Camponeses despossuídos próximos a seu lar (Ucrânia, 1929)
Camponeses despossuídos próximos a seu lar (Ucrânia, 1929)

 

Jan Waclaw Machajski (1917)
Jan Waclaw Machajski (1917)

Uma curta biografia de Jan Waclaw Machajski (pronuncia-se “marráisqui”) pode ser lida aqui.

O golpe de Estado de outubro

Durante todos os períodos de desenvolvimento do marxismo, a tese que afirma que o primeiro passo da emancipação da classe ope­rária consiste na conquista do poder, permaneceu inquebrantável e imutável. A social-democracia tem banalizado um tanto esta tese por sua preconizada política de conquista do poder do Estado unicamente por meio da luta pacífica do parlamentarismo. De hoje em diante, qualquer bolchevique reconhecerá, sem dificuldade e como verossímil, que a “dominação do proletariado” não se obtém pela luta pacífica legal, que esta não tem outro resultado que tornar pacífica e lega­lista a própria social-democracia, e que agora o caminho para ajudar, em qualquer parte, os governos a empreender uma guerra de pilhagem, é compelir as massas operárias de diferentes países a se matarem entre si. O bolchevismo tem restaurado a “pureza” original da fór­mula de conquista do poder de Marx, não somente na propaganda, mas igualmente nos fatos.

O poder não pode ser conquistado pela via pacífica, mas pela violência, por meio de insurreições gerais do povo. Eis o que tem de­monstrado o bolchevismo face aos socialistas; o tem demonstrado, e ninguém discordará, com evidências e certezas das mais brilhantes. Entretanto, a afirmação dos bolcheviques visando a apresentar sua conquista do poder como a ditadura, como a dominação da classe operária, de fato não é mais do que uma das numerosas fábulas que o socialismo inventou ao longo de sua história.

Ainda que os bolcheviques tenham renegado o espírito de conci­liação da social-democracia, a dominação da classe operária obtém-se, para eles, tão rápida e simplesmente como a dominação parla­mentar para os Scheidemann. Uns e outros prometem à classe ope­rária sua dominação, deixando-a nas mesmas condições de servidão e fazendo-a coexistir com a burguesia que possui sempre todas as ri­quezas.

Kuzma Antonovich Gvozdev, ministro do trabalho do Governo Provisório
Kuzma Antonovich Gvozdev, ministro do trabalho do Governo Provisório

Nas vésperas do ano de 1903, o bolchevismo, que se achava en­tão tão conciliador como o conjunto da confraria socialista e demo­crática, assegurava que a derrubada da autocracia deixaria a classe operária dona do país. Em 1917, apenas alguns dias depois do golpe de Estado de Outubro, logo que os bolcheviques ocuparam, nos sovietes, as vagas deixadas pelos mencheviques e os socialistas-revolucionários – Lênin ocupando a de Kerensky, e Shliapnikov a de Gvozdev -, considerou-se que a classe operária, só por esse fato, detinha todas as riquezas do Estado russo, “A terra, as estradas de ferro, as fábricas – tudo isso, operários, de agora em diante é vosso”, proclama um dos primeiros chamamentos do Soviete dos comissários do povo.

O marxismo, pretensamente purificado do oportunismo da so­cial-democracia, revela, todavia, a velha tendência, própria de todos os pregadores socialistas, de alimentar os operários de fábulas e não de pão. O marxismo revolucionário, comunista, tirado da poeira acumulada depois de longas décadas, defende sempre a mesma utopia democrática: o poder absoluto do povo, ainda que ele seja mergu­lhado na servidão, na ignorância e escravidão econômica.

Tendo obtido sua ditadura e decidido realizar um regime socia­lista, o marxismo bolchevista não se desfez do velho costume marxista de sufocar a “economia” operária pela “política”, de distrair os ope­rários da luta econômica e de subordinar os problemas econômicos às questões políticas. Ao invés, tendo criado com êxito sua “obra-pri­ma”, os bolchevistas não deixaram de extraviar as massas operárias, prodigalizando louvações imoderadas ao “governo operário-camponês”.

Será simplesmente porque os bolchevistas apossaram-se do po­der, que a Rússia burguesa deveria imediatamente desaparecer, nas­cendo a Rússia socialista, a “pátria socialista” russa, a despeito de que até agora a “ditadura do proletariado” não tenha socializado as fábricas – e aparentemente não se pense nisso?

Os capitalistas perderam suas fábricas, embora não tenham sido todas tomadas; eles não possuem mais seus capitais, embora vivam quase como que antes. Depois de Outubro, o operário é que seria o senhor de todas as riquezas, esse mesmo para quem os salários, com a alta constante do custo de vida, tornam-se salários de fome; esse mesmo “proprietário de fábricas”, que, na menor greve dos transpor­tes, encontra-se condenado ao pavor da desocupação como jamais se tinha visto na Rússia.

Sim, a ditadura bolchevique é verdadeiramente milagrosa! Ela dá o poder ao operário, dá-lhe a emancipação e a dominação, con­servando para a sociedade burguesa todas as suas riquezas.

Entretanto, afirma a ciência comunista-marxista, a história não conhece outro meio de emancipação; até agora todas as classes libe­raram-se por meio da conquista do poder do Estado. É assim que a burguesia obteve sua hegemonia na época da Revolução francesa.

Camponeses despossuídos próximos a seu lar (Ucrânia, 1929)
Camponeses despossuídos próximos a seu lar (Ucrânia, 1929)

Os eruditos comunistas negligenciaram um pequeno detalhe: to­das as classes que foram libertadas na história eram as classes pos­suidoras, enquanto a revolução operária deveria garantir a hegemonia de uma classe não-possuidora. A burguesia não ocupou o poder do Estado senão depois de ter acumulado, no curso dos séculos, as ri­quezas cuja amplitude nada deixava a desejar com relação à de seus opressores, a nobreza; é somente por esta razão que a conquista dire­ta do poder aparecia-lhe como a instituição efetiva de sua dominação, como o fortalecimento de seu império.

A classe operária não pode seguir o caminho que tem percorrido a burguesia. Para ela, a acumulação de riquezas é impensável; nesse aspecto, ela não pode superar a força da burguesia. A classe operária não pode converter-se em proprietária de riquezas antes de cumprir com sua revolução. É por isto que a conquista do poder do Estado, conduzida por qualquer partido, tão revolucionário e arquicomunista como possa ser, não pode dar nada por si mesma aos operários, fora do poder fictício, da dominação ilusória, que a ditadura bolchevista não deixou de simbolizar até agora.

Os bolcheviques não avançam na resolução deste problema es­sencial, e as massas operárias, que têm começado depois de longo tempo a perder suas ilusões a este respeito, reconhecem a partir de agora que a ditadura bolchevique é completamente inútil para eles, afastando-se dela tanto como o têm feito os mencheviques e os socialistas-revolucionários. Fica claro que este poder não é o da classe operária, que ele não defende senão os interesses da “democracia”, das camadas inferiores da sociedade burguesa: da pequena burguesia urbana e rural, da intelligentsia, qualificada de “popular”, assim como de desclassificados da burguesia e do meio operário, chamados pela república soviética à direção do Estado, da produção e de toda a vida do país. Revela-se que a ditadura bolchevique não terá sido mais do que um meio revolucionário extremo, indispensável para esmagar a contra-revolução e para instaurar as conquistas democráticas. Revelar-se-á igualmente que os bolcheviques suscitaram a insurreição de Outubro a fim de salvar da ruína completa o Estado burguês deliqüescente, pela criação de uma “pátria operária e camponesa”, a fim de salvaguardar da devastação não mais as moradas senhoriais, mas cidades e regiões inteiras ameaçadas, de uma parte, pelas massas fa­mintas da cidade e do campo, e de outra parte, pelos milhões de sol­dados que fugiam do front.

