Por certo o fortalecimento dos aparelhos repressivos estatais nunca é positivo para os anticapitalistas, mas simplesmente bradar contra os militares ajuda pouco a resolver a situação. Por Passa Palavra.

Na última sexta-feira, dia 16/02, o presidente Michel Temer assinou um decreto de intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, com prazo de validade até 31 de dezembro de 2018 e designando o general do exército para o cargo de interventor.

Nos permitimos, nesse momento, levantar algumas hipóteses sobre o que pode acontecer e das consequências da intervenção para as lutas sociais. O cenário no Rio de Janeiro precisará ser observado atentamente.

A crise no estado do Rio de Janeiro é evidente: desde o ano passado não são pagos regularmente os salários do conjunto dos servidores, diversas lideranças políticas do estado estão presas — entre elas quase todos os ex-governadores –, as denúncias de corrupção em todos os níveis são inúmeras, a situação econômica é catastrófica devido à queda do preço do petróleo, à alteração da lei de Royalties e à suspensão das obras em decorrência da Operação Lava-jato. Entretanto, foi outro o motivo apontado na intervenção: ela tem “o objetivo de pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública”.

Como já se tem colocado amplamente nos meios de esquerda, não é a primeira ação do exército para a segurança pública no estado; no entanto, existe uma mudança no marco institucional ao se usar a figura do interventor, prevista na constituição de 1988 mas nunca antes utilizada. O General Braga Netto, comandante militar do Leste, foi designado para o cargo de interventor e assumirá o controle das polícias civis e militares, da administração penitenciária, do corpo de bombeiros, além de poder requisitar o que for necessário para garantir a manutenção da ordem.

É também de amplo conhecimento que o Rio de Janeiro é palco, há muitos anos, de um conflito armado entre diferentes organizações criminosas. Sejam elas associadas ao tráfico de drogas ou a outras atividades ilícitas, elas só existem com ampla anuência das forças oficiais do Estado. Ainda assim o Rio de Janeiro não figura entre os estados brasileiro com maior índice de criminalidade, pois Sergipe, Rio Grande do Norte, Alagoas, Pará, Amapá, Pernambuco, Bahia, Goiás e Ceará passam por situações mais graves.

A hipótese de uma preparação para uma tomada do poder pelos militares nos parece descabida. Porém, algumas hipóteses podem ser levantadas acerca do assunto. A primeira, já ventilada nos meios de mídia, é a de que o governo, sabendo que não conseguirá os votos para a Reforma da Previdência, criou um fato novo que ao mesmo tempo coloca a inviabilidade da Reforma como motivo de força maior e apresenta uma agenda positiva para a população, pois vende a ideia de que garantirá a tão almejada segurança. Essa hipótese ganha força pela suspensão da tramitação anunciada pelo ministro da Secretaria de Governo. Outra, ainda em torno da Reforma da Previdência, é a de que ela será colocada em votação logo após a suspensão temporária do decreto, com alto grau de militarização do cotidiano em um dos estados mais populosos do país, permitindo que os possíveis conflitos a eclodir antes e depois da Reforma sejam amplamente reprimidos. As pressões em favor da Reforma devem ser lidas em um contexto de disputa em torno do orçamento, na qual a Previdência é apresentada como a grande vilã que precisa ser reformada com urgência, já que afeta todas as outra áreas, inclusive a segurança. A intervenção seria uma demonstração de força, uma ameaça, um ensaio. É possível justapor a esta hipótese uma outra: tal grau de militarização se faz necessário para conter as mobilizações contra a Reforma, ainda que restritas a paralisações de um dia, feitas de forma extremamente controlada pelos sindicatos.

A terceira hipótese aventa que tudo está intimamente relacionado com a disputa eleitoral de outubro. As reuniões com os marqueteiros ocorridas logo após o decreto dão um bom indício da tentativa de construir uma boa imagem do MDB (antigo PMDB, com mudança de nomenclatura ainda pendente de confirmação pelo TSE), neste momento tão fustigada. Fortalece essa hipótese o fato das reuniões de marketing terem antecedido as reuniões dos conselhos da República e Defesa Nacional. Considerando que os principais quadros do MDB fluminense estão presos, ou com imagens desgastadas, a intervenção seria uma ação de marketing efetiva direcionada a um tema sensível para a população, dando sinais de manutenção do controle da máquina pública.

