Por Passa Palavra

O relato de um companheiro hoje residente numa cidade no interior do Mato Grosso do Sul suscitou entre nós várias questões, resultando num debate sobre vários assuntos correlatos em torno do seguinte tópico: existem lutas sociais nas pequenas e médias cidades brasileiras? Eis um resumo deste debate, na forma de texto corrido.

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Uma hipótese inicial: o Centro-Oeste e suas cidades pequenas e médias expressam a tendência do futuro do país. Explicando melhor: a crise só não bateu no agronegócio, e este agronegócio é atravessado por lutas de classe como qualquer outra forma de exploração do trabalho alheio. Se as metalúrgicas do ABC forjaram um Lula, o que o proletariado do agronegócio vai forjar?

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Há quem diga que o proletariado do agronegócio não tem organização para fazer luta social e, consequentemente, história, ou capacidade de fazer história. Por enquanto no máximo o que há são paralisações contra demissões, redução de salário e condições de trabalho degradantes. No que diz respeito a fábricas da JBS, frigoríficos etc., o que recebemos de informes parece apontar que não existe cultura de luta, estratégia, nada perto disso. O máximo que encontramos no Centro-Oeste brasileiro seriam sindicatos locais, correias das centrais paulistas e cariocas. Mais difícil ainda é receber informes sobre os trabalhadores da soja, do milho, do algodão etc., mesmo porque ali parece viger o contrato temporário de prestação de serviço (colheita, transporte etc.).

Quem ressalta a passividade do proletariado do agronegócio defende também que uma coisa é fazer lutas defensivas locais, tão válidas e necessárias quanto qualquer luta, mas outra coisa muito diferente seria fazer lutas ofensivas em nível regional e nacional. Tratar-se-ia de um salto gigantesco. E o que nos chega de informes a respeito das formas de luta nas cidades pequenas e médias parece estar restrito à atuação individual nas redes sociais, massificando ideologias, escrevendo ou repassando notícias e postagens indignadas com a corrupção. De propositivo haveria a boa e velha campanha para “desta vez” eleger políticos honestos.

Segundo os relatos que nos chegaram, não apenas “inexistem” organizações e lutas de esquerda como existem, e de forma bastante articulada, organizações de direita, em especial religiosas, promovendo atos, passeatas, shows e eventos em defesa de bandeiras retrógradas, como, por exemplo, contra a legalização do aborto, contra a legalização do casamento homoafetivo e a própria questão da identidade de gênero etc. Tudo com apoio maciço da população local. O espaço de organização dos trabalhadores estaria preenchido por organizações de direita oriundas de igrejas católicas e protestantes, maçonaria, rotary, lions etc. Mais que isso, a própria sociabilidade dos trabalhadores já estaria assustadoramente engolfada: feriados, fins de semana, férias e datas festivas estão sendo via de regra comemoradas integralmente dentro das igrejas e sedes de organizações de direita, fortalecendo a lógica de seita.

Neste cenário, bastante pessimista, parece não haver espaço para outra coisa senão o ganho de expressividade política das mais variadas formas de fascismo.

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Esta posição, entretanto, nega alguns dos efeitos de tendências demográficas e econômicas elementares. Diversas pesquisas do IBGE registram mudanças drásticas na geografia econômica do país entre 1970 e 2010.

Vejamos os dados sobre a transformação industrial. Segundo a Pesquisa Industrial Anual (PIA) do IBGE, em 1970 o Sudeste concentrava 80,7% desta atividade econômica no país, e em 2010 concentrou 61,8% (queda de 23,42% na participação). Poderia ser o caso de uma simples desindustrialização, mas os dados indicam, na verdade, uma desconcentração geográfica da produção industrial. No mesmo setor e no mesmo período, a participação do Sul na transformação industrial cresceu de 12% para 20,5% (aumento de 70,83%); a participação do Norte saltou 0,8% para 4,8% (aumento de 500%); a do Nordeste cresceu de 5,7% para 9,2% (aumento de 61,4%) e, por fim, a do Centro-Oeste passou de 0,8% para 3,7% (aumento de 362,5%).

