Nenhuma das iniquidades do capitalismo pode ser erradicadas sem o controle dos meios de produção pelos trabalhadores, e sem o fim do modo de produção capitalista (nomeadamente, produção para o lucro de poucos, não para a necessidade de muitos). Por Michael Roberts

A sessão noturna do primeiro dia da conferência Capital.150 foi sobre como a luta de classes “mapeará” o século XXI. Seria O Capital de Marx ainda relevante para explicar quais são os pontos-chave onde as batalhas da classe poderiam se concentrar?

O professor David Harvey fez a primeira contribuição. David Harvey (DH) é provavelmente o mais bem conhecido acadêmico marxista no mundo. Um renomado geógrafo acadêmico com vários prêmios, DH tornou-se o principal especialista em O Capital e sua moderna relevância e publicou vários livros, além de palestras. Seu site contém aulas sobre cada capítulo de O Capital e o YouTube está cheio de palestras.

Nesta sessão, ele apresentou sua visão acerca de como a luta de classes, ou a luta “anticapitalista”, como prefere chamá-la, é encontrada no capitalismo moderno. Um vídeo desta sessão estará em breve disponível, mas é possível captar a essência do que DH disse a partir de palestras em vídeo anteriores – a mais recente delas é esta aqui (sua mais recente palestra na London School of Economics) ou em seu site. A tese de DH é também exposta em seu mais recente livro, Marx, Capital and the madness of economic reason.

DH começou dizendo que o capital é “o valor em movimento” – um circuito do capital começado com o dinheiro, indo então para a produção de mais-valia; em sequência, com igual importância, segue rumo à realização daquele valor por meio da venda no mercado (circulação); segue daí para a distribuição daquele valor realizado entre seções dos capitalistas (industriais, terratenentes e financistas), para os trabalhadores na forma de salário, e para o governo na forma de tributos.

DH assemelha este circuito ao circuito geográfico do ciclo planetário da água – da atmosfera ao mar, à terra, e de volta à atmosfera. Mas o circuito do capital não é um circuito simples como este, mas uma espiral. Deve continuamente acumular, e circular, e distribuir cada vez mais, ou reverterá numa “má infinitude” (para empregar um termo hegeliano), espiralando para baixo.

DH argumenta que o volume um de O Capital lida apenas com a parte produtiva do circuito (a produção de valor e da mais-valia). O volume dois lida com a realização e circulação do capital entre setores em sua reprodução, enquanto o volume três lida com a distribuição deste valor. E enquanto Marx fornece uma grandiosa análise da parte da produção, seus volumes posteriores não estão completos e foram reunidos desde o rascunho por Engels. E, portanto, as análises de Marx não conseguem explicar os desenvolvimentos do capitalismo moderno.

Veja-se, tal como DH afirma em sua palestra na LSE, a produção é “apenas um pequeno ramo do valor em movimento”. Os pontos mais cruciais do colapso e da luta de classe são agora encontrados fora da luta tradicional entre trabalhadores e capitalistas no local de trabalho ou nos pontos de produção. Sim, a luta de classes continua, mas está muito mais nas batalhas da esfera da circulação (aqui penso que DH se refere, por exemplo, à luta dos consumidores contra os acordos de preços entre companhias farmacêuticas avarentas, contra a manipulação dos “quereres, necessidades e desejos” do povo quanto ao que compram e quanto ao que pensam necessitar); e, na distribuição, em batalhas contra aluguéis escorchantes exigidos por locadores, ou contra dívidas impagáveis como a dívida grega ou o crédito estudantil. Estas são as novas e mais importantes áreas de luta “anticapitalista” fora do âmbito do volume um de O Capital. Elas se localizam em comunidades e ruas, não nos locais de trabalho. Citando novamente DH, as grandes lutas estão noutros lugares “além do processo de produção”.

Há duas questões aqui: primeiro, a base teórica e empírica para as conclusões de DH; segundo, se a luta de classes pode ser encontrada (principalmente) fora dos limites do volume um.