Certamente a intervenção irá justificar a entrada ainda mais violenta nas favelas com a morte de ainda mais pessoas. Além disso a presença ostensiva de militares nas ruas dificultará reações ou manifestações populares, tanto as claramente políticas quanto as que não são vistas como políticas, como por exemplo os protestos frequentes denunciando os assassinatos provocados pela polícia, ou porque um tiro de fuzil acertou uma criança etc. Tudo isso em um cenário no qual as pessoas têm precisado se mobilizar por conta de enchentes, ou pedindo a volta do fornecimento de serviços básicos como a eletricidade. Não se pode ignorar que parte desses mesmos serviços básicos são influenciados pelos índices de violência nos estados, como bairros inteiros que não recebem correspondência, ou que têm os fios de energia e de internet furtados.

A extrema-esquerda encontra-se perante essa intervenção em uma situação um tanto delicada. Por certo o fortalecimento dos aparelhos repressivos estatais nunca é positivo para os anticapitalistas, mas simplesmente bradar contra os militares ajuda pouco a resolver os problemas concretos advindos daqueles que são impedidos de circular, que têm medo por si e por seus filhos. Ainda assim essa população que clama por segurança é, ela mesma, alvo das ações repressivas que serão feitas. Para muitas delas a equação se reduz a: tenho mais medo dos bandidos ou dos policiais e militares?

A grande experiência de gestão armada do conflito social feita pelo exército brasileiro é a longa intervenção feita no Haiti. O General Augusto Heleno, que foi um dos coordenadores da campanha no Haiti, se manifestou com preocupação acerca da intervenção, pois seria necessário garantir a segurança jurídica aos militares que executassem aqueles que portem armas de guerra, dizendo que era esse o procedimento adotado no Haiti. No mesmo sentido de garantia aos militares se manifestou o General Vilas Boas, para quem é preciso evitar que exista uma nova Comissão da Verdade. São bem conhecidas daqueles que lutam as condições que se deram as ações da MINUSTAH; talvez a publicização dessas práticas possa ajudar a desfazer a popularidade do exército.

O Rio de Janeiro pode servir assim, mais uma vez, mas agora de forma ampliada, como um laboratório da contenção armada dos conflitos sociais, tal como já ocorre há alguns anos nas UPPs (ver aquiaquiaqui e aqui). Se a estratégia funcionar bem, pode ser levada para os outros estados, animando os gritos de intervenção militar no país como um todo. Se não funcionar será só mais uma ação de marketing ao custo de vidas da população das favelas. A resposta dos trabalhadores a esse cenário precisará demonstrar amplamente os impactos negativos da intervenção militar na vida cotidiana e terá que calibrar suas ações de modo a reduzir as implicações contra-insurgentes dessa medida nas lutas cotidianas. Mais que nunca será necessário que as lutas sociais se deem em solidariedade umas com as outras, visando reduzir a força e o impacto do aparato repressivo em cada ação, em cada manifestação, em cada ato, antes que a lógica do medo impere e resulte em mais imobilismo, permitindo que novas derrotas sejam impostas à classe trabalhadora sem a necessária resistência.

1 COMENTÁRIO

  1. O “mote” segurança pública não é o fenômeno restrito às terras tupiniquins. Consideradas as devidas especifidades, ele é um “mote” global, tanto nos chamados países “atrasados”, como nos “desenvolvidos” (entendo que, atraso e desenvolvimento por serem dois lados da mesma moeda, não seriam uma definição adequada, mas, no momento, fiquemos com ela), como é o caso dos recorrentes atentados nos EUA (há, obviamente, discursos ideológicos nos EUA e na UE que explicam estes atos chamados de terroristas não como consequência das lutas de classes, mas como conflitos étnicos, religiosos, etc – o que demonstra que, além de possibilitarem um engajado e lucrativo mercado, a ideologia “identitária e multicultural” serve de justificativa – tanto à direita, quanto à esquerda, e, por que também não dizer, ao centro…- para explicar estas formas de manifestação da violência). Portanto a globalidade do “mote” segurança pública é premissa capitalista.

