. 9-10, 18-19. Ver também a carta de Miasnikov a Trótski, 15 out. 1933, Arquivos Trótski.

[98] L. Trótski, Writings of Leon Trotsky (1933-34), Nova Iorque, 1972, p. 112.

[99] Fischer, Stalin and German Communism, p. 247; Victor Serge, Memoirs of a Revolutionary, 1901-1941, ed. Peter Sedgwick, Londres, 1963, p. 132.

[100] Fischer, Stalin and German Communism, p. 247.

[101] Medvedev, “O tragicheskoi sud’be G. I. Miasnikova,” p. 60. Após a guerra, deve-se notar, agentes do MVD na França cercaram exilados russos e enviaram-nos de volta à União Soviética. Ver David J. Dallin and Boris I. Nicolaevsky, Forced Labor in Soviet Russia, New Haven, 1947, pp. 293-295.

[102] Medvedev, “O tragicheskoi sud’be G. I. Miasnikova,” p. 60. O ano de 1946 é confirmado como sendo o ano da morte de Miasnikóv nas notas de Lênin, PSS, vol. 43, p. 47.

Traduzido e anotado por Daniel M. Delfino a partir do original disponível na Russian Review, vol. 43, nº 1 (jan. 1984), pp. 1-29, corrigido segundo a errata disponível na Russian Review, vol. 43, nº 3 (jul. 1984), p. 337 e revisado pelo Passa Palavra. Este artigo faz parte do esforço coletivo de traduções do centenário da Revolução Russa mobilizado pelo Passa Palavra. Veja aqui a lista de textos e o chamado para participação.

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