DH fornece uma base teórica para sua tese acerca da luta de classes argumentando que as crises sob o capitalismo são igualmente possíveis de ser encontradas, se não mais possíveis, num colapso da circulação ou da realização (como DH diz que Marx argumentou no volume dois) que na produção de mais-valia. E as crises acontecem com maior probabilidade agora nas finanças e nas dívidas devido à financeirização (retirado do volume três).

Bem, como Carchedi demonstrou em seu artigo (ver a parte um deste relato), por trás das crises financeiras estão as crises na produção de mais-valia, encontradas na lei da acumulação geral de Marx (do volume um) e em sua lei da tendência de queda da taxa de lucro (esta lei é encontrada, mais precisamente, no volume três – pondo em causa a alegação de DH de que o volume três trata de “distribuição”).

A meu ver, os volumes um, dois e três de O Capital interligam-se para nos dar uma teoria das crises sob o capitalismo baseada no impulso para o lucro e para a acumulação de mais valia do capital, que desmorona em intervalos regulares e recorrentes devido à operação da lei da lucratividade de Marx. Como Paul Mattick estabeleceu nos anos 1970,

apesar de aparecer primeiramente no processo de circulação, a crise real não pode ser entendida como um problema de circulação ou de realização, mas apenas como uma disrupção do processo de reprodução como um tudo, que é constituído pela produção e pela circulação em conjunto. E na medida em que o processo de reprodução depende da acumulação de capital, e portanto da massa de mais-valia que torna possível a acumulação, é na esfera da produção que os fatores decisivos (apesar de não serem os únicos) da passagem da possibilidade da crise para uma crise real podem ser encontrados… A crise característica do capital origina-se, portanto, nem da produção nem da circulação tomados em separado, mas nas dificuldades que emergem da tendência de queda da taxa de lucro inerente à acumulação, governada pela lei do valor[1].

Colocadas as coisas nestes termos, duas vulnerabilidades brotam do esquema de DH. Primeiro, ele não menciona a lei da queda da taxa de lucro de Marx. Ele não a menciona em sua apresentação, nem o faz em seu livro mais recente. DH deixou claras as razões em debates comigo e com outros debatedores; ele considera que a lei é irrelevante, e mesmo errada; ademais (adotando o ponto de vista de Michael Heinrich – também na conferência Capital.150 – de que o próprio Marx a teria abandonado). E apesar de tudo lá está a lei, claramente expressa no volume três, oferecendo uma teoria coerente das crises regulares e recorrentes do capital, e que pode ser testada (como o fizeram vários acadêmicos).

Isto me leva à segunda fraqueza: crises são regulares e recorrentes, mas a tese de DH não oferece explicação alguma para tal regularidade. Ademais, tal regularidade pode ser encontrada recuando-se 150 anos até o ano em que O Capital foi publicado (e mesmo antes) sem o papel moderno da finança ou a manipulação moderna de “quereres, necessidades e desejos”. Não ofereceria tudo isto uma explicação diferente da de DH?

Por exemplo, DH quer nos dizer que as crises ocorrem porque os salários são espremidos até o limite, como o foram no período neoliberal depois dos anos 1970 (portanto uma realização, e não uma produção do problema da mais-valia). Mas deveu-se a primeira queda simultânea do capitalismo do pós-guerra em 1974-1975 devida aos baixos salários? Ou, pelo contrário, a maior parte dos analistas (incluindo marxistas) na época argumentaram que se tratava de uma crise de lucratividade, tal como a crise subsequente de 1980-1982. E, ainda por cima, demonstrei que quando os “salários sociais” (benefícios etc.) são levados em conta, a parcela salarial no período neoliberal não caiu tanto, ao menos até o início da década de 2000.