Tudo o que fica da revolução bolchevique não difere muito dos modestos planos elaborados pelos bolcheviques dois ou três meses an­tes do golpe de Estado de Outubro. No seu folheto As lições da revo­lução, Lênin declara muitas vezes que a tarefa dos bolcheviques con­siste em realizar o que querem, mas não sabem pôr em prática, os ministros socialistas-revolucionários: salvar a Rússia do desastre – e só os caluniadores burgueses podem atribuir aos bolcheviques a as­piração de instaurar na Rússia uma ditadura socialista e operária.

Em dois folhetos, escritos posteriormente, Os bolcheviques con­servarão o poder? e A catástrofe que nos ameaça, Lênin explica que a tarefa da ditadura bolchevique e do controle operário será substi­tuir o velho mecanismo burocrático por um novo aparelho popular de Estado; ele preconiza também políticas de emprego das mais fan­tásticas, como, por exemplo, obrigar a burguesia a se submeter e ser­vir ao novo Estado popular, sem que para tanto lhe sejam arrancadas suas riquezas!

A ditadura bolchevique será conhecida como uma ditadura de­mocrática que não devia de nenhuma forma minar os fundamentos da sociedade burguesa. Depois de Outubro, muitas empresas foram nacionalizadas por um decreto cuja execução, ao que se saiba, não é garantida. Muitas dezenas de banqueiros foram privados de suas riquezas, mas em geral as riquezas da Rússia ficam para a burguesia, fundando sua força e sua dominação.

Entrincheirados atrás das posições adquiridas, os comunistas, re­cém-chegados, farão o papel dos democratas burgueses franceses dos tempos da grande revolução, o papel dos célebres jacobinos, cuja car­reira seduz tanto os dirigentes bolchevistas, ao ponto de não serem contrários a imitá-los, seja em suas pessoas, seja em suas instituições.

Selo do Clube dos Jacobinos (1792-1794)
Selo do Clube dos Jacobinos (1792-1794)

Os jacobinos franceses tinham instaurado uma “ditadura dos po­bres” tão ilusória como a dos bolcheviques russos. A fim de assegu­rar ao povo o esmagamento dos “aristocratas” e outros “contra-revolucionários”, de mostrar que a capital e o Estado encontravam-se nas mãos dos pobres, os jacobinos tinham posto os ricos e os aristocra­tas sob a vigilância das massas, e eles mesmos tinham organizado as repressões sangrentas contra os inimigos do povo.

Os “tribunais revolucionários” dos sans-culottes parisienses con­denavam cotidianamente à morte muitas dezenas de inimigos do povo, e conclamavam a atenção dos pobres para o espetáculo das cabeças tombando do cadafalso, embora eles continuassem pobres e servis; igualmente agora, na Rússia, se adormece as massas operárias com detenções de burgueses, de sabotadores, com o confisco de palácios, com a coação da imprensa burguesa e espetáculos terroristas pare­cidos aos dos jacobinos.

A despeito dos horrores do terror jacobino, a burguesia instruí­da tinha compreendido rapidamente que era precisamente esse rigor extremo que a tinha salvo, que com ele tinham-se firmado as con­quistas da burguesia revolucionária, salvado a revolução burguesa e o Estado, da pressão da Europa contra-revolucionária, e ao mesmo tempo inspirado um devotamento a toda prova à “pátria da liberda­de, igualdade e fraternidade” por parte do povo.

Será em vão que os bolcheviques enaltecerão a “pátria socialis­ta” e inventarão formas de governo as mais populares possíveis, en­quanto as riquezas ficarem nas mãos da burguesia, e a Rússia não deixar de ser um Estado burguês.

Tudo o que eles realizaram até aqui não é senão um trabalho de jacobinos: o reforço do Estado democrático, a tentativa de impor às massas a grande mentira segundo a qual depois de Outubro se teria posto fim à dominação dos exploradores e todas as riquezas per­tenceriam de agora em diante ao povo trabalhador; e, além disso, eles suscitaram na Rússia democrática o patriotismo dos sans-culottes franceses.

É com isto que sonhavam os bolcheviques antes de Outubro, em­bora eles ainda se encontrassem vencidos, quando declaravam que eram os únicos que podiam provocar o entusiasmo necessário para a defesa da pátria (Lênin, A catástrofe iminente). Eles não deixaram de pensar assim, uma vez no poder, embora não tenham podido ser bem-sucedidos em fazer reluzir a fé patriótica no seio do exército “en­fermo”; eles pensam nisso ainda agora, proclamando uma nova “guerra patriótica”.

A dominação da classe operária

Juramento do Jogo da Péla (França, 1789)
Juramento do Jogo da Péla (França, 1789)

O poder que cai das mãos da burguesia não pode, de nenhuma forma, ser tomado e conservado por uma classe não-possuidora, de modo que fique para a classe operária. Uma classe não-possuidora e ao mesmo tempo dirigente é um absurdo total. É a utopia funda­mental do marxismo, mercê à qual a ditadura bolchevique pode, fácil e rapidamente, converter-se na forma democrática de acabamento e de reforço da revolução burguesa, uma espécie de cópia russa da dita­dura dos jacobinos.

O poder que escapa aos capitalistas e aos grandes proprietários de terras não pode ser tomado senão pelas camadas inferiores da so­ciedade burguesa – pela pequena burguesia e a intelligentsia, na me­dida em que detêm os conhecimentos indispensáveis para a orga­nização e a gestão de toda a vida do país – adquirindo assim e ga­rantindo solidamente o direito às rendas de seus amos, o direito de receber sua parte de riquezas roubadas, sua parte da renda nacional. Ora, essas camadas inferiores da burguesia, tendo obtido dos capita­listas um regime democrático, voltam rapidamente a um acordo e a uma união com eles. O poder retorna ao conjunto dos possuidores; não pode ser separado muito tempo da fonte de todo poder: a acumu­lação de riquezas.

Não conviria então concluir que os operários devem abandonar toda idéia de dominação? E em qualquer situação? Não, a recusa da dominação significaria a recusa da revolução. A revolução vito­riosa da classe operária não pode ser, verdadeiramente, outra coisa que sua dominação.

Trata-se de colocar claramente a tese seguinte: a classe operária não pode simplesmente copiar a revolução burguesa, tal como lhe aconselha a ciência social-democrata, isto pela única razão de que uma classe, condenada a salários de fome e ao racionamento, não pode de nenhuma maneira acumular, e vê-se mesmo privada de toda possibilidade de fazê-lo, contrariamente à burguesia da Idade Média, que empilhou riquezas e conhecimentos. Os operários possuem sua via própria para se emancipar da escravidão. A fim de fazer sua do­minação possível, a classe operária deve suprimir, de uma vez por todas, a da burguesia, privá-la de um só golpe da fonte de seu domí­nio, de suas fábricas e empresas, de todos os bens acumulados, levan­do os ricos à situação de pessoas obrigadas a trabalhar para viver.

Eis por que a expropriação da burguesia é o primeiro passo inevitável da revolução operária. Certamente, este não é senão o pri­meiro passo na via da emancipação da classe operária; a expropria­ção da burguesia não trará ainda nem a supressão completa das clas­ses, nem a igualdade total.

Depois da expropriação da grande e média propriedade, ficará ainda a pequena propriedade da cidade e do campo, onde a sociali­zação necessitará de mais um ano. Fica, como coisa ainda mais importante, o caso da intelligentsia. A despeito do fato de que suas re­munerações de chefes serão fortemente reduzidas com a expropria­ção da burguesia, ela não será sempre privada da possibilidade de con­servar uma retribuição elevada de seu trabalho.

Enquanto a intelligentsia continuar como antes, única detentora dos conhecimentos e da direção do Estado e da produção, a classe operária terá que levar uma luta pertinaz contra ela, a fim de elevar a remuneração de seu trabalho até o nível dos intelectuais.

A emancipação completa dos operários realizar-se-á quando apa­recer uma nova geração de pessoas, instruídas de maneira igual, de­corrência inevitável da igual remuneração do trabalho manual e inte­lectual, dispondo todos assim de meios equivalentes para educar seus filhos.

