Leia a primeira parte do artigo.

Além dos protestos pela volta dos serviços de eletricidade e água, houve ações que não se limitaram à legalidade, como o sequestro de funcionários da Light por pessoas armadas, exigindo que eles consertassem a rede elétrica. Não eram ações vinculadas diretamente aos protestos, mas certamente foram bem recebidas e serviram de inspiração para os manifestantes, que já contavam com uma dose de radicalização posta em prática por meio do bloqueio de vias principais (como a Avenida Marechal Rondon e Avenida Brasil). Ocorreram 3 vezes: no Morro do Engenho, em Campo Grande e Ramos. Em todos os casos os funcionários foram liberados em segurança e com boa integridade física.

Junto com isso, é preciso dar destaque à tentativa de saque do Supermercado Prezunic, em Senador Camará. É preciso considerar que ocorreu durante um protesto pela volta da energia elétrica, talvez em um contexto com o estabelecimento comercial que já estivesse com risco de ter seus produtos deteriorados. Sem falar do encarecimento de alimentos, levando em conta que a franquia não tem as vendas mais barateadas. Outro saque ocorreu antes das tragédias da tempestade, no dia 13 de fevereiro, durante as festas de carnaval, no supermercado Pão de Açúcar, na Rua José Linhares, no Leblon, um dos bairros com o metro quadrado mais caro do país.

Esses casos de saques, considerando nessa análise, estão relacionados com uma série de crimes para gerar uma situação que justifique o decreto do governo federal. Mas longe de dar um veredicto sobre os verdadeiros motivos dessa operação, é preciso tentar buscar os elementos que saem como chances de reorganização da classe trabalhadora diante do conflito colocado no impasse da segurança pública. Assim, não há a dicotomia “Lei x Crime”, mas os movimentos da luta de classes, enquanto a classe dominante oscila entre a esfera legal e ilegal, da mesma forma que a dominada.

Buscando entender a superfície para deduzir o que está submerso, os saques estão em uma categoria de crimes onde pode-se considerar que ataca somente uma unidade produtiva ou uma empresa, tal qual uma greve, ocupação ou sabotagem. No caso, ela é a apropriação das mercadorias. Independente de qual o destino, apropriação coletiva-gratuíta ou comercial-privada, ambas retornam ao trabalhador de alguma forma, incluindo como redução do preço e reinvestimento dos insumos na força de trabalho. Essa última, perdida maior parte na exploração de mais-valia, já foi objetivo de diversas táticas de movimentos proletários na História. A recuperação de valor pela desapropriação de mercadorias, foi conhecida como “autovalorização”, praticada pela “Autonomia Operária” italiana, no movimento conhecido como “área da autonomia”, durante os anos 1970.

Tais táticas clandestinas eram empregues contra descontos em salários, perdas ou inflação de mercadorias. Eram incluídas dentro de análises sobre os ciclos econômicos, acompanhados pelo preparo de lutas no operaísmo italiano nos anos 1970, onde as táticas variavam. Por exemplo, em momento de ascensão dos ciclos econômicos, promoviam lutas contra o “gatilho salarial”, ou seja, contra a vinculação dos aumentos salariais às variações nos índices nacionais de produtividade: sabotagens, greves, paralisações com o objetivo de ter aumentos salariais, ampliação de postos ou redução de carga horária. Isso perante o aumento de produtividade. Em época muito próxima do operaísmo italiano, no Brasil, a Comissão Executiva Nacional do Partido dos Trabalhadores pretendeu dar início a uma série de (novas) discussões nas instâncias internas do partido visando a Convenção Nacional de fevereiro de 1984.[1] Entre elas, a defesa de saques, expropriações e depredações como soluções coletivas e proletárias para a crise econômica no Brasil da época. Assim como também o apoio a essas práticas e propostas de organizá-las.