Em quarenta anos, portanto, operou-se uma tendência à desconcentração geográfica da transformação industrial no Brasil, por força de vários fatores. A implementação da Zona Franca de Manaus (ZFM) pode explicar o crescimento industrial do Norte, cujo salto foi tão drástico por força da virtual inexistência de indústrias na região antes da implementação da ZFM.

O salto mais notável na participação na transformação industrial ocorrida no Brasil se deu na região Centro-Oeste. Ele pode ser explicado principalmente pela oportunidade de obtenção de energia mais barata criada com a implementação de hidrelétricas como as de Ilha Solteira (SP/MS, 1973); Jupiá (SP/MS, 1974), São Simão (GO, 1978); Itumbiara (GO/MG, 1981); e Três Irmãos (SP, 1999). Elas aumentaram o aproveitamento energético das bacias fluviais da região, iniciado nos anos 1950 com a hidrelétrica de Cachoeira Dourada (GO).

A implementação deste parque hidrelétrico deu o pontapé inicial para a industrialização na área que vai de Goiânia a Brasília, passando por Anápolis, com foco nas indústrias alimentícia, têxtil, de produtos minerais e de bebidas. Em Anápolis foi criado o Distrito Agroindustrial de Anápolis (DAIA), que desde 1976 recebeu indústrias do ramo alimentício, têxtil, automobilístico, de adubos e de materiais para construção, além de possuir um porto seco.

Catalão (GO) é sede de um importante polo minero-químico e metal-mecânico, com destaque para a montadora de automóveis Mitsubishi e a montadora de máquinas agrícolas John Deere. Ainda em Goiás, cidades como Rio Verde (217 mil hab.), Itumbiara (102 mil hab.), Jataí (98 mil hab.), Mineiros (62 mil hab.) e Mozarlândia (14 mil hab.) possuem importantes indústrias alimentícias; Uruaçu (39 mil hab.), Minaçu (31 mil hab.) e Niquelândia (45 mil hab.) têm indústrias de extração e processamento de minérios; Jaraguá (48 mil hab.) é um polo da indústria de vestuário e Senador Canedo (51 mil hab.) tem sua economia voltada para a indústria de calçado, de móveis e petroquímica.

Três Lagoas (MS) exemplifica bem como cidades do Centro-Oeste onde se radicam empreendimentos ligados à transformação industrial passam por urbanização velocíssima; projeções demográficas estimam que em 2020 Três Lagoas, que em 1940 mal chegava a uma população de 15 mil habitantes, por força dos bilhões de dólares em investimentos que tem recebido nas últimas décadas, ultrapassará Dourados como segunda cidade mais populosa do Mato Grosso do Sul.

Vejamos, paralelamente, dados sobre a produção agropecuária. A Pesquisa Pecuária Municipal (PPM) e a Produção Agrícola Municipal (PAM), ambas do IBGE, indicam que em 1970 a região Sudeste concentrava 37,3% da produção agropecuária do país, contra 29,7% em 2010 (queda de 20,37%); o Sul participava com 33,8% da produção nacional em 1970, contra 28,2% em 2010 (queda de 16,56%); já o Nordeste, região que concentra, historicamente, a maior população rural do Brasil, participava em 1970 com 18,3% da produção agropecuária nacional, contra 14,3% em 2010 (queda de 21,85%). A tendência de queda nestas regiões pode ser contraposta às regiões de expansão da fronteira agrícola brasileira. O Norte contribuiu em 1970 com 3,1% da produção agropecuária do país, contra 7,0% em 2010 (aumento de 125,8%); já o Centro-Oeste contribuiu em 1970 com 7,5% da produção agropecuária brasileira, contra espantosos 20,8% em 2010 (aumento de 177,33%).

Sabe-se bem que para onde vai o capital, vão também os trabalhadores, e em ondas maciças. As tendências migratórias do Censo 2010 são majoritariamente para cidades com população entre 100 mil e 1 milhão de habitantes, com preponderância daquelas do Centro-Oeste. Apesar da tendência capital-intensiva do agronegócio brasileiro nas últimas décadas, o trabalho nos latifúndios convive com a parceria, a meação e outros modos de exploração da mão de obra camponesa exteriores ao assalariamento clássico. Quanto aos trabalhadores temporários do agronegócio, os safristas (o nome varia de região a região), trata-se de trabalhadores sujeitos a processos de trabalho diferentes dos trabalhadores fixos, mas tanto uns quanto os outros lutam e se organizam, de acordo com as possibilidades concretas. Ademais, a dinâmica habitacional dos trabalhadores agrícolas mudou: sua tendência é de morar nas periferias das cidades médias, não mais nas roças e povoados.