    Neste sentido, as ações que os capitalistas impõe pelo mundo, diante da grande crise global, como as reformas trabalhistas e previdenciárias são uma acumulação violenta do capital através da expropriação. Sendo violenta a expropriação, os aparelhos ideológicos e repressivos também precisam ser violentos ou, pelo menos, estarem aptos e prontos à violência. Na verdade, penso eu, a acumulação se dá através da soma da expropriação direta e específica dos trabalhadores com o “desenvolvimento das forças produtivas” do próprio aparelho repressor. “Investir” em segurança é, ao mesmo tempo expropriar e gerar capital.

    Quanto à questão política, João Bernardo em um comentário (http://passapalavra.info/2018/02/118157#comment-327570) sugeriu: “(…) a mais-valia é apropriada pelo conjunto dos capitalistas e só em seguida é repartida entre eles. (…) nesse livro, Marx Crítico de Marx (vol. II, págs. 197 e segs.), eu apresentei o gangsterismo como modelo da repartição da mais-valia, o que talvez ajude a interpretar de maneira não moralista a actual conjuntura brasileira(…)”. Tentei uma interpretação:

    (…) “as relações políticas possuem um caráter feudal. O sistema feudal não se funda sobre a lei, mas sobre as relações de lealdade entre os indivíduos. A política tende, pois, para um sistema feudal. Também as gangs se organizam numa base feudal, isto é, neles tudo se assenta em relações de lealdade, de amizade e, sobretudo, de confiança. Eis uma das razões que levam os políticos e os gangsters a compreenderem-se tão bem e a aliarem-se mutuamente com tanta frequência” (p. 199).

    Num mundo toytista, o toyotismo pode ser também empregado aos gangsters e políticos com ambos desempenhando as mesmas posições e atividades: “As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco” (George Orweell- A revolução dos bichos), ou quem era capitalista… Em tempos de crise, o que sobe à tona é apenas a essência que sob os tempos de prosperidade parecia impoluta. Dos tempos de Marx aos dias atuais, a falsificação dos pães (e de tantas outras mercadorias, entre elas ideias…) deixou seu caráter de contravenção para ganhar status de “produtos naturais e orgânicos”… e, pior, mais caros que os produtos originais que ao tempo de Marx se tentava simular… Assim, a bandalheira no Brasil e no mundo não são um estado excepcional, mas motor do próprio desenvolvimento capitalista… é que ora o porco parece capitalista, ora o capitalista parece porco… enquanto isso nos tornamos consumidores de produtos naturais e orgânicos produzidos na Granja dos Bichos ou na Granja do Solar…

    O aumento do uso da força ideológica e repressiva podem representar, enfim, uma luta entre classes, por isso a redução de direitos trabalhistas e previdenciários; e uma luta intra-classe: “(…) a luta política é o campo em que se definem os critérios de luta pela distribuição de mais-valia e, note-se bem, não apenas da luta pela distribuição de uma mais-valia já produzida ou pela realização final; trata-se, antes de mais, da luta pelas condições de produção, pois são elas a determinarem fundamentalmente as variadas formas de desigualdade na distribuição(…)” (João Bernardo- Marx crítico de Marx, Vol II, p. 204). Na verdade, ambas lutas também são os dois lados de uma mesma moeda, por isso é muito interessante a hipótese do Passa Palavra: “O Rio de Janeiro pode servir assim, mais uma vez, mas agora de forma ampliada, como um laboratório da contenção armada dos conflitos sociais”(…), afinal, “O jogo de forças não se restringe só ao momento em que dura a prática de não realização; pelo contrário, os resultados da luta dependem das “posições garantidas”, ou seja, do condicionamento anterior” (p.208). Possivelmente, eis a razão laboratorial da intervenção…

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