A legitimidade política e social das expropriações, em algum momento da história, pareceu inquestionável em meio à esquerda. A questão não era vista somente como um problema de segurança pública, mas como expressão de uma crise social mais profunda. Na medida em que as mercadorias subiam de preço ou salários baixavam, trabalhadores promoviam essas atividades de ação direta.

Atualmente, verifica-se o crescimento dos roubos de carga, muito conhecidos aqui no Rio de Janeiro desde 2017. Segundo dados, houve mais de 11 mil roubos de carga em 2017, num aumento extremamente considerável.

A triplicação, de 2013 a 2017, da incidência de roubos de carga, crime considerado como de caráter potencialmente coletivo e proletário, muda o tom do tratamento. Em 2017, a alegação para a ocupação militar na função de polícia no Rio foi por isso. O mesmo partido, o PT, que teve a posição de apoio a saques, expropriações e ocupações nos anos 1980, quando chegou ao governo federal fez uso de ocupações militares do exército, servindo como exercício para a atual e inédita intervenção, nos tempos da “Nova República”. Agora, o discurso do presidente Michel Temer e do governador Luiz Fernando Pezão é de que o Rio está quase sobre total controle de facções criminosas. O fato é que a incidência desses tipos de delitos pode representar uma possibilidade de descontrole das relações sociais de exploração. Ou seja, a estrutura mafiosa, fechada nas disputas capitalistas de mercado, pode ser superada ao entrar em contato com outros setores da classe trabalhadora e gerar novas formas de lutas. Ou simplesmente a intensificação da crise econômica já promove uma identificação prática, diante da urgência dessas ações como solução. Não é possível que a estrutura de crime, interessada em manter lucros e gestão dessa indústria em suas mãos, promova essa solidariedade de classe. É a própria situação atual que tem potencial de gerar esse encontro, seja pelas tragédias ou pela inventividade da classe trabalhadora.

Não faltam amostras de que tais crimes possuem uma capilaridade social forte, pela simples necessidade e o fato de que uma margarina de um roubo de carga vendida num trem é mais barata do que uma vendida no evento de aniversário do supermercado Guanabara. Mesmo que não haja uma intenção em promover a autonomia e controle sobre seu tempo de trabalho numa coletividade, como havia na “autovalorização” da Autonomia Operária. A compra e existência desse mercado se dá pela incorporação do tempo de trabalho na própria força de trabalho. Ou seja, o trabalho em promover o roubo e o saque, promove um investimento na classe trabalhadora, que alimenta um fortalecimento de sí própria. Essa “economia circular” do crime pode ser, em parte, um reinvestimento da classe em si mesma. Mesmo que aí também havendo exploração capitalista, por uma gestão hierárquica, mafiosa e também acumuladora de mais-valia. Mas, como uma crise econômica, ela também chega ao “submundo” e precisa reinventar novas formas de exploração. Assim, enquanto condenam moralmente o trabalhador que usufrui disso, é a necessidade que o leva a promover a sua “autovalorização”.

Intervenção militar ou exceção democrática?

No decorrer no artigo pretendi analisar e discutir os possíveis motivos da intervenção militar; no entanto, as raízes disso podem ser várias, e talvez seja preciso um outro trabalho para fazer isso. O importante e prioritário aqui é a busca pelo movimento da classe dominante e as novas perspectivas de lutas que surgem para a classe trabalhadora. O fundamental de fazer a primeira análise é entender para onde vão e onde irão se limitar os conflitos. O fato é que existe um temor da indústria do crime e sua instabilidade, conforme a possibilidade de que ela saia do controle de seus gestores.

Se existe alguma articulação no âmbito de governo pela intervenção militar, ela é anterior a qualquer manobra política de Michel Temer diante da reforma da previdência ou qualquer outra medida que ele queira passar no congresso. É preciso levar em conta as camadas que se envolvem na luta de classes na cidade, onde não há somente uma homogeneidade do capitalismo, mas sim diversos setores em disputas. Há muitos indícios de que o exército veio para o RJ diante do aumento qualitativo da violência e crimes, ao mesmo tempo em que existe uma votação da Reforma da Previdência. Ao mesmo tempo em que existe um tom político, ele está no comportamento da classe trabalhadora que vive as contradições internas e externas dessa estrutura, entre os conflitos de uma estrutura mafiosa e o Estado restrito, que fazem parte da própria dinâmica do capitalismo atual.