Estas tendências demográficas e econômicas por si só deveriam chamar a atenção para a possibilidade de existência de organização e luta dos trabalhadores, e de buscá-las onde talvez existam antes de dizer sem apelação – como muitos fazem – que não existem. Negar-lhes “história” ou “capacidade de fazer história” – numa reedição do velho argumento hegeliano de que os povos sem Estado, demasiado próximos da “natureza” e “incapazes” de quaisquer “inovações significativas”, não tinham “história” – equivale a negar-lhes existência. Na luta anticapitalista a falta de informações sobre lutas não deve em hipótese alguma ser substituída pela presunção de sua inexistência, pelo contrário. Sendo um sistema inerentemente instável, o capitalismo opera modernizações que inevitavelmente aguçam os conflitos entre as classes sociais envolvidas. Se a modernização e industrialização caminham a passos largos para o interior do país é preciso então dar maior atenção às tendências geográficas e aos fenômenos econômicos e políticos por trás delas. Paralisações contra demissões, condições de trabalho e reduções salariais, por exemplo, já são sinais claros de que alguma organização há, pois não brotam do nada. Se paralisações contra demissões ou contra reduções salariais não são um bom ponto de partida, como esperar coisas mais avançadas de qualquer lugar que seja? Ou, pondo a questão de outro modo: se esta é a forma mais visível de lutas, quais são as menos visíveis?

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Descendo das estatísticas, delimitadoras de um campo geral onde se podem formular apenas hipóteses muito amplas, vejamos alguns sintomas destas lutas locais de menor visibilidade.

Na esquerda e extrema-esquerda não são poucos os que passaram pelos bancos da universidade, formaram-se como professores e vivem atrás de melhores oportunidades de venda de nossa força de trabalho. Estas oportunidades costumam estar associadas aos concursos públicos para ensino universitário ou técnico, modalidade especialmente aguardada por força da abertura de centenas de novas universidades e escolas técnicas fora dos grandes centros que veio junto com a descentralização industrial e com o deslocamento da centralidade da produção agropecuária para as novas fronteiras agrícolas.

Aqueles que por algum motivo acabam migrando para o interior do país, ou mesmo aqueles dentre nós que conseguem parar de sofrer nas mãos da indústria dos concursos e tomam posse em cargos de docência, em especial aqueles formados nas universidades dos grandes centros urbanos, vivem um choque de realidades: enquanto nos grandes centros é fácil encontrar espaços onde é possível manter-se atualizado com as tendências políticas e culturais mais avançadas, em suas novas cidades de eleição vive-se o confronto entre esta cultura tendente ao cosmopolitismo e os hábitos paroquiais e provincianos próprios das cidades pequenas e médias onde se radicaram. Não é mera casualidade: a atual música sertaneja, universitária ou não, se transformou em “música brasileira” (ao contrário, por exemplo, do carimbó, do vanerão e do maracatu, ainda rotulados como “exotismos” “regionais”), o que expressa a participação do agronegócio goiano, mato-grossense e sul-mato-grossense no bloco que hegemoniza a política brasileira, assim como, em tempos, o samba (paulista ou carioca) expressara estilisticamente a hegemonia política dos barões do café.

Outro exemplo do choque entre o cosmopolitismo e o provincianismo está na força dos preconceitos e discriminações de gênero e raça. Não são poucos entre nós os que, tendo migrado para o Centro-Oeste seguindo o movimento do capital e da abertura de novas vagas de trabalho docente, depararam-se com um fortíssimo racismo anti-indígena.