A dominação dos operários não pode preceder à expropriação dos ricos. Não é senão no momento da expropriação da burgue­sia que pode começar a hegemonia da classe operária. A revolução operária obrigará o poder do Estado a expropriar a grande e média burguesia e a legitimar a conquista, pelos operários, das fábricas, em­presas e de todas as riquezas acumuladas.

A ditadura marxista

Manifestação durante a Revolução de Fevereiro (1917)
Manifestação durante a Revolução de Fevereiro (1917)

Na medida em que, na época do golpe de Estado de Outubro, tratou-se de uma revolução burguesa “operaria-camponesa”, de uma ditadura democrática, a velha carroça bolchevique tenta, com muito trabalho, se livrar do pântano democrático e tomar uma via nova. No entanto, quanto mais essa via é tomada, mais ela torna-se escarpada. A “introdução imediata do socialismo” é a ordem do dia; assim foi proclamado a todos os ventos na ocasião da dissolução da Assembléia constituinte. A carroça social-democrata volta-se sobre esta via peri­gosa; os passageiros lançam agora, com freqüência, olhares nostál­gicos para o pântano abandonado. Os condutores também não podem resistir. Os comunistas voltam-se para trás e gritam, então, bem forte: “Basta de revoltas! Viva a pátria! Trabalho reforçado para os ope­rários! Disciplina de ferro nas fábricas!”

Os partidários da revolução burguesa, os mencheviques e os dis­cípulos de A vida nova[1], acolhem-nos com uma alegria maligna: “É isso, então! Vocês estão desiludidos! Vocês querem se revoltar con­tra a ‘marcha objetiva das coisas’, contra o ‘ensinamento burguês’! Vocês desejariam a ‘realização imediata’! Vocês não afiançaram se­não a melhor demonstração da ‘impossibilidade total desta meta insensata’.”

É em vão que os membros do pântano democrático se regozijam a esse ponto. A recusa dos bolcheviques de empurrar mais longe as “experiências socialistas” não faz senão provar perfeitamente a im­possibilidade para a social-democracia de derrubar o regime burguês, e não a impossibilidade objetiva em geral de suprimir, por parte da classe operária, a pilhagem que suporta.

Os bolcheviques encarregam-se de uma tarefa que ultrapassa suas forças e recursos. Puseram na cabeça derrubar o regime burguês, baseando-se nos ensinamentos social-democráticos. Mas esses mes­mo ensinamentos são também reivindicados pelos mencheviques “conciliadores” na Rússia, os social-democratas “imperialistas” na Alemanha e na Áustria, assim como pelos “social-patriotas” de todos os países. Este ensinamento aparece no mundo inteiro como um instrumento para apagar a revolução, adormecer as massas operárias, cercando-as de rédeas e extraviando seu espírito; de fato este ensinamento é a arma mais perigosa de que dispõe a burguesia instruída para lutar contra a revolução operaria.

Quando a social-democracia mundial chegou a entregar milhões de operários, mobilizados em princípio para a emancipação socialista, aos bandidos militares a fim de se massacrarem mutuamente, en­tão alguns agitadores do bolchevismo decidiram acusar a social-demo­cracia de “cadáver podre”. Todavia, o ensinamento da social-democracia, seu socialismo marxista, que tinha dado vida a esse “cadáver podre”, fica, para os líderes bolcheviques, sagrado e sem manchas, assim como antes. Parece que a social-democracia não tinha feito senão “trair” seu próprio ensinamento. É verdade que os traidores contam-se por milhões, e que seus “fiéis discípulos”, no momento da revolução russa não eram senão algumas pessoas, Lênin e Liebknecht à cabeça. Apesar de tudo, eles exclamam: “Viva o socialismo marxista, o verdadeiro socialismo!”

Não é senão a história clássica dos cismáticos do socialismo do século passado. As inovações surgem do pântano socialista, não destinadas a encontrar uma saída válida para todo, mas com a finalidade apenas de realizar os velhos preceitos, cumprindo, por exemplo, uma revolução jacobina. É por esta razão que este pântano não se fortalece mais do que por localidades, e isto provisoriamente, para reencontrar em seguida sua pacífica estagnação habitual.

As ilusões socialistas obscurecem o espírito dos operários, desviando-os de uma revolução operária direta, sem se enfraquecer no contato com as inovações comunistas “revolucionárias”, ensaiando-se cada vez mais, reforçando-se sem cessar.

Faz quase vinte anos, se sabe, os bolqueviques constituíam, em companhia dos Plekhanov, Guesde, Vandervelde e outros “social-traidores” atuais, um só movimento social-democrata solidário e unido. É nesta época que foi elaborado, para a Rússia, o ensinamento marxista: a filosofia, a sociologia, a economia política, e rapidamen­te todo o socialismo marxista, embora tenha transformado a social-democracia em um “cadáver podre”, deve ser reencarnado no bolchevismo, provocar como por milagre a derrubada da burguesia e reali­zar a libertação total da classe operária. O marxismo russo, elaborado pelos esforços comuns e concertados de Plekhanov, Martov e Lênin, não tinha jamais encarado um golpe de Estado socialista como principal objetivo. Ao contrário, considerava como impossível em nossos dias a derrubada do regime burguês e delegava inteiramente essa tarefa às gerações futuras.

O marxismo russo, tanto como o da Europa Ocidental, não se ocupava da derrubada do regime burguês, mas de seu desenvolvi­mento, de sua democratização, de seu aperfeiçoamento. Na Rússia atrasada de então, o amor dos marxistas pelo regime burguês tinha atingido limites extremos. Nos primórdios deste século, os bolcheviques e os mencheviques, antes de dividirem-se em duas correntes ri­vais, tinham tomado a seguinte decisão inquebrantável, aprovada pe­los socialistas do mundo inteiro: a tarefa suprema do socialismo na Rússia é a realização da revolução burguesa. Isto significava que toda a tensão de que eram capazes os operários russos, todo o sangue que tinham derramado diante do Palácio de Inverno, nas ruas de Moscou, todo o sangue das vítimas das expedições punitivas de 1905-1906, devia encontrar como desfecho uma Rússia burguesa, progressista e renovada.

A ditadura “operária e camponesa”, ainda elogiada por Lênin em 1906, refletia a união oportunista do marxismo com os socialistas-revolucionários, e não violava nenhum dos preceitos relativos à im­possibilidade da revolução socialista. A ditadura operária e campo­nesa era exaltada só porque a dominação da classe operária sozinha era reconhecida como impossível. Louvava-se a ditadura da demo­cracia burguesa, no espírito dos partidários atuais da Novaja Jizn’, porque considerava-se intolerável a derrubada do regime burguês.

É com esta forma que o marxismo perpetuou-se, por assim dizer, até a própria revolução de Outubro. Sua luz poderosa alumiou tanto os atores da revolução burguesa de 1905-1906 como os social-patriotas da revolução de fevereiro de 1917. Constituía para eles uma inesgotável reserva de preciosas indicações. Teria sido ingênuo pro­curar aí quaisquer indicações sobre a derrubada do regime burguês, sobre a revolução operária. Não se teria encontrado senão a enume­ração de todas as dificuldades, de todos os perigos e caracteres pre­maturos das “experiências socialistas”. É daí que provém o temor supersticioso de todo golpe de Estado socialista, considerado como a maior das catástrofes; o temor que experimentam, tão visivelmente, os Plekhanov, Potressov, Dan e os próprios bolcheviques, assusta­dos por Lênin quando lança a palavra de ordem da revolução ime­diata.

Para dizer a verdade, teria sido preciso que se realizasse um milagre, para que o propósito de Lênin fosse cumprido por seu par­tido e não se transformasse na mais grandiosa demagogia da história das revoluções. Seria necessário que as pessoas se insurgissem contra o regime burguês, embora eles tenham sempre defendido e pregado o contrário. Teria sido necessário que os militantes bolcheviques, que tinham assimilado o socialismo através de obras de Plekhanov, Kautsky, Bernstein – as quais exigiam a educação democrática das mas­sas durante longos anos -, criassem, no fogo da revolução, um novo ensinamento que teria mostrado o caráter supérfluo desta longa preparação. Teria sido necessário que os esforços realizados durante longos anos para se utilizar a luta dos operários em favor dos obje­tivos políticos da burguesia, para impedir toda revolução operária, se transformassem imediatamente na aspiração de provocar esta mes­ma revolução.