No entanto, é importante considerar que há outros tipo de crimes aumentando, esses promovem parte do discurso que defende a intervenção militar. Nesses, poderíamos considerar como diferentes dos que já fizeram parte de qualquer mecanismo de “autovalorização” de trabalhadores. Mas simplesmente promovem quem os comete, com um objetivo individualista e contra membros da mesma classe: homicídios e assaltos. É possível perceber que o aumento de roubos de carga, anteriormente mostrado, duplicou de 2013 pra cá, enquanto esses outros aumentaram em ritmo menor.

Repressão preventiva é uma meta das polícias e corpos repressivos pelo mundo. Da mesma forma que é interessante antecipar a demanda à produção, agências tentam prever as tendências transgressoras e agem para impedir um descontrole ou elevação dos seus níveis. Além disso, existe a possibilidade da radicalização da disputa comercial entre Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), vindo de São Paulo para o Rio. Sabendo quão difícil é perceber o que é verdadeiro na narrativa da infiltração de membros da facção paulista nos governos federal e estadual, o que podemos desenvolver aqui é o resultado social dessas ações. O elemento que temos à vista no momento é uma intensificação permanente de outros tipos de crimes, que já foram defendidos por movimentos sociais e partidos de esquerda, inclusive o PT. E no raciocínio da “guerra irregular”, o inimigo é sempre oculto e sem um força regular (exércitos ou bases definidas). Assim, nessa indefinição, enquanto tentam promover um controle e acordo com os gestores das máfias, entendem que é preciso neutralizar a base que faça esse suposto inimigo se desenvolver. Os crimes de tom coletivo e proletário, podem ser um claro potencial disso, e objeto de preocupação dessas agências. Por isso, talvez mais do que um aumento estatístico dos roubos de carga, a ocorrência de dois saques na mesma semana e três sequestros de agentes da Light talvez tenha sido uma preocupação. Todos com o mesmo objetivo da lógica de “autovalorização” da classe trabalhadora, enquanto ocorrem mais de 20 protestos em menos de 36 horas espalhados pela cidade. Podem ser considerados como parte de um aumento qualitativo dos crimes, como foi assumido pelo ex-secretário de segurança pública, o coronel José Vicente Filho.[2]

Não é possível esquecer ou passar rapidamente sobre a possibilidade de um conflito entre o PCC e o CV em terras cariocas. O fato é que diante disso, uma estrutura supercentralizada e cosmopolita, como o PCC, entra em choque com uma mais descentralizada e reduzida aos termos do RJ, como o CV. De qualquer forma, o armamento e o aquecimento de indústria armamentista são inevitáveis; é fácil perceber que a guerra como meio é um fim em si mesmo. Que trabalhadores em extrema precarização se armem e matem a si mesmos por disputas comerciais de seus patrões, isto sempre foi muito bem vindo pela classe dominante, que trata nossos corpos como descartáveis ou peças substituíveis de uma engrenagem; mas existe o constante temor pelo descontrole dessa estrutura, no sentido de que “pobres armados” possam apontar suas armas para outras direções e que os crimes de potencial coletivo possam ter um tom didático.[3]

É preciso considerar que mais do que uma intervenção militar, esta intervenção é parte de uma política permanente de exceção dentro do Estado Democrático. Não há contradição entre os princípios da “República de 1988” e essas práticas, mas sim a promoção de políticas com sérios tons mercadológicos e espetáculo, de modo que a repressão também é um produto. Como foi dito pela professora Jaqueline Muniz, do departamento de segurança pública da Universidade Federal Fluminense, há mais uma intenção de espetáculo e com intenção de atrair mais investimentos. Com uma grande possibilidade de omissão de dados, principalmente da última operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) na Rocinha, Maré e no Salgueiro, não há garantias da efetividade que buscam ter. E nisso, há diversas colocações de generais, que preferem agir por conta própria, com toda a brutalidade militar, mostrando o que aguarda a quem é alvo da violações, como tortura e execução de trabalhadores. A busca por legitimação já foi realizada, agora os mandados coletivos de busca e apreensão revelam que os suspeitos são tão difusos quanto o alvo das ações militares. Nada mais efetivo pra promover um clima de terror sobre o proletariado e obter o espetáculo desejado.