Sabe-se que este racismo foi uma das justificativas ideológicas seculares para a expansão da fronteira agrícola e para a proletarização dos povos indígenas: era preciso “civilizá-los” ao tempo em que se punha suas terras, tão vastas quanto o necessário para sustentar economias construídas sobre a caça e a coleta, sob domínio de empresas voltadas para a agricultura extensiva. A Companhia Matte Larangeira (1882-1943), por exemplo, foi famosa pela exploração das terras e da força de trabalho dos paĩ-tavyterã (conhecidos pelo exonímico guarani caiouá), dos avá katú eté (conhecidos pelo exonímico nhandeva); como as terras indígenas eram consideradas “devolutas” e a Matte Larangeira construiu seu império ervateiro sobre tais terras, conseguidas por meio de concessões, ocupar os territórios indígenas e forçar seus habitantes à proletarização foi o passo mais lógico a seguir, ainda mais quando o uso do dinheiro não era habitual entre estes povos e era possível, portanto, aproveitar este desconhecimento para comprar sua força de trabalho a valores baixíssimos.

Os casos são inúmeros. O racismo anti-índio, por exemplo, ainda é muito forte por todo o Centro-Oeste, em especial nas cidades onde há conflitos de terras entre latifundiários e indígenas, como por exemplo na região de Dourados (MS). A estratégia é a mesma de qualquer outro racismo: ofender, humilhar, desumanizar e subjugar suas vítimas para melhor explorá-las. São comuns nas cidades do interior de MS outdoors tachando os indígenas de criminosos, saudando o progresso trazido pelo agronegócio e exigindo sua expulsão. (Nisto há um traço em comum cidades do Sul baiano como Buerarema, Ilhéus e Una, onde os conflitos entre indígenas e latifundiários são agudíssimos.) Não por acaso há centenas de casos de puro e simples extermínio de homens, mulheres e crianças indígenas pelas mãos de capangas, praticamente sem causar comoção ou protestos por parte dos não-indígenas das cidades limítrofes onde os crimes acontecem. A remoção forçada de aldeias, então, em geral ocorre sem que haja qualquer envolvimento político das pessoas da cidade, como se tudo não passasse de “assunto de índio e Funai”.

Para aqueles entre nós acostumados às formas de luta corriqueiras nos grandes centros urbanos, é de estranhar que os indígenas com que se teve contato estejam, aparentemente, mais preocupado em conseguir algo para si próprios (bolsas de estudo, auxílios para transporte etc.) que para suas aldeias. Parece um individualismo extremado, e aparentemente é, mesmo. Mas veja-se a questão por outro lado: com uma tal ofensiva anti-indígena movida ou estimulada pelo agronegócio e seus agentes, o simples fato de afirmar-se como paĩ-tavyterã ou avá katú eté não seria, por si só, uma forma de resistência? Quer dizer: no contexto histórico local e diante desta ofensiva, reconhecer-se como indígena e saber que pode reivindicar algo para si próprio, isto já não seria uma luta? E que lutas outras há, além destas?

Se se quer radicalizar nos exemplos, voltemos a junho de 2013, àquelas datas, àqueles mesmos protestos generalizados. Há um lado inexplorado das “jornadas de junho”: os protestos em cidades pequenas e médias Brasil afora. Só pudemos ter acesso, só pudemos conhecer, só pudemos analisar os protestos nas cidades onde os maiores veículos da mídia corporativa dispõem de sedes ou sucursais; lá onde sua cobertura não chega, lá onde a vida parece não interessar ao resto do país, lá houve protestos, totalmente desconhecidos fora dos circuitos de informação da própria cidade ou de suas cidades vizinhas. Veja-se o caso de Ouro Preto do Oeste (RO). Sua população em 2010 era de aproximadamente 38 mil habitantes. Ainda em 2013, durante a jornada de junho, manifestações locais teriam mobilizado cerca de 30 mil pessoas, ou seja, 78,94% dos habitantes!

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Nas cidades pequenas e médias, para espanto de nossos companheiros mais cosmopolitas, pode não parecer, mas existem formas de luta; acontece que elas se confundem com outras coisas. Há várias formas de luta que se revestem de formas que não estamos acostumados.

Veja-se o exemplo de Cachoeira Alta (GO, 12 mil hab.). A cidade se diferencia socialmente entre pessoas que nasceram lá e a família que tem terras ou negócios; pessoas que vêm de fora para trabalhar na cidade; e os realmente ricos.