O artigo de Carchedi mostra, também, que as quedas nunca resultaram de um problema de realização (salários e despesas governamentais estiveram sempre em alta antes de cada queda (recorrente) no período do pós-guerra, inclusive na Grande Recessão de 2008-2009). A trituração do crédito e a crise da dívida na zona do euro resultaram da lucratividade decrescente e da mudança para ativos financeiros em busca de aumento nos lucros – e foram, portanto, a consequência de uma crise na lucratividade da produção, não da distribuição.

DH avaliou que o capitalismo funcionou bem nos anos 1950 porque os salários eram altos e os sindicatos, fortes, presumidamente criando demanda efetiva. Um cenário alternativo seria o de que o capitalismo teve uma era de ouro porque a lucratividade estava em alta depois da guerra e o capital podia, portanto, fazer concessões para manter a produção e a acumulação. Quando a lucratividade começou a declinar na maior parte das maiores economias depois de meados dos anos 1960, a batalha entre classes se intensificou (nos locais de trabalho) e, depois da derrota do trabalho, entramos no período neoliberal.

Tudo isto me leva a meu artigo, pois fui o outro palestrante da sessão (apresentação Capital.150). Nele, argumentei que a produção de mais-valia e a acumulação de capital permanecem centrais para a explicação do capitalismo feita por Marx, e do que o leva às suas crises recorrentes. Como Marx o coloca: “O lucro da classe capitalista tem de existir antes de poder ser distribuído”. Não é “um pequeno ramo do valor em movimento” mas sim o maior deles, tanto conceitualmente para Marx quanto quantitativamente, porque em qualquer economia capitalista 80% da produção bruta é composta de meios de produção e mercadorias intermediárias, comparados ao consumo.

Como explicado por Engels, a grande descoberta de Marx foi a existência da mais-valia como o móvel específico da acumulação capitalista e da pauperização do trabalho. Para Marx, a produção de mais-valia vem primeiro e é logicamente primordial, precedendo a circulação e a distribuição. A produção e a circulação não são consideradas por Marx como capazes do mesmo poder explanatório na análise do capitalismo. Marx é cristalino ao dizer que a produção é mais fundamental que a circulação. Como diz Marx, é a produção de mais-valia o caráter distintivo do modo capitalista de produção, não os modos de circulação ou distribuição da mais-valia num nível superficial.

No volume um, Marx mostra que a acumulação de capital toma a forma de investimento em expansão nos meios de produção e na tecnologia, ao tempo em que fragmenta o trabalho num exército de reserva, mantendo, portanto, o conteúdo de valor do trabalho num mínimo. Isto leva a uma crescente composição orgânica do capital (o valor dos aumentos nos meios de produção comparativamente ao valor da força de trabalho). Mas este próprio crescimento cria uma tendência à queda da lucratividade ao longo do tempo, porque o valor é criado apenas pela força de trabalho.

Ao longo da história, a taxa de lucro no capitalismo deveria, portanto, cair (apesar de fatores em contrário). Esta queda leva periodicamente a quedas na produção, e as quedas desvalorizarão e destruirão capital, e portanto reviverão a lucratividade por um tempo. Deste modo, temos ciclos recorrentes e regulares de expansão e queda. Mas não há fuga permanente para o capital. O modo de produção capitalista é transitório porque não pode escapar do inexorável declínio na lucratividade devido à tarefa cada vez mais difícil de produzir mais-valia suficiente.

Neste sentido, O Capital não trata tanto da “loucura da razão econômica”, mas da “razão econômica da loucura”.

Em meu artigo, concentrei-me na Grã-Bretanha nos 150 anos depois da publicação de O Capital de Marx. Mostrei, a partir das estatísticas do Bank of England, como a taxa geral de lucro do capital britânico caiu – não em linha reta, pois houve períodos em que os fatores contrários (uma taxa crescente de mais-valia e uma queda no custo da tecnologia) operaram contra a tendência geral.