A iminência de ser implementada a Reforma da Previdência pelo presidente Michel Temer não possui comprovações de ter relações diretas com a tomada da segurança pública pelo exército. A relação possível desta é a concretização da crise econômica, onde o proletariado fragmentado do Rio de Janeiro em precarização encontre formas de solidariedade nos mecanismo de “autovalorização” que trazem as práticas de expropriação. Nesse sentido, é importante para a classe dominante que os dominados sintam medo. Mas sem uma apresentação declarada, para que não possam ser alvos de qualquer revide, é importante que a perspectiva democrática permaneça. Assim, o exército age com uma precisão cirúrgica e com uma monstruosa brutalidade em suas operações, onde os outros direitos civis estão supostamente garantidos. Nisso, o inimigo deles também é difuso, podendo ser qualquer um que apresente influências pelas práticas criminosas. Dessa forma, o que está em jogo é mais pensar em como lidar com esse contexto permanente de “exceções”, mais do que confiar na lenda de uma centralidade homogênea do governo federal reduzido para implementar suas reformas. Mas sim, há a clara intenção de promover o controle, brutalidade e repressão contra essa classe trabalhadora; que passa por essas mudanças do ciclo econômico em que vivemos. Essa, que está vivendo a realidade concreta da precarização, está desorganizada o suficiente para não conseguir impedir a manobra institucional do presidente. E a realidade do Estado Amplo nos coloca um desafio para muito além de uma luta na pressão ao Congresso Nacional, que representa o Estado Restrito. É essa já visível precarização, aumento da exploração e desvalorização permanente da força de trabalho, que nos traz o desafio de promover mobilizações para muito além das categorias do funcionalismo público, os acordos de sindicatos e suas centrais. E que realizemos as próximas tempestades, ao invés de esperar ela acontecer.

Agradecimento a um jovem camarada do Centro-Oeste e a outro do Nordeste pelo fornecimento de dados e referências.

Notas

[1]*Dimensão social*
6. A dimensão social da crise- que se exprime, de forma dramática, pela proletarização da classe média e pela pauperização do proletariado urbano e rural – também se manifesta em duas linhas.
(…)
9. Na outra linha, a dimensão social da crise se manifesta por sintomas de dois tipos.
Um, embrionariamente organizado e coletivo, embora ainda improvisado: as depredações de estabelecimentos comerciais, os saques, os ataques às feiras e aos supermercados, a quebra e a queima de veículos de transportes coletivos, a ocupação de terras. Outro, individualista e anti-social (tão anti-social quanto as causas últimas que o condicionam): o assalto, o
homicídio, a criminalidade (…)”.
*Resistência e luta*
36. A primeira dessas formas de luta é representada, por exemplo, pelas ações dos desempregados da Zona Sul de São Paulo, que, em começos de abril, se concentraram no Largo Treze de Maio de saíram em passeata até o Palácio do Governo estadual, com a ocorrência esporádica e eventual de depredações e saques. Antes e depois desse episódio, em numerosos pontos do país – como no Rio e no interior do Nordeste – tem ocorrido manifestações semelhantes, de pessoas empregadas ou desempregadas, que praticam depredações, saques e, em alguns casos, chegam a enfrentamentos com a polícia. A característica fundamental desse tipo de luta popular é que, pelo menos aparentemente, predominam aí o espontaneísmo e a improvisação. A partir de um
mínimo de organização e preparação da deflagração do movimento – levada a efeito por setores populares e políticos – as fases posteriores do seu desenvolvimento vão ocorrendo de maneira improvisada e casual, dependendo da presença maior ou menor da repressão para minguar ou se alastrar, sem direção e objetivos claramente definidos e explícitos. Também é comum ocorrer, nesse tipo de luta, a presença de marginalizados, bem como a infiltração de provocadores e agitadores de direita.“ (Páginas 106 e 112 do livro Pra que PT: Origem, Projeto e Consolidação do Partido dos Trabalhadores. Moacir Gadotti e Otaviano Pereira. 1989, São Paulo, Editora Cortez.)