Os que nasceram lá e têm família com terras e negócios são um grupo muito diverso, porque apesar de a família abrir ou ter um negocio, seus membros têm de trabalhar assalariadamente em outros estabelecimentos. As pessoas abrem negócios que trazem uma renda miserável e só servem, às vezes, para acabar com o escasso patrimônio herdado da família. Mesmo assim se comportam como patrões, é claro, muitas vezes explorando e oprimindo brutalmente, e mesmo assim as mesmas pessoas se sujeitam repetidas vezes às mesmas condições de exploração e opressão.

Muitos entre os migrantes são do Nordeste, chamados pejorativamente de maranhenses e tratados como pessoas de segunda categoria. A maior parte trabalha em serviços domésticos ou coisas como caixa de supermercado, ou em trabalhos mais pesados, como nos frigoríficos e fazendas da região, principalmente nas de cana-de-açúcar.

Há ainda um terceiro grupo, composto pelas pessoas realmente ricas: fazendeiros, na maior parte, que mandam os filhos para estudar fora da cidade; quando voltam, tornam-se um dos médicos ou advogados da cidade, esse tipo de profissional liberal, ou então assumem o negócio da família, exploram a pecuária ou a plantação de cana. Neste ponto, o filme O som ao redor nos traz – para o caso pernambucano – no personagem João um exemplo bem claro de filho de senhor do engenho que se ocupa de parte dos negócios urbanos da família (no caso, a administração de imóveis próprios).

Algumas lutas sociais do interior do país se tornam rixas pessoais e acabam levando a assassinatos e coisas do tipo. A resistência à exploração existe no sentido de as pessoas não ficarem no posto de trabalho o tempo todo da jornada, trabalharem devagar deixando para amanhã coisas que precisavam ter sido feitas ontem, e uma série de outras formas passivas de resistência individual. Por exemplo, a pessoa trabalha num comércio, deixa a loja onde trabalha e vai em outra loja pra ficar batendo papo, ou namorar etc., ou então sai para ir ao banco e retorna muitas horas depois, alegando que havia uma fila bem maior do que de fato havia, e enquanto isso o patrão fica com raiva porque a pessoa não está atendendo os clientes que, praticamente, não existem. Nada tão diferente de um shopping center das grandes cidades, mas reproduzido em outra escala e com muito menor capacidade de fiscalização pelos patrões e gerentes; diferente, mesmo, é quando os trabalhadores saem para almoçar em suas casas e não voltam mais.

Há muitos conflitos entre os três grupos, muitas vezes como rixas familiares ou pessoais, mas a camada que vive em situação mais degradante são certamente os migrantes nordestinos. A maior parte das pessoas quer abrir seu próprio negócio, como transformar a garagem de casa num lugar que vende espetinhos, pastel, caldos. Esse desejo já demonstra que ser assalariado no interior ou na capital é de todo modo algo desagradável e, no caso do interior, ao mesmo tempo é inviável, do ponto de vista da renda familiar.

Existem iniciativas coletivas como cooperativas, que na prática funcionam como minissindicatos voltados para a pressão frente aos concorrentes e ao poder local (em especial no que diz respeito à implementação de leis municipais, isenções fiscais etc), tudo, é claro, voltado para a garantia de renda e condições de trabalho dos membros da cooperativa. Há também conflitos envolvendo os trabalhadores rurais que trabalham nas fazendas: recentemente houve em uma pequena cidade de Goiás uma revolta de trabalhadores rurais temporários contra as péssimas condições do alojamento que um fazendeiro construiu, sendo necessário chamar a policia de outra cidade para resolver o problema. O tal fazendeiro parece ter colocado mais gente empilhada em beliches do que o barracão suportava, e os trabalhadores começaram a se revoltar. Na mesma cidade há também uma rixa entre os sem-terra que ficam no acampamento – e são realmente trabalhadores rurais sem terra – e pessoas daquele grupo que têm família e negócios na cidade, que vendem o que têm (uma loja, uma casa usada pra alugar etc.) pra comprar terras no acampamento, ou então continuam trabalhando nos seus negócios na cidade, mas compram terras no acampamento para fazer especulação.