De fato, taís períodos, do meu ponto de vista, fornecem indicadores cruciais para o mapeamento da intensidade da luta de classes. Descobri, usando os dados sobre lucratividade e os dados sobre greves disponíveis para a Grã-Bretanha, que sempre que a lucratividade estava em queda num período em que o movimento operário estava forte e confiante, a luta de classes (medida em número de greves) alcançou picos. Foi este o caso na Grã-Bretanha tanto antes quanto depois da Primeira Guerra Mundial, e de novo nos anos 1970.

Todavia, quando o movimento operário estava derrotado e fraco, e a lucratividade estava em ascensão (parcialmente como resultado), como no período neoliberal; ou quando a lucratividade estava em queda ou baixa, nas depressões dos anos 1930 e agora, então a luta de classes no local de trabalho era baixa, também. Nos períodos de “retomada”, quando a lucratividade revertia a tendência de queda e os sindicatos estavam em processo de (re)formação (anos 1890 e 1950), as greves também estiveram em baixa, mas aumentaram gradualmente.

A luta de classes no local de trabalho, portanto, esteve no pico quando a lucratividade capitalista começou a cair, mas o movimento operário estava forte depois de um período de retomada. As melhores condições objetivas para a mudança revolucionária, então, estavam dadas.

Esta análise coloca a luta de classe no local de trabalho no centro do capitalismo porque trata-se da luta em torno da partilha do valor entre a mais-valia e a parcela do trabalho, como Marx pretendeu demonstrar com a publicação do volume um de O Capital. Com isto não se quer negar que o capitalismo cria desigualdades, conflitos e as batalhas fora do local de trabalho em torno de rendas, dívidas, tributos, ambiente urbano, poluição etc. nas quais DH se foca, nem que a luta não entra no plano político por meio de eleições etc.

Mas nenhuma destas iniquidades do capitalismo podem ser erradicadas sem o controle dos meios de produção pelos trabalhadores, e sem o fim do modo de produção capitalista (nomeadamente, produção para o lucro de poucos, não para a necessidade de muitos). E a classe trabalhadora enquanto tal, não os trabalhadores enquanto consumidores ou devedores, permanecem os agentes da mudança do capitalismo para o socialismo. A classe trabalhadora (por qualquer definição) permanece sendo a maior força social na sociedade, e globalmente (mesmo quando definida de modo restrito à classe trabalhadora industrial) nunca foi tão ampla – muito mais ampla que quando Marx publicou O Capital.

Acumulação por despossessão” ou “lucro por meio da alienação”, isto é, trapaça, fraude, fixação de preços, especulação contra moedas etc., que DH apresenta como os principais motores da luta de classes no presente, existiram em muitas sociedades de classe antes do capitalismo, e são, portanto, igualmente partes do capitalismo. Mas O Capital de Marx deixa claro que o coração da luta de classes sob o capitalismo é a batalha em torno do valor de produção, único ao capital. O que sucede ao valor é central e, neste sentido, a saúde de qualquer economia capitalista pode ser medida pelo nível e direção da lucratividade do capital.

O capitalismo tem uma contradição irreversível em sua habilidade de extrair mais-valia suficiente, que leva o capitalismo a crises recorrentes. Elas não podem ser resolvidas por meio de altos salários, mais gastos governamentais ou maior regulamentação estatal das finanças, como teorias econômicas alternativas afirmam. DH nos diz, na conferência, que o capitalismo foi salvo em 2008 por medidas governamentais de investimento de tipo keynesiano na China. A China acumulou enormes dívidas para tanto, e depois teve de exportar capital-dinheiro em excesso para o estrangeiro. Esta tese sugere que políticas keynesianas podem funcionar para evitar quedas (pelo menos por um tempo) e que, portanto, pode haver método nesta loucura da razão econômica. Eu discordo, e explico o porquê em meu artigo. Tratarei da China num artigo futuro, mas por enquanto pode-se ler o que tenho a dizer sobre a China aqui.

Notas

[1] Economic Crisis and Crisis Theory. Paul Mattick 1974, https://www.marxists.org/archive/mattick-paul/1974/crisis/ch02.htm

Traduzido pelo Passa Palavra a partir do original disponível aqui.

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