Foto de Nelson Antoine

Por Silvia Viana

Eu andava pela Avenida Paulista, a caminho do lançamento do livro “Necropolítica”, que ocorreria no Itaú Cultural, pensando na relação entre o assunto e o local do evento, quando, ao meu lado, desceram de um ônibus algumas dezenas de pessoas em camisetas da APEOESP. Andamos próximos por alguns metros, até o Clube Homs. A maioria entrou no prédio, outras ficaram na escadaria, juntando-se aos colegas que olhavam irritados para um grupo de sete pessoas. Essas, segurando alguns cartazes e a bandeira do Brasil, gritavam: “fora Dilma”. Achei graça e comentei com uma mulher de cabelos claros cacheados: “uai, mas ela já não caiu?”. Ela não riu. Contou-me que era professora e que lá estava para assistir, junto aos companheiros, a uma fala da ex-presidente a respeito do dia da mulher. A jovem senhora estava com a voz trêmula e os olhos cheios d’água e disse não acreditar no que via, que aqueles “fascistas” não poderiam estar lá, gritando ofensas contra uma “mulher como a Dilma”; para ela, tratava-se de uma “falta de respeito” inaceitável. Outras pessoas, na escadaria, formavam grupos, todos dizendo que algo precisava ser feito; nada, além das pequenas reuniões, foi feito. Um dos cartazes da nano manifestação me chamou a atenção, nele se lia: “contra a islamização petista do Brasil”. Aproximei-me do senhor careca que o segurava e perguntei o significado daquelas palavras; ele respondeu de forma um pouco ríspida: “Não sabe? Vai pesquisar!”, eu disse que seria mais fácil se ele mesmo explicasse, já que estávamos de bobeira por ali mesmo. Ele mudou o tom e se apresentou: “Eu sou gay e estou aqui com meu companheiro” – apontando para um jovem loiro que, então, se aproximou – “Viemos aqui porque a esquerda diz que é a favor dos homossexuais, mas o PT tem um projeto de islamização do Brasil. Isso faz sentido?”. Sem esperar uma resposta, que, de fato, seria uma dúvida a respeito do que fora dito, continuou: “Mas a esquerda é assim, por isso precisa ser destruída”. Perguntei o que exatamente seria essa islamização. Mais uma vez, mandou-me pesquisar e eu insisti em um esclarecimento. Então ele suspirou, demonstrando enfado, mas prosseguiu: “acontece que os governos do PT abriram a imigração para os muçulmanos que querem trazer os dogmas deles para cá. Eles vão torturar todos os que não seguem essa fé. Eu não estou nesse protesto por nenhuma religião, nós [abraçando o namorado] não somos religiosos, não apoiamos nenhum dogma, mas não podemos aceitar que os muçulmanos venham para o Brasil e implantem a religião deles. Você sabe o que eles fazem com as mulheres? Fazem usar burca, batem. Eles são terroristas, já explodiram uma bomba aqui na Paulista no ano passado, você sabia disso?”. Novamente sem aguardar respostas, prosseguiu: “E você sabe o que fazem nesses países terroristas? Prendem e jogam os gays pela janela!!! E é isso que os esquerdistas estão fazendo, trazendo isso para cá, abrindo a imigração para os terroristas muçulmanos, é um plano.” Eu disse que, até onde sabia, o maior fluxo imigratório atual não é de países islâmicos, mas das américas do sul e central. Ele retrucou: “então você precisa pesquisar mais, você é muito desinformada! É o que dá ficar só vendo a TV! Tem uma islamização acontecendo!”. Perguntei se esse projeto permaneceu após o impeachment: “claro que sim! O Temer é vice da Dilma, eles aí votaram no Temer [apontando para as pessoas na escadaria]”. Quando questionado a respeito dos países dos quais vinham esses imigrantes, não soube responder: “isso eu vou pesquisar”, disse. Percebendo que eu estava atrapalhando a manifestação, ao distrair quase 1/3 dela, uma senhora de cabelos grisalhos se aproximou, ordenando que o casal não falasse comigo: “Ela vota no PT! vocês não estão vendo que ela quer provocar? É petista!”. O jovem loiro perguntou: “você é petista?”, respondi rindo que sou “coisa bem pior”, e contei que sou socialista. A senhora me mandou ir à Cuba, em tom elevado, mas bem mais contido que aquele pelo qual costumam ser proferidas essas palavras. Eu disse que, se ela se dispusesse a pagar a passagem, adoraria conhecer Cuba. Sem dar trela para a gracinha, perguntou se eu já saíra do País, respondi que já fui a algumas cidades da Europa e para Nova York. Não se pode dizer que ficou estupefata, mas verdadeiramente surpresa, perguntou: “Nova York? E como você continuou comunista???”. Então fui eu quem teve preguiça de responder. Mudei de assunto, questionando-a a respeito de sua camiseta preta, com palavras de apoio à PF. A senhora respondeu que precisamos apoiar a PEC que lhe dá autonomia, pois “eles precisam ficar livres para acabar com essa raça de corruptos, não podem ser mandados pelos políticos”. Perguntei, então, a respeito do cartaz que segurava, com a foto antiga de um jovem fardado. Ela citou seu nome e disse ser um militar assassinado por Dilma na época da ditadura. Senti que a conversa ficaria bem mais interessante, mas já não pudemos continuar pois, a essa altura, o clima esquentara ao nosso redor e alguém jogou um rojão perto de nós. O grupo de manifestantes se reagrupou. Hostilidade mútua, aproximações eventuais para um ou outro xingo, alguns rojões atirados do Clube em direção à calçada e eu me dei conta de que perdera a hora.