Pensando nas formas de resistência no ambiente de trabalho, tudo talvez pareça muito semelhante com o que há nas capitais; a distinção existe, sim, mas há semelhanças notáveis. Comparadas as lutas no local de trabalho em Cachoeira Alta com as de Goiânia, talvez a distinção não seja tão grande, porque Goiânia, apesar de ser a capital estadual, tem muito de seu modo de vida ainda atrelado a costumes provincianos; mas na comparação com São Paulo e outras cidades mais antigas do litoral a diferença é notável. Uma coisa que as pessoas de Cachoeira Alta reclamam é do alto custo dos produtos, serviços etc., e sua baixa qualidade. Em Goiânia encontra-se quase tudo pela metade do preço praticado em Cachoeira Alta: produtos de beleza, higiene, remédios, doces e sobremesas de grife, roupas e sapatos, enfim, quase tudo. É habitual, como em qualquer cidade localizada nos últimos nós de uma rede urbana, que as pessoas peguem carona para fazer compras na capital. Aliás, como o transporte é deficiente, existe um mercado de caronas em troca de dinheiro, favores etc., ou simplesmente por solidariedade.

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As tendências conservadoras que se pode encontrar em cidades pequenas e médias, tão impactantes para os recém-chegados, não se chocam com os processos modernizadores; na verdade, os dois se combinam numa só dinâmica.

O que não falta, para não nos estendermos em mais exemplos, é vilarejo com pescador e marisqueira organizados. Sempre há luta dos trabalhadores da saúde ou da educação por uma escola ou posto de saúde em situação precária, ou, no caso dos trabalhadores da educação, por terem um coordenador ou diretor autoritário. Mototaxistas, a forma mais difundida de transporte público individual nos últimos tempos, também estão se organizando em várias cidades. Sem contar o tráfico, que também faz lutas na confusão de práticas que o compõe. Há inclusive sem tetos no interior, fazendo ocupações.

Tudo isto é matéria para lutas. Não vê-las, é pura miopia. Cabe perguntar, portanto: como o Passa Palavra poderá ser um instrumento para as lutas nas cidades pequenas e médias?

Todas as imagens ilustrativas deste artigo são da cidade de Borá (SP).

5 COMENTÁRIOS

  1. De que forma o Passa Palavra está presente nas pequenas e médias cidades? A partir daí responder “como o Passa Palavra poderá ser um instrumento para as lutas nas cidades pequenas e médias?”(?). Sou de Jequitinhonha, estudo em Governador Valadares. Aguardo o debate. Discussão muito importante!

  2. Assim como Welder, acho uma discussão importante e tenho curiosidade a respeito das vias pelas quais o PP poderia contribuir (ainda mais) com as lutas.

    Abraço.

  3. Não entendi o modo como os dois comentaristas anteriores leram o texto. Pelo que entendi, o Passa Palavra está compartilhando reflexões e inquietações sobre os sentidos da evolução econômica e demográfica de cidades, estados e regiões vulgarmente chamados de “Brasil profundo”, e no fim pergunta “como o Passa Palavra poderá ser um instrumento para as lutas nas cidades pequenas e médias”. Não me pareceu que estejam querendo oferecer respostas ou soluções, mas sim entender o que fazer, perguntando publicamente como podem contribuir com as lutas etc.. Da minha parte, repassei o artigo para alguns amigos do interior baiano; espero que resulte em alguma coisa, algum contato, sei lá.

  4. Sim, Manolo! Acabei fazendo no calor do momento a pergunta ontem a noite. Nem terminei de ler o texto, na verdade. Haha

    É que enxergo certa demanda por “conteúdo anticapitalista” em tais cidades. As pessoas precisam conhecer o trabalho do coletivo Passa Palavra, e isso poderá quem sabe ser impulsionado a partir de quando as lutas que ocorrem em pequenas e médias cidades brasileiras passarem a estar, ainda mais, nesse “espaço”. Já seria uma grande contribuição um maior número de pessoas, compartilhando as notícias de lutas, o apoio, e pensamento aqui feito sobre elas. Criar maiores vínculos com possíveis colaboradores, admiradores da luta travada pelo coletivo Passa Palavra de pequenas e médias cidades brasileiras poderia contribuir?