[2]Um dos principais motivos de intervenção não é pelo aumento das estatísticas. Há uma qualidade de violência no Rio de Janeiro que é diferente de todo o país. Você tem centenas de comunidades dominadas pelo crime organizado. Os criminosos estão armados com armas de guerra como em nenhum local do país, talvez do mundo.”

[3] “[…] a burguesia não consegue deixar de ver com certa inquietação ou mesmo pavor os bandos de traficantes formados por jovens oriundos das favelas. Pobres armados são sempre um pesadelo para a classe dominante, ainda que as armas sejam utilizadas, em princípio, para os pobres matarem-se uns aos outros, como acontece no caso do tráfico. Afinal, nada garante que, mais cedo ou mais tarde, as armas sejam voltadas para o lado dos ricos. Não é um pavor insensato e movido apenas pelo preconceito anti-favela do burguês: os representantes menos ignorantes do capital conhecem história e sabem que diversas lutas e movimentos revolucionários populares por vezes conseguiram parte importante de seu armamento e experiência militar de “bandoleiros” e grupos de bandidos sociais dos quais pouco se temia inicialmente, como foi o caso de Pancho Villa no México ou dos bandos nian na China, entre vários exemplos. A “guerra contra o tráfico”, portanto, também é, de certa maneira, uma “guerra preventiva” contra possíveis movimentos de rebelião das favelas. Que parte das armas, e da experiência em confrontos, do tráfico das bocas, possa ser futuramente utilizado por um movimento de autodefesa armada das favelas, é algo incerto, que não se pode prever, mas uma coisa é certa: se algo assim acontecer, não será por iniciativa do tráfico, mas pela influência de um verdadeiro movimento independente e organizado do proletariado favelado sobre os elementos do tráfico menos corrompidos e mais identificados com as comunidades.” (Maurício Campos, Favelas do Rio de Janeiro: Entre a possibilidade do Poder Popular e o Cerco da Opressão.)

8 COMENTÁRIOS

  1. Perigoso misturar saques e roubo de carga no mesmo saco. O primeiro se dá por meio da apropriação direta de bens por uma massa; no segundo a apropriação destes bens é mediada por uma organização capitalista ilegal, conhecida como crime organizado. Não vejo nada de “potencialmente coletivo e proletário” neste último; coletivo ele é, com certeza, porque ninguém rouba caminhões sozinho, mas proletário… tenho muitas dúvidas. Afinal, do ponto de vista de quem compra, o que diferencia a compra de carga roubada da compra de mercadoria legal, senão o preço? Trata-se de capitalistas que agem por fora das “regras do jogo” para baratear seus custos e aumentar as margens de lucro. Tudo posto na ponta do lápis, os custos com a “comissão” dos assaltantes é certamente menor que os custos com toda a cadeia produtiva e logística que leva da matéria-prima à sua transformação e posterior venda; são menos capitalistas os vendedores de cargas roubadas, enquanto comerciantes, por agirem fora da lei?

    Acho que a questão precisa ser vista por outro ângulo. Os trabalhadores, de fato, querem incorporar cada vez mais valores à sua força de trabalho sem aumentar a parte de seu trabalho que deixam com seus patrões. Se podem comprar bens mais baratos, é claro que vão comprá-los. A existência de um mercado para cargas roubadas não é de forma alguma algo “proletário”, mas representa uma oportunidade criada por uma situação de crise econômica, aproveitada tanto pelos trabalhadores, por poderem comprar bens a preços muito mais baixos que aqueles do mercado “legal”, quanto pelos receptadores das cargas roubadas, que podem concorrer muito vantajosamente com os capitalistas “legais” pelo fato de reduzirem ao máximo seus custos.