A história não conhece tais milagres. A traição dos bolcheviques, neste momento, às palavras de ordem que eles tinham proclamado durante a revolução de Outubro, não tem nada de surpreendente e isso lhes é, enquanto marxistas, completamente natural.

O “socialismo científico”, que venceu e assimilou as outras es­colas socialistas, atingiu uma profunda decrepitude, não tendo dado, como resultado de todas suas batalhas, senão o progresso da demo­cratização do regime burguês. O bolchevismo decidiu ressuscitar a “juventude comunista” do marxismo, e não tem feito outra coisa do que demonstrar ao seu redor que, mesmo assim, o marxismo não está mais em estado de criar qualquer coisa que seja. Explicar o contrá­rio, acreditar nos bolcheviques quando pretendem derrubar o siste­ma de pilhagem defendido por seus irmãos naturais, os social-traidores de todos os países, revelaria a maior das ingenuidades. Os bol­cheviques por sua própria conta, grosseira e cruelmente, escondem tal crença ingênua em seu espírito de revolta.

Quais são estes inimigos do regime burguês, que tendo firmado seu porvir autocrático, decidem adiar para mais tarde a derrubada da burguesia? Se eles têm sentido a “impossibilidade objetiva” de “acabar com a burguesia”, como podem então ficar nos postos que ocupam? Seria, pois, indiferente eles serem a expressão da vontade dos operários, ou executantes da vontade da sociedade burguesa perpe­tuada em vida?

Explicar o comportamento dos bolcheviques pela simples baixeza dos políticos seria muito superficial. Trata-se de determinar, de fato, sua meta suprema, aquela em nome da qual não abdicam jamais, não traem jamais, e para atingir lutam sob a palavra de ordem: ven­cer ou morrer; esta meta suprema, mesmo para os comunistas bol­cheviques, não é outra que a democratização do sistema existente, e não sua destruição.

A causa dos marxistas bolcheviques e a dos “conciliadores-oportunistas” é a mesma. A única diferença que as distingue consiste em que os segundos tomam, para a democratização do regime burguês, os atalhos já explorados pelos Estados constitucionais da Europa Oci­dental, enquanto os primeiros decidiram provocar a revolução, mes­mo contra o regime republicano. Esta diferença não poderia apa­recer senão na Rússia, quando esta potência mundial desabou a tal ponto, que no curso da guerra atual mostrou-se incapaz de defender sua própria existência. A república, conquistada pelos socialistas oportunistas, revelou-se igualmente impotente para se defender contra os golpes do inimigo exterior e da contra-revolução interior.

Uma grande tarefa apresenta-se então diante dos bolcheviques: reconstruir o Estado sobre princípios inteiramente novos e populares, que seriam a fonte de forças indispensáveis para a defesa da demo­cracia contra seus inimigos interiores e exteriores.

Na procura da mais poderosa arma para a salvação da revolução democrática, os social-democratas russos dedicaram-se a revisar todo o arsenal marxista. Esta arma foi finalmente encontrada pelos bolcheviques na concepção marxista da ditadura, que data da revo­lução de 1848-1850.

O poder ditatorial bolchevique destes seis últimos meses recusou-se a demonstrar, de forma irrefutável, que a ditadura comunista re­novada, tanto como o socialismo já velho de um século, nem sabia nem desejava suprimir o sistema de pilhagem. Tendo proclamado solenemente a realização imediata do socialismo na ocasião da única sessão da Assembléia constituinte, e tendo arrancado ao Kaiser um prazo especialmente para isso, a ditadura bolchevique, diante da ta­refa de “expropriar a burguesia”, detém-se bruscamente, instintiva­mente, pois está voltando sobre seus passos face a uma exigência que contradiz sua própria essência.

Então, o que é agora a ditadura bolchevique que se mantém apesar de seu desnorteamento comunista? Nada mais que um meio democrático de salvar a sociedade burguesa contra a desaparição fatal que a espera sob as ruínas do velho Estado; somente a regeneração deste Estado sob novas formas populares, que só a revolução poderia criar. Esta ditadura revela a irrupção revolucionária, na vida do Es­tado russo, das camadas populares mais baixas da pátria burguesa; desde pequenos proprietários do campo, e da intelligentsia popular e operária da cidade.

Os inventores da ditadura comunista presentearam-na aos operá­rios como o passo primeiro e irreversível para a emancipação da clas­se operária, para a supressão definitiva do sistema milenar de pilha­gem; este meio é o mesmo que serviu aos democratas burgueses da Revolução francesa, os jacobinos, para salvar e reforçar o regime de exploração e pilhagem.

O fato de serem os socialistas os que utilizam este meio jacobino não impede que os mesmos frutos burgueses sejam coletados, pois a primeira tarefa de todo socialista contemporâneo é impedir a supressão imediata da burguesia, tanto como a revolução operária.

Agora, no início do terceiro mês da ditadura bolchevique, os representantes mais inteligentes da grande burguesia russa (Riabouchinsky em A manhã russa) têm declarado que o bolchevismo era uma perigosa enfermidade, mas que era preciso suportá-la paciente­mente, pois ela carregava em si uma regeneração salvadora e uma primavera de poder para sua “querida pátria”. Estes mesmos burgue­ses inteligentes preferem Lênin, que excita a “plebe”, a Kerensky, que os defendia contra os “escravos insurretos”! Por quê? Porque Kerensky, por suas vacilações e suas indecisões, enfraqueceu muito mais um poder já cambaleante, enquanto que Lênin eliminou até as raízes todo esse poder fraco, barganhado e incapaz; em seguida ele abriu caminho a um poder novo e mais forte, ao qual o operário russo tem reconhecido direitos autocráticos.

Os Riabouchinsky, que conhecem bem e apreciam o marxismo, são rapidamente convencidos que a ditadura da “plebe” não escaparia dos trilhos deste ensinamento extremamente honorável e, ao final das contas, social-patriótico, e têm compreendido muito bem que cedo ou tarde a força do poder bolchevique poderá tornar-se sua, embora par­tilhada com os novos senhores vindos das baixas camadas liberadas da sociedade burguesa.

Os Riabouchinsky poderiam advertir depois de muito tempo es­tes fenômenos, indiscutíveis e muito regozijantes para eles, a saber:

1. Sob a ditadura bolchevique, o socialismo não deixa de ser o canto de sereia que seduz às massas para a luta pela regeneração da pátria burguesa.

2. A ditadura socialista não é senão um meio de agitação de­magógica para realizar a ditadura democrática.

Não é outra coisa que uma falsa semelhança, proposta pelos comunistas por um tempo muito curto, para sustentar melhor a dita­dura democrática, enfeitada e corroborada pelos sonhos e ilusões dos operários.

3. O poder revolucionário ao qual aspiram as massas, em suas insurreições operárias, se investiu na ditadura democrática, assim co­mo na nova classe política do Estado.

Estas conclusões decorrem indiscutivelmente de toda a história da ditadura “operário-camponesa” bolchevique.

As massas operárias não têm por que se inquietar: segundo as afirmativas dos bolcheviques, todos seus desejos e reivindicações serão realizadas sem demora pelo Estado soviético, executor de sua vontade.

Em conseqüência, toda luta dos operários contra o Estado e suas leis deve desaparecer desde agora, pois o Estado soviético é um Estado operário. Uma luta levada contra ele seria uma rebelião cri­minosa contra a vontade da classe operária. Uma luta assim não po­deria ser conduzida senão pelos vagabundos, pelos elementos social­mente nocivos e criminosos do meio operário.

Desde que o controle operário entrega, segundo os bolcheviques, um poder total aos operários sobre suas fábricas, toda greve perde sentido e fica, em conseqüência, interditada.