Corri para o Itaú Cultural. O debate começara, a sala estava lotada e alguns, como eu, não puderam entrar. Comprei os livros que me interessavam e aqueles que me foram encomendados, saí.

Quando retornei ao local da contenda havia um grupo de aproximadamente vinte policiais protegendo os manifestantes que, então, eram onze. A primeira fileira de coxinhas encobria a segunda, ambas estavam próximas do meio-fio, voltadas para a escadaria, na qual permaneciam, em número um pouco maior que antes, os professores sindicalizados. Na calçada, entre os do Clube e os da rua, transeuntes passavam apressados e indiferentes, nas laterais do palco retangular, meia dúzia de curiosos, eu, uma fotógrafa e uma estudante recém-chegada de Belo Horizonte entre eles. Se já não era possível ver os manifestantes, suas vozes ainda soavam alto: “petralha”, “Lula ladrão”, “vocês que votaram no Temer, não a gente”, “pão com mortadelaaaaaaa”, “vai trabalhar”, “vagabundos”, “a minha bandeira jamais será vermelha”, “eu vim de graça”, “fora temer” – a esse último grito, o outro lado fez coro entre risos nervosos. Apesar dos alaridos, tive a impressão de que os onze estavam tranquilos: entre si, sorriam e se cumprimentavam, estavam ao menos mais tranquilos que seus opositores; esses, do mesmo modo, atiravam insultos, mas andavam de um lado a outro, reuniam-se nervosos em pequenos grupos, que logo se dissolviam e se refaziam, tinham os rostos vermelhos e suavam. Vi uma senhora de óculos chorar de ódio. Três jovens negros que, pelo que pude escutar entre-conversas, eram funcionários do sindicato, se arriscavam até a linha dos manifestantes e jogavam os braços através da barreira de policiais, buscando arrancar cartazes das mãos inimigas, sem êxito. Pessoas escondidas atiravam rojões de quando em quando, sem abalar os manifestantes. Uma mulher de cabelos vermelhos e camiseta da APEOESP subiu correndo a escadaria e, do topo, gritou: “viados filhos da puta, vão dar o rabo!”. A sensação de haver uma assimetria de ânimos foi reforçada quando acompanhei parte de uma conversa que se desenrolava no canto da dupla fileira: um homem de barbas grisalhas, que tinha ao lado de si um cartaz contra o PT, explicava calmamente para um rapaz de camiseta vermelha a necessidade de uma eventual intervenção militar, enquanto esse, inquieto e com dentes apertados acusava: “golpista, golpista, golpista!”. Uma professora aposentada, elegante, com um lenço de seda ao redor do pescoço, se aproximou de mim e, muito triste, lamentou as ofensas proferidas pela fileira verde-e-amarela; dizia ela: “como essa gente tem a coragem de falar essas palavras? É muita vulgaridade! Que gente baixa, olha que palavrões horríveis, parecem bichos, como podem?” Enquanto eu conversava com a estudante mineira a respeito do que víamos, quatro meninos de rua se aproximaram da arena: três adolescentes negras magrelinhas, duas delas com roupas muito curtas e justas e uma terceira vestindo jaqueta larga e bermudão, e um menino mais jovem e bem mais baixo. Os quatro estavam inquietos, acesos, fumavam um cigarro atrás do outro. Uma das meninas puxou a camiseta de um senhor gordo do grupo do Clube e perguntou o que estava acontecendo. Solícito, em tom professoral, o homem descreveu o outro grupo: “essas pessoas estão querendo silenciar a presidenta Dilma, que vem aqui hoje, são pessoas conservadoras, que fizeram o golpe no nosso país e estão querendo nos provocar porque nós mudamos a vida do povo, mudamos o