    Aí entra a campanha, a meu ver ridícula, que associa a compra de bens roubados à violência contra os caminhoneiros, responsabilizando os consumidores de bens roubados pela violência. Ora, com crise ou sem crise, no capitalismo a violência contra os caminhoneiros seguirá existindo. O negócio é: a crise fiscal, administrativa e econômica em que o Rio de Janeiro está enfiado não apresenta outra saida a trabalhadores cujos salários (reais e nominais) vão sendo mais espremidos a cada dia que passa. O problema não está no consumidor de mercadorias roubadas, mas na crise generalizada por que passa este Estado.

  2. Muito interessante o texto. A observação do Manolo também é importante. Talvez possa ser dito que as lutas que permanecem separadas e isoladas das lutas nas relações de produção, como nesse caso os protestos de rua, saques, etc. são fadadas a, no melhor dos casos, afirmar e fortalecer o capital na sua forma variável, e nunca colocar em questão a venda de si mesmo no mercado de trabalho, ou seja, nunca questionar o capital em si. Até porque, visto que estão afastadas dos meios de produção, essas lutas não tem a capacidade material de agir nesse sentido, assim como, por esta razão, elas não são capazes de se colocar problemas (pensamentos, ideias, teoria) que a tornem protagonistas conscientes de sua práxis nesse sentido (por isso, mesmo que eles ainda possam ter esses pensamentos, ideias, teorias, eles, ainda assim, são fadadas a reduzi-los, na prática, a meros “sonhos” subjetivos). Por outro lado, caso as lutas se comuniquem e sejam rompidas as identidades pré-formadas na sociedade capitalista (empregado, desempregado, avião, soldado do tráfico, ou soldado das forças armadas, etc.), certamente a observação do texto de que as armas hoje usadas contra os proletários possam ser usadas contra o outro lado e que isso é o que mais aterroriza a classe dominante, é muito importante.

  3. Manolo. Acho q ficou bem claro no texto a diferenciação de águas entre a experiência dos saques e dos atuais roubos de carga.
    A estrutura criminosa e acumuladora de mais valia não pretende e nem pode fazer igual foram os roubos de carga da “área da autonomia” no operaismo italiano. A questão colocada aqui é potencial e o assombro que a classe dominante se deixa dominar, pela conveniência da promoção da noção militar de guerra irregular. A repressão a crimes mais qualitativos também tem o caráter de prevenção para que a iminência de conflitos de classes não façam tais estruturas saírem do controle dos gestores mafiosos e da repressão estatal ou para estatal.
    Não se trata da separação entre roubo de carga ou saque. Nem tanto também a estrutura e instituição que cada um dessas atividades possam estar vinculadas. Mas sim a relação desses com o contexto econômico, de crise, e tensão política que é aberta no cotidiano do proletariado. Mesmo que não haja uma coletividade e sim a disputa inter capitalista, esse conflito move o proletariado, que flerta com táticas clandestinas no decorrer de suas lutas. Como foi colocado noinicio do texto. Talvez tenha faltado uma separação mais brusca entre a busca dos motivos possíveis para a intervenção militar e as condições de luta ou organização da classe trabalhadora. Mas, querendo ou não , essas situações se esbarram. Como foi o caso dos sequestros de funcionários na Light pelo religamento de luz.

  4. Não, Belchior, a diferença entre saque e roubo de carga não ficou clara no texto. É você mesmo quem diz: “A triplicação, de 2013 a 2017, da incidência de roubos de carga, crime considerado como de caráter potencialmente coletivo e proletário“… Considerado “potencialmente coletivo e proletário” por quem? Nem as experiências da “área da autonomia” na Itália, nem as velhas resoluções do PT que você citou justificam qualquer ação “ilegal” fora das seguintes circunstâncias: (a) ser uma ação massiva, e (b) não envolver “mediadores” entre a ação das massas e seus objetos.