A vontade dos operários, se ela se exprime fora ou contra as instituições soviéticas, é criminosa, pois não reconheceria assim a von­tade de toda a classe operária encarnada no poder soviético. Se todos os operários que recebem salários de fome declaram, que o poder so­viético é o poder dos satisfeitos, serão considerados como elementos perturbadores; assim, por exemplo, os desocupados, que se não podem suportar de agora em diante os tormentos da fome e esperar sem queixas o momento de morrer famintos, serão considerados como ele­mentos criminosos; é por essa razão que desde agora são privados do direito de uma organização específica.

Diante dos ricos, que continuam a levar sua mesma vida ante­rior de parasitas, e diante dos desocupados condenados ao tormento da fome, o poder soviético afirma seus direitos supremos, aspira a assegurar a submissão incondicional às leis existentes, a perseguir toda violação da “ordem e segurança públicas”. Todas as perturbações, revoltas ou insurreições são declaradas contra-revolucionárias e tornam-se objetos de uma repressão desapiedada pela força armada soviética.

Os direitos supremos do poder comunista soviético, em breve, em nada distinguir-se-ão dos direitos supremos de todo poder de Estado no regime de exploração existente. A diferença encontra-se apenas no nome: nos países “livres”, o poder do Estado chama-se a si mesmo dominação da “vontade do povo”, enquanto que na Rús­sia o poder do Estado exprimiria a “vontade dos operários”. En­quanto o regime burguês não for destruído, a “vontade comunista dos operários” soa tão oca como a mentira da “vontade democrática do povo”. Enquanto os exploradores continuarem a existir, sua vontade e a de todos os possuidores – e não a dos operários – encarnar-se-á cedo ou tarde na forma do aparelho de Estado bolchevique. Os comunistas começam já este processo, declarando abertamente que é necessário uma ditadura de ferro, não para a “transformação poste­rior do capitalismo”, mas para disciplinar os operários, para acabar sua formação, começada mas não acabada pelos capitalistas, prova­velmente por causa do caráter “prematuro” com que explodiu a re­volução socialista.

Tendo vencido à contra-revolução, com o auxílio dos operários, a ditadura bolchevique volta-se agora contra eles.

Os direitos supremos, inerentes a todo poder de Estado, devem possuir a força absoluta da lei que se apóia na força armada. A de­mocracia que nasce da ditadura bolchevique não ficará atrás da exis­tente em outros Estados. Exatamente como estes últimos, ela dispo­rá não só da liberdade, mas também da vida de todas as pessoas, re­primindo as revoltas isoladas tanto como os levantamentos de massa.

O exército “socialista”, criado pelos bolcheviques, é obrigado a defender o poder soviético, independentemente de todas as guina­das e viragens que deseje realizar o “perspicaz” comando bolchevi­que. Que a expropriação dos ricos seja interrompida, como atual­mente está decidido, ou então que aconteça uma reaproximação com a burguesia; ou ainda que a ditadura bolchevique vá avante em dire­ção ao socialismo ou para trás em direção ao capitalismo, esse exér­cito “socialista” considera em qualquer caso direito seu impor a mo­bilização militar à classe operária.

A obrigação servil imposta à classe operária por todos os Esta­dos, a obrigação de defender na guerra aos seus opressores e suas riquezas, não desapareceu sob a república soviética.

Acredita-se necessária esta obrigação para inculcar aos operários a pretensa confiança especial que entrega-se a eles – e só a eles – reconhecendo-lhes o direito e a honra de verter o sangue em favor do Estado, trajado de um nome mentiroso e vazio, a “pátria socialista”. Como recompensa para tão grande honra, os soldados socialistas de­verão desenvolver, como esperam os bolcheviques, importantes esforços e um marcial ardor contra os invasores das terras russas, iguais pelo menos aos dos exércitos da Convenção, do Diretório, de Napoleão.

As tropas “socialistas” são utilizadas para defender o poder so­viético na frente interna, não somente contra os contra-revolucionários guardas brancos, os partidários de Kalédine, de Kornilov, da Rada ucraniana; desde os primeiros dias do golpe de Estado de Ou­tubro, elas aprendem também a defender, “a sangue e ferro”, a pro­priedade, fuzilando no ato os ladrões e os arrombadores de casas. As punições de guerra do comunismo aplicam-se agora a introduzir a disciplina e a ordem, reprimindo ferozmente os camaradas de on­tem, os anarquistas e os marinheiros, aqueles que não tiveram tempo de compreender que com o “novo curso” o Estado comunista não necessita ter no Exército vermelho elementos críticos e sublevados, fuzilando-se hoje aqueles que se encorajavam ontem. Os “guerreiros socialistas”, depois de terem passado por tal escola, submissos às ordens variáveis de seus chefes, não recusarão a “disciplina revolu­cionária do trabalho” nas fábricas, a repressão das revoltas dos fa­mintos e o esmagamento desapiedado das agitações provocadas por operários e desocupados.

Enquanto a massa operária não seja mais sublevada novamente por exigências precisas de classe, enquanto não se ponha fim aos “novos cursos” e subterfúgios dos ditadores bolcheviques, a burgue­sia democrática do Estado desenvolver-se-á sem estorvo, ressuscitando rapidamente todos os instrumentos de opressão e violência contra os famintos e explorados.

Assim, a ditadura marxista, depois de ter destruído na Rússia todos os fundamentos do velho Estado enfraquecido, criará um novo poder de Estado, dos mais fechados.

Todas as experiências revolucionárias dos marxistas russos de­monstraram que o “socialismo científico”, inspirador de todo o movi­mento socialista mundial, não sabe e não quer derrubar o regime burguês. Ao invés, durante a profunda revolução social que era ine­vitável na Rússia e que, como epílogo da guerra mundial, pode igual­mente sê-lo em outros países, o socialismo marxista indica à social-democracia burguesa mundial um caminho já experimentado para a salvação do sistema de exploração, fornecendo-lhe um meio inesti­mável para se prevenir contra as revoluções operárias.

A contra-revolução intelectual, o controle operário e a expropriação da burguesia

Burocracia no escritório de um soviete
Burocracia no escritório de um soviete

A conquista do aparelho de Estado aparece como um momento tão decisivo para a social-democracia, que esta considera que no curso de uma revolução operária, é por esse ato apenas que tem lugar a derrubada do regime burguês. A partir do momento em que o golpe de Estado bolchevique é reconhecido pelos operários e o poder soviético é instaurado para todos, considera-se que a Rússia e todas suas riquezas serão propriedade dos operários. Desde que a Assem­bléia constituinte, assim como todas as outras instituições eleitas pelo conjunto da população, têm sido dissolvidas, os capitalistas foram privados dos direitos mais elementares e de qualquer participa­ção na atividade legislativa do Estado; em conseqüência, afirmam os bolcheviques, a burguesia fica completamente desarmada, privada de toda força e de toda possibilidade de exprimir oposição à “ditadura da classe operária”.

No entanto, no dia seguinte ao golpe de Estado de Outubro, a burguesia lembrou de maneira muito convincente que podiam lhe tomar apenas uma parte de seu poder, que nenhum golpe de Estado podia tomá-lo inteiro, que nenhum poder de Estado pretensamente operário, por nenhum meio político, por nenhuma repressão ou terror, podia destruí-la e privá-la de suas forças e meios de se defender com sucesso.

O golpe recebido pelos bolcheviques, a partir dos primeiros dias de sua ditadura, foi para eles completamente inesperado. Foi tanto mais doloroso porque não o deram os próprios capitalistas, mas a classe da sociedade burguesa que até então era identificada por todos os socialistas – e mesmo pelos bolcheviques – no campo dos “tra­balhadores”, e que eles tinham sempre defendido contra as acusa­ções “caluniosas” e “mal-intencionadas” de que faziam parte da burguesia.

A intelligentsia interpôs-se assim para a defesa do regime bur­guês, contra as ameaças de Lênin de derrubar esse regime. Ela se manifestou como um verdadeiro exército de trabalhadores “militan­tes”, em auxílio de seus “sindicatos”, empregando a arma “operária” de luta: a greve. Ela espalhou através de todo o mundo, por meio de clamores e prantos, seu protesto contra o bando de bolcheviques que os oprimiam e aterrorizavam, a eles, os “honestos trabalhadores intelectuais”.