    Enfim, abraços!

  5. Parabéns pela iniciativa, o interior do país existe, afinal, nas lentes do pensamento crítico.

    Sou de Rio Preto – SP, uma cidade de médio porte, em que coexistem esta disputa entre um pensamento cosmopolista liberal new wave, vs o pensamento provinciano, com forte presença de vários elementos presentes racistas tanto com pessoas de outras regiões, contra indígenas (apesar do contato mínimo com as populações indígenas do país). Existem lutas, as vezes como mera correia de transmissão mesmo, os sindicatos de algumas categorias do funcionalismo público determinam a greve, a greve é feita.
    Lembro muitas vezes em que a greve acontecia na minha escola estadual do ensino médio, os professores entravam em greve, mas não a faziam. Os alunos queimavam seus cadernos, por ficarem felizes por poder assistir dragon ball mais vezes. Das categorias, sei que hoje, salvo minha ignorância, os carteiros têm uma organização de base muito ativa. Ainda falando em sindicatos, em 2014, trabalhei como mesário itinerante numa eleição dos sindicatos dos frentistas, a Farsa Sindical contra uma gama variada de forças de esquerda. O nível de repressão foi profissional, os homens que me acompanharam no carro, junto com os dois ônibus que os trouxeram do Rio de Janeiro, eram, como posso dizer, Bate Pau com carteira assinada. No final do processo, estes conseguiram implodir a eleição por meio da violência e ameça, mantendo as coisas como estavam. 2013 foi muito animador, muita gente na rua e uma ocupação de prefeitura, que eu admito ter caído de paraquedas, pois quando esta começou estava em Marília- SP, foram 1 semana e meia de ocupação de parte da Câmara Municipal. A participação foi pequena, as pessoas que lá ficaram, qualquer um com alguns dias de manifestações em Rio Preto poderá conhecer facilmente a maioria dos rostos, mas, o que mais impressionou, foi o apoio, absurdamente forte e ativo, com pizzas chegando com refrigerantes, depoimento de pessoas que apareciam para desejar força. Infelizmente, o 2013 foi a oportunidade que passou por nós mandando beijos.

    Minha vida em Marília – SP, como estudante da Unesp em CS, é, em termos de cidade, desastroso. Enquanto a unidade entre intelectuais com uma determinada classe pode ser chamada de orgânica, a cisão não pode simplesmente ser chamada de inorgânica, acredito que o termo para explicar aquela situação, estudantes da Unesp e povo de Marília, é a de repulsa. Foram várias tentativas, desde que pude acompanhar, em 2010. A intelectualidade das forças tradicionais e capitalistas nos difamavam das mais variadas formas. Uma vez ouvi um causo quando estava num ônibus voltando para o Campus (nome do bairro em que ficam os Campi), já era noite, duas mulheres que trabalhavam num supermercado conversavam: … Sabe, uma vez ouvi que o esgoto daqui é cheio de problemas. – É, mesmo? -É, dizem que os bombeiros vieram aqui uma vez e os canos estavam cheios de fetos abortados… Achei até engraçado, mas busquei alguma notícia e não encontrei nada, afinal, não havia nenhuma edição dos Notícias Populares Marília. Doutra parte o petismo e protopetismo, com bases em alguns segmentos estudantis secundaristas e com secretária municipal, faziam curral de suas bases contra os estudantes universitários, vi isto muitas vezes, infelizmente. Os pequenos partidos trotsquistas, na menor oportunidade, esvaziavam todas suas forças com vias a fortalecer suas sedes em São Paulo capital, pois o alinhamento estratégico deles é fazer a revolução nos grandes centros. Hoje, existe o Comitê contra o Golpe que faz várias incursões na cidade, mas, estes conheço muito pouco, não saberia dizer como se relaciona com o problema de estudantes e cidade.

    Não tenho respostas para este enorme problema e sei que não é intenção do PP dá-las como fórmulas prontas, mas, no entanto, fico contento que a preocupação exista. Este é um pequeno relato de alguns anos de derrotas, mas, não sei quem dize, mas: erre! tente e erre de novo. Erre melhor.

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