    Concordo que roubo de cargas, saques e sequestro de funcionários da Light estão acontecendo num mesmo contexto de crise econômica, fiscal, institucional etc. no Rio de Janeiro e por vezes alimentam-se mutuamente, como o texto bem o demonstra; concordo igualmente que a proliferação destas práticas “ilegais” reforça entre os trabalhadores a sensação de que também podem fazê-las; mas o fato de estes fatos acontecerem num mesmo contexto não os iguala em natureza ou caráter de classe. É preciso maior atenção e rigor antes de afirmações deste tipo.

    Em primeiro lugar, para que esteja correta sua afirmação sobre o “caráter proletário” do roubo de cargas resta demonstrar afirmações apressadas como, por exemplo, a de uma suposta proliferação de roubos de carga associados à “área da autonomia” na Itália dos anos 1970, que agora você afirma — e aí você arrisca se bater muito atrás destas informações, porque até onde pude pesquisar não existe nenhuma fonte historiográfica que relacione roubo de cargas e “área da autonomia” na Itália, nem sequer nas entrelinhas. Nem “potencialmente proletário” o roubo de carga é. Mas se eu me estender mais neste assunto terminarei repetindo meu comentário anterior.

    Em segundo lugar, a disputa intercapitalista entre receptadores e comerciantes não move o proletariado. Ou melhor: move-o tanto quanto aquela pesquisa de mercado básica que antecede as compras do mês. Se for assim, Walmart, Carrefour e similares são as grandes organizações a mobilizar o proletariado rumo à revolução… do preço baixo. De igual maneira, seria preciso afirmar o caráter “proletário” da Glacial, da Polar e da Schin contra o caráter “burguês” da Heineken e da Baden Baden. E por aí vai. Percebe? Legal ou ilegal, o que relaciona trabalhadores e receptadores é uma relação de mercado, tal como a relação entre trabahadores e redes atacadistas.

    Em terceiro lugar, o sequestro de funcionários da Light é bem parecido com o saque em suas características de imediatidade: um monte de gente junta (nem precisa ser tanta) pega os ditos cujos e arrasta-os até os equipamentos da empresa para que os religuem, sem a mediação de qualquer sujeito, organização ou força social. Onde está a semelhança? Na ação direta, sem mediações, sem intermediários. Gente resolvendo ela mesma seus problemas, mesmo que para isto precisem quebrar as leis. Coisa que não acontece no roubo de cargas nem na receptação.

    Em quarto lugar, ninguém nas forças armadas é louco de promover “a noção militar de guerra irregular” ao público, em especial para assombrar a classe média. Os debates sobre guerra irregular são restritos aos meios militares, em especial porque a comunicação social e a mobilização da população por meio desta comunicação social são elementos-chave neste modelo de doutrina militar; fazê-lo seria equivalente, por exemplo, a que Napoleão, ao invés de conquistar país após país, debatesse teoria militar pela imprensa para conquistar aliados antes de atacar. Sabemos que não é assim que a coisa funciona. A “classe dominante” se deixa assombrar não pela guerra irregular, mas pelo receio, num contexto de crise institucional gravíssima, de perder seus bens ou mesmo sua vida para as “classes perigosas”, ou seja, para setores da classe trabalhadora que romperam com a submissão ao assalariamento e passaram a viver de atividades “ilegais”.