A resistência da intelligentsia foi tão forte que quase provocou uma cisão no seio do partido bolchevique, que por pouco não arruína sua ditadura: a intelligentsia bolchevique, atingida no centro de seu coração, recusou-se a aplicar medidas severas contra a “massa labo­riosa” de empregados sabotadores, que tinha em tão alta estima.

Os operários, ao invés, não foram de nenhuma maneira sur­preendidos pela greve dos intelectuais, pois eles sempre têm consi­derado a intelligentsia acomodada no mesmo nível que a burguesia. Eles vêem e sentem bem que as rendas privilegiadas dos amos rece­bidas pela intelligentsia provêm da mesma exploração do trabalho ma­nual feita pelos capitalistas, e repousam sobre as servis rações de fome concedidas aos operários.

Os operários sabem que as rendas privilegiadas dos intelectuais constituem uma parte da mais-valia extraída pelo capitalista e con­sagrada aos administradores: diretores, engenheiros, etc, assim como uma parte de seu trabalho é confiscada pelo Estado na forma de im­postos, para garantir a manutenção dos empregados privilegiados. Nada há de surpreendente, pois, em que toda esta confraria burguesa se revolte, junto com os capitalistas e latifundiários, contra a revo­lução operária, cujo objetivo primeiro é o de suprimir todas as rendas dos amos. No que concerne à “arraia miúda” da intelligentsia, tem seguido seus superiores pela simples força de um estúpido orgulho e preconceitos burgueses, tal como um pequeno proprietário se­gue o ricaço.

A sabotagem da intelligentsia teve um efeito estupefaciente sobre a intelligentsia bolchevique. Os intelectuais bolcheviques, do mesmo modo que os outros socialistas, tinham ensinado toda a vida que o socialismo era a emancipação de todo o “proletariado”, não somente os operários, mas também a intelligentsia. De que forma ia-se rea­lizar o socialismo, se era necessário ir contra a vontade unânime des­tes últimos e declarar-lhes a guerra, tanto como aos capitalistas e latifundiários?

O golpe de Estado de Outubro, provocado pelo chamado dos bolcheviques à realização imediata do socialismo, atingiu uma pro­fundidade desconhecida devido a um poderoso levantamento popular, e apresentou assim um perigo mortal para a burguesia. É certo que o poder encontra-se nas mãos dos marxistas, conhecidos por sua ha­bilidade quando se trata de frear as rebeliões operárias e deixá-las inofensivas quanto ao regime burguês.

Os marxistas bolcheviques pareceram completamente metamorfoseados. Não pensavam exceto em difundir o incêndio das insur­reições, sem pensar na dificuldade que haveria para extingui-las em seguida. Seus mais próximos camaradas, os mencheviques, até asse­guravam que os leninistas estavam transformados em verdadeiros anarquistas.

Assim, os guias bolcheviques tinham representado tão bem os primeiros atos de seu período de “agitação”, que tinham provocado efetivamente um grande terror entre os burgueses. Apesar deles mes­mos, poder-se-ia pensar: os ditadores não iriam se deixar levar pelos elementos revolucionários enfurecidos e utilizar seu poder para uma real supressão do regime burguês?

Se certos bolcheviques deixaram-se sinceramente arrastar pelo entusiasmo, jamais visto, das massas operárias, e se distanciaram por vezes das concepções marxistas; se, de vez em quando, eles coloca­ram-se realmente a questão de saber como “acabar com a burgue­sia”, a sabotagem da intelligentsia cortou definitivamente as asas de suas procuras e ressuscitou em sua memória as velhas fórmulas sobre a “impossibilidade da realização imediata do socialismo”, pois fez voltar seu pensamento à fórmula marxista habitual da “edificação progressiva do socialismo”.

Muito amedrontada nos primeiros tempos da revolução de Outu­bro, a burguesia observou rapidamente que não tinha nenhuma razão para o desespero. É precisamente o que foi confirmado a seguir. Pri­vada do poder do Estado, atordoada pelo levantamento geral do povo, esperava seu fim com angústia; mas eis aí que imediatamente se declara que seu fim em nenhum caso seria instantâneo, mas ao con­trário, muito prolongado, progressivo, em virtude de todas as leis socialistas; que seu fim viria quase insensivelmente sob a forma da edificação socialista progressiva.

Além disso, esta edificação não começaria tudo em seguida; uma preparação anterior, sob a forma de “controle operário”, era indispensável, conforme a infalível prática marxista.

O socialista científico contemporâneo não tem outro programa para derrubar a burguesia que a nacionalização progressiva dos meios de produção. É necessário, para ele, começar pelas “concentrações”, que respondem melhor às necessidades e que estão mais maduras para a socialização; aqui aprende-se a verificar e demonstrar a justeza do método socialista de edificação, para passar posteriormente a ou­tras nacionalizações. Este programa, elaborado pelo socialismo re­formista que prega a supressão da produção capitalista sem violência, sem insurreição, pela via oblíqua da integração do capitalismo ao socialismo, este programa científico revela-se infantilmente impo­tente no momento da revolução.

Seus adeptos aproximam-se com todas as precauções científicas exigidas do gigantesco organismo da produção burguesa, e depois de longas hesitações cortam alguma articulação. Em seguida, esperam que a ferida seja curada para poder dedicar-se progressivamente à amputação de outros membros. Esquecem que a sociedade de pilhagem, mesmo no momento em que seu guardião mais seguro, o Estado, fica completamente desarmado, não é a arena adequada para edificar o socialismo, nem um bom laboratório para experiências científicas. É a arena da luta de classes secular, da guerra social, e é bem ingênuo quem não priva ao vencido, antes de tudo, da fonte de seu poderio.

O programa científico da edificação socialista progressiva, que é o programa do extravio e do embrutecimento das massas operárias, não é senão um frangalho vermelho que se agita para empurrar as massas operárias nos braços dos ditadores burgueses e pequeno-burgueses; é o sonífero das massas, o extinguidor da revolução operária. Eis o papel do socialismo no mundo inteiro; eis o papel represen­tado pelo comunismo bolchevique no golpe de Estado de Outubro.

No terceiro mês da ditadura bolchevique, os sabotadores inte­lectuais começaram a reduzir as greves. Mas não estavam senão os bolcheviques mais à direita para, no caso, cantar vitória, pois a intelligentsia deixava de rebelar-se pela simples razão de que o bolchevismo não se mostrava tão terrorífico como nas jornadas de Outu­bro. Todos compreenderam que as declarações sobre a igualdade dos salários entre intelectuais e operários, e os decretos e ameaças do mesmo gênero, eram apenas demagogia para atrair as massas ope­rárias. Todos descobriram que as nacionalizações bolcheviques não exprimiam nenhuma aspiração firme de suprimir o regime burguês; que essas não eram senão “experiências socialistas” que a sociedade culta, em troca de uma adesão razoável ao poder bolchevique, podia frear e mesmo impedir completamente. Eis por que a burguesia con­sidera como supérfluo continuar subsidiando, a partir de agora, a greve dos trabalhadores intelectuais, eis por que os sabotadores fo­ram solícitos em se reconciliar com o poder soviético.

O fundo do problema reside em que a luta contra a intelligentsia contradiz todo o programa socialista. Os socialistas estão obrigados a defendê-la e não a lutar contra ela. Por mais hostil que ela pu­desse ser contra os operários, os socialistas, dos quais os bolchevi­ques fazem parte, consideraram-na sempre, apesar de tudo, como “parte integrante do proletariado”, momentaneamente corrompida e extraviada pelos preconceitos burgueses.

Ainda que a intelligentsia, em momentos decisivos como as jor­nadas de Outubro, tenha-se reconhecido como inimiga tão feroz da revolução operária quanto os próprios capitalistas, segundo a convicção dos socialistas, ela não teria feito, no caso, outra coisa que trair seus “interesses proletários”, desviando-se provisoriamente e, portan­to, não devendo-se declará-la “inimiga de classe” dos proletários. O bolchevique tenta tornar razoável a intelligentsia, não ousando decla­rar-lhe uma luta inexorável. Enquanto socialista “verdadeiro” e “sin­cero”, enquanto defensor e porta-voz dos interesses da intelligentsia, ele não se converterá jamais em seu inimigo. Permite-se reduzir a vontade dos capitalistas, mas se imporá compor com a vontade da intelligentsia. Como ela protesta de forma unânime contra “as expe­riências socialistas”, o bolchevique é obrigado a levar em conta esta vontade intelectual e abandonar, ou pelo menos frear, a luta contra o regime capitalista.

O pensamento marxista dos bolcheviques, que procura a via das nacionalizações progressivas, sob pressão, para ele irresistível, da sa­botagem dos intelectuais, está fatalmente condenado a se debater com impotência entre utopias socialistas cheias de mofo.

Fazer uma propaganda encarniçada e atrair todos os engenhei­ros e técnicos necessários? Ou então formar os quadros e especia­listas indispensáveis para a produção, por meio de toda classe de cursos para operários? A burguesia russa ou estrangeira poderia esmagar a revolução, antes de serem coletados os frutos deste tipo de empreendimento.

Pode ser então que convenha esperar que os comitês operários, que aplicam o controle operário, possam assimilar a ciência e a habi­lidade dos engenheiros, dos químicos e outros especialistas? Esta fábula teve bastante sucesso em seu tempo, quando vingavam pro­messas ocas, mas já não mais o tem quando se trata de fazer fun­cionar uma produção altamente desenvolvida.

O comunista bolchevique está obrigado a entregar-se à fábula socialista mais vulgar que afirma que as massas operárias, sofrendo durante toda sua vida a servidão do trabalho manual, chegarão sem nenhuma dúvida, em um porvir longínquo, ao nível de conhecimentos da intelligentsia, no meio do desenvolvimento intenso das organiza­ções culturais de instrução e das universidades populares.

O bolchevismo lançou à burguesia uma ameaça mortal, mas não pôde nem quis ir mais além. A vontade da intelligentsia o tem feito recuar.

A intelligentsia russa, bem conhecida por seu espírito de revolta, quase que inteiramente de convicção socialista, conduzida por revo­lucionários de longa data, prestigiados por seus sofrimentos, soube manifestar sua gratidão à burguesia, salvando-a da ruína e da revo­lução operária. Apesar de tudo, ela não quer se glorificar. Ela quer, ao contrário, que os operários esqueçam rapidamente os serviços por ela prestados à burguesia, pois deseja ficar como antes amiga fiel da classe operária, a fim de levá-la, no curso dos séculos, do “progresso burguês” até um “socialismo razoável”.

Da mesma forma, os bolcheviques não estão muito desejosos de lembrar as façanhas burguesas da época da revolução de Outubro. Pois para eles é evidente que a intelligentsia deve ficar como partido “constituinte” do exército proletário.

Os operários poderiam ter confiança na desaparição imediata da burguesia? Não, só era questão de conter um pouco a autocracia do capital por meio do controle operário. Não era questão de pen­sar na realização imediata e total do socialismo. Não se tratava se­não de salvaguardar a possibilidade de edificar uma “pátria socialis­ta” através do “capitalismo de Estado” de Lênin. Os socialistas-revolucionários e os mencheviques desejariam derrubar tal “pá­tria socialista”? Muito pelo contrário, o edifício “operário-camponês” lembra muito o edifício “camponês-burguês” dos Tchernov[2] e o edifício operário burguês dos Liber e Dan[3], esses socialistas inve­terados.

Quando a compreensão das insurreições e vitórias encontra-se reduzida a esta falsa moeda que é o socialismo, os operários acham-se sempre enganados, com a satisfação geral de todos os partidos intelectuais. Os operários que deram sua confiança ao intelectual consideram sempre o socialismo como sendo ouro puro, embora no melhor dos casos não seja outra coisa que cobre vulgar.

A expropriação da burguesia

Cena da peça "A Tomada do Palácio de Inverno", dirigida por Nikolai Evreinov (1920)
Cena da peça “A Tomada do Palácio de Inverno”, dirigida por Nikolai Evreinov (1920)

A partir dos primeiros passos da revolução operária, os parasitas devem desaparecer da sociedade e todos seus membros devem traba­lhar. A revolução operária não chegará a este resultado por meio de medidas grosseiras e primitivas aplicadas pelo governo bolchevique, nem por meio do “serviço de trabalho obrigatório para todos”, cuja execução deve ser supervisionada por uma polícia qualquer – no caso, a guarda vermelha.

A revolução operária obrigará os ricos a trabalhar, depois de ter-lhes arrancado as riquezas que lhes permitiam uma vida de pa­rasitas.

O poder soviético, percebendo que os operários esperam de sua “ditadura operária” as medidas para obrigar os ricos a trabalhar, não encontra outro recurso que a compulsão ao trabalho obrigatório; nisso mostra que sabe imitar os Estados em guerra, quando eles introduzem o trabalho obrigatório para a defesa nacional da sociedade burguesa ameaçada.

Isto demonstra de agora em diante que o poder soviético não tinha e não tem a intenção, no futuro próximo, de tirar os bens dos ricos, de toda a burguesia.

A revolução de Outubro mostrou muito bem que o inimigo da revolução operária e o defensor do regime de pilhagem não é apenas o capitalista, possuidor das fábricas, mas também o intelectual, que detém conhecimentos trocáveis por um salário privilegiado. A intelli­gentsia saciada com fartura, defendendo sua posição dominante, não quis tolerar a dominação dos operários; recusou assumir a direção técnica sem a qual os operários não podem organizar a produção.

A continuidade e o sucesso das greves, conduzidas pelos inte­lectuais, só não foram possíveis graças à indecisão e à recusa do poder soviético de tomar em suas mãos todas as riquezas acumuladas.

Os bolcheviques deram pouca atenção ao fato de as greves dos intelectuais terem sido sustentadas financeiramente pelos capitalistas. Os sabotadores decidiram descansar no que diz respeito aos seus salários. Se eles não tivessem sido pagos, eles se veriam reduzidos à fome. Contudo, a revolução operária, que visava limitar os salá­rios faraônicos dos altos funcionários, em nada os ameaçava. Em conseqüência, ao primeiro sentimento de necessidade, toda a massa de pequenos empregados seria devolvida ao trabalho, e então todos os estabelecimentos e empresas teriam retomado suas atividades ha­bituais.

Suponhamos que o poder soviético decida, sob pressão dos ope­rários, uma expropriação geral simultânea. Neste momento, os pró­prios operários, sem o concurso de comissários especiais nem de ins­trutores, tomariam em suas mãos as fábricas, as empresas com suas reservas, seus cofres e tudo o que corresponda a isto; então, no mais breve prazo, os comitês operários organizam a produção em cada empresa. O poder soviético só tem que proceder à expropriação das empresas mais complexas, como por exemplo: os bancos, as socie­dades por ações, as cooperativas, todos os estabelecimentos onde haja poucos operários e muitos empregados hostis à expropriação. Se atualmente na Rússia se decretasse, por exemplo, que todas as ren­das superiores a dez mil rublos por ano são susceptíveis de confisco, todos os estabelecimentos e empresas pertencentes a particulares encontrar-se-iam nas mãos dos trabalhadores. As altas rendas dos intelectuais poderiam igualmente estar limitadas a esta soma.

Uma expropriação geral e simultânea, que paralisasse até a raiz a oposição da burguesia e previsse a sabotagem e a greve da intelligentsia, seria a garantia contra todo fracasso, ao qual inevitavelmente leva o programa bolchevique e socialista em geral, de nacionaliza­ções sucessivas e progressivas. A expropriação simultânea provoca uma perturbação mínima e, nestas condições favoráveis, pode conjurar inteiramente a crise e a ruína da indústria, às quais leva o pro­grama bolchevique de nacionalizações desdobradas em meses e anos.