  5. O aniversário do supermercado Guanabara move trabalhadores no consumo, não pra superar mediações ou para promover coletividade. Eles se socam, bicam e acotovelam pela aquisição de produtos a preço reduzido.
    Parece que vc tá dizendo que eu escrevi que o cv, pcc ada, terceiro comando e milícias tem algum potencial libertário e comunista. E que as máfias que organizam roubo de carga estão socializando os bens com a classe trabalhadora.
    O que existe é o prejuízo direto em perdas de mercadorias pra uma estrutura mafiosa. Na exploração da necessidade em comprar produtos mais baratos no trem da supervia, é claro que os trabalhadores são reduzidos a consumidores e nunca encorajados a imitar esses benfeitores. O que não impede de mostrar uma eficiência do crime , que mobiliza a campanha midiática e moral que culpabiliza o consumo.
    Isso move a classe dominante, que foi um dos motes pra última ocupação militar no Rio, em 2017.
    A estratégia militar nunca é exposta, pq faz parte dela o sigilo. Gostaria de ser um snowden brasileiro e expor publicamente algumas, mas além de arriscar minha vida seria necessário ingressar no meio militar. Seria insuportável pra mim. Mas livros são publicados contando da noção de guerra irregular. E seus discursos e práticas são reforçados todo dia aqui no Rio. Ataques cirúrgicos e localizados, numa brutalidade e letalidade altíssima das ações policiais. A que mais mata no mundo. O fuzil m16 apontado para fora permanentemente nas viaturas dão o recado de que o remédio mais eficiente é quando se mata o corpo e bota uma pistola na mão pra forja de um auto de resistência. Tudo isso graças à paranóia latente que a noção de guerra irregular se utiliza e promove.
    Confesso que não deixei muito claro a diferença desses roubos de carga, que entendo mais como crimes contra a propriedade e mercadorias, diferente de assaltos e homicídios. O aumento deles mostra uma tendência do que a repressão e alguns setores do empresariado estao mais preocupados. Mais até do que administrar a ilegalidade do tráfico de drogas, que tiveram um papel fundamental na implantação das upps.

  6. Belchior, por favor, releia o que você mesmo escreveu no artigo: “roubos de carga, crime considerado como de caráter potencialmente coletivo e proletário…”

    Pela última vez, e não vou mais insistir neste assunto se você não quer ver o óbvio: não sou eu quem está dizendo que “que o cv, pcc ada, terceiro comando e milícias tem algum potencial libertário e comunista“, nem que “as máfias que organizam roubo de carga estão socializando os bens com a classe trabalhadora“; foi você quem o disse, ao escrever uma frase que pode ser interpretada desta maneira.

    Enquanto não temos acesso telepático à sua mente, só podemos dialogar por meio da linguagem, e neste caso por meio da escrita. Ou se tem maior cuidado com o que se escreve, ou depois se corrigem os erros, mas não adianta dizer que não escreveu o que está escrito, fica feio para você. Se quer eliminar a confusão, comece por ler o que está escrito e corrigir o que precisa ser corrigido, por exemplo, por meio de comentários.

  7. “Não é possível que a estrutura de crime, interessada em manter lucros e gestão dessa indústria em suas mãos, ppromova essa solidariedade de classe. É a própria situação atual que tem potencial de gerar esse encontro, seja pelas tragédias ou pela inventividade da classe trabalhadora.”
    Esse é um dos fragmentos que coloca os limites da estrutura criminosa, que pode gestar ou não a onda de roubos de carga.
    Potencial caráter coletivo e proletário é referente a algo que está concretizado. Existe como possibilidade. Como uma pedra em cima de um muro, que tem a energia potencial referente a energia cinética que pode ser realizada quando a queda se precipita e acelera com a gravidade.
    É preciso um empurrão que tire a pedra do alto do muro, como um roubo de carga é preciso de mais elementos para ser realmente coletivo e proletário.
    Ficou realmente ambíguo pq é difícil definir a estrutura mafiosa do crime. Muitos roubos de carga foram acompanhados de saques nos caminhões roubados. Enquanto a maior parte das mercadorias ficou apropriada por essa gerência. Mas aí entra a exploração dessa economia circular, que garante demanda para as vendas no trem.
    De fato a ambiguidade se coloca. Não por ser “perigoso ” a associação de roubo de carga c saque. Mas pela condição q é colocada mesmo

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