As nacionalizações parciais realizadas pelo poder bolchevique servem evidentemente de sinal de alarme para a burguesia, a qual busca converter em dinheiro a maior parte de seus bens, e reduzir a produção a fim de dissimular o mais possível seu capital. Numerosos industriais, apossando-se dos capitais líquidos, abandonam suas fábri­cas ao acaso. O poder bolchevique está obrigado, assim, para não deixar os operários na rua, a financiar com o tesouro público as em­presas abandonadas.

A economia bolchevique não tem outra escolha que entre estas duas soluções: ou bem recorre a uma expropriação geral, definitiva, ou bem cessa toda nacionalização suplementar e, depois de uma etapa intermediária de “capitalismo de Estado”, restaura a velha econo­mia capitalista.

Por que os bolcheviques não são resolutos para realizar uma expropriação geral e simultânea da burguesia? Eles estavam dispos­tos a isso, quando falavam da necessidade de “acabar com a burgue­sia!” Era uma ação muito mais fácil de realizar, e sobretudo de acor­do com as massas operárias, do que seus fantasiosos empreendimen­tos para gerar uma dominação ilusória dos operários.

Os bolcheviques não têm realizado esta expropriação dos bur­gueses simplesmente porque eles não desejam a revolução operária; eles querem somente uma revolução democrática e pequeno-burguesa. Eles não lutam pela emancipação da classe operária, mas defendem antes de tudo os interesses das camadas inferiores da sociedade bur­guesa atual e da intelligentsia. Eles não querem uma expropriação geral, não porque queiram poupar os capitalistas, mas porque temem pelo porvir da intelligentsia; pois a expropriação geral reduziria si­multaneamente as rendas elevadas desta e marcaria o começo da luta dos operários contra os “colarinhos brancos”, pela igualação da remuneração do trabalho físico e manual.

O partido bolchevique é um partido de intelectuais tanto como os outros partidos socialistas, quer sejam mencheviques, quer sejam socialistas-revolucionários ou outros.

Todo socialismo não aspira a outra coisa do que promover os interesses da intelligentsia e não os dos operários. Ele ensina que os capitalistas constituem a única classe dominante da sociedade, explo­rando não somente os operários, mas os intelectuais, sendo uns e outros, então, trabalhadores assalariados.

Nenhuma das tendências ou correntes do socialismo, mesmo entre as mais extremas como o anarquismo ou o sindicalismo revolucioná­rio, admitiram a vida privilegiada dos trabalhadores intelectuais, em­bora as camadas superiores, os grandes doutores, os altos dignitários do governo, os técnicos especialistas na produção e tantos outros, avidamente apanham lucros que não cedem em nada aos benefícios da grande burguesia. Muito pelo contrário, com a eliminação dos ca­pitalistas; o socialismo entrega-lhes o direito de esperar pela íntegra conservação dessas rendas privilegiadas. Alguns representantes do socialismo o dizem abertamente. Não é difícil adivinhar que tal “pátria socialista” em nada se distingue do regime burguês: todo o lucro nacional é repartido entre os intelectuais, enquanto os operá­rios ficam submetidos à escravidão do trabalho manual, convertendo-se em escravos do mundo instruído.

Os operários têm problemas diretamente opostos: diminuir o mais possível as rendas dos intelectuais, transferir em seu favor todo o lucro que levavam os capitalistas para beneficiar seu pessoal de gestão e direção. Antes que a nacionalização progressiva das fábricas – que tão bem convém aos socialistas, defensores dos intelectuais -, eles têm necessidade de uma expropriação geral e imediata.

Como acontece a transferência do controle de uma empresa, por exemplo, de uma indústria metalúrgica, entre o poder soviético e os operários? A questão se resume simplesmente no afastamento dos capitalistas. Nada tem a ver com a questão do salário dos ope­rários; estes são obrigados a trabalhar nas mesmas condições ante­riores, por um salário determinado pelo sindicato bolchevique segundo escalas do ramo da indústria – salário e tarifas que são retomadas pelos empresários privados. Este salário é muito baixo e não segue a alta do custo de vida. Os bolcheviques esperam assim garantir o mesmo benefício aos capitalistas privados e ao Estado, quando este os substituir.

Se os bolcheviques decidem nacionalizar um ramo inteiro da indústria, por exemplo o da siderurgia, todos seus operários serão evidentemente colocados na mesma situação que dentro de uma fábri­ca isolada submetida a confisco. O sindicato bolchevique e o comis­sariado do trabalho esforçar-se-ão para não tolerar nenhum aumento de salário. O lucro obtido pelo patrão deverá pertencer, segundo seus cálculos, ao Estado, e não aos operários, isto é, servirá à manutenção dos funcionários de Estado privilegiados e de todos os dirigentes e “educadores” da classe operária.

Os empregados superiores, especialistas da produção socializada, esforçar-se-ão da mesma maneira para regatearem em seu benefício salários tão elevados quanto antes, o que atualmente os bolcheviques estão inteiramente de acordo em lhes dar.

Tal procedimento para suprimir exploradores, necessaria­mente, deve provocar a indignação dos operários. Os exploradores são expulsos de todo um ramo da indústria, e disto não se obtém nenhum benefício para as massas operárias, e nenhum aumento de sua ração de fome.

A única constante e verdadeira via de luta operária no mundo é e continua a ser a luta pelo aumento da remuneração do trabalho manual, o que as massas operárias sempre quiseram, apesar de seus educadores, profetas, tutores e deputados socialistas.

No regime burguês, o poder dos capitalistas e a inviolabilidade do lucro patronal fazem com que o aumento dos salários acarrete, geralmente, fora de raros casos isolados, o encarecimento das merca­dorias produzidas pelos operários. É por esta razão que o aumento dos salários se reduz, amiúde, a nada quando é acompanhado do encarecimento dos objetos de consumo!

Esta questão apresenta-se de forma completamente diferente quan­do esse aumento de salários está ligado à expropriação da burguesia. Neste caso, todo o benefício e todas as altas rendas devem ser expropriadas em favor dos operários e entrar totalmente dentro de seus rendimentos. Em conseqüência, o salário pode e deve ser am­plamente elevado sem que haja, em contrapartida, encarecimento dos objetos de consumo e das mercadorias.

A revolução operária que se aproxima será uma luta por uma maior remuneração do trabalho manual. Quando esta chegar a ser igual a do trabalho intelectual, depois de uma última pressão, a servidão secular do povo operário, então, será superada. Desta maneira, ao final desta revolução operária, as famílias proletárias e intelectuais possuirão meios quase idênticos para educar seus filhos; não mais se encontrará, na nova geração, milhões de homens conde­nados, antes de nascer, à exploração e à servidão, homens que são atualmente despojados de todo saber e aptos somente para o tra­balho manual, que nascem escravos da sociedade burguesa culta.

A revolução operária consiste – durante todo seu percurso – na expropriação das classes possuidoras em favor dos explorados, em vista do aumento dos salários dos operários.

A burguesia primeiramente, como proprietária de bens gerados no decurso dos séculos, dos meios de produção, e em seguida a intelligentsia, proprietária dos conhecimentos, devem ser ambas privadas de seus benefícios e rendas privilegiadas, para que todos os bens e a civilização se tornem atributo de todos e sejam distribuídos, em sua totalidade, de maneira igual.

Notas
[1] Navaja Jizn’, jornal publicado por Máximo Górki em Petrogrado, em 1917-1918.
[2] Líder socialista-revolucionário. Presidente da efêmera Assembléia constituinte.
[3] Líderes mencheviques.

Publicado originalmente em 1918, este artigo foi traduzido por Horácio González, revisado por Heitor F. da Costa, Aníbal Mari e José E. Andrade e publicado originalmente na coletânea Marxismo heterodoxo organizada por Maurício Tragtenberg (São Paulo: Brasiliense, 1981). Este e outros escritos de Jan Waclaw Machajski jamais foram reeditados em língua portuguesa. Este artigo faz parte do esforço coletivo de traduções do centenário da Revolução Russa mobilizado pelo Passa Palavra. Veja aqui a lista de textos e o chamado para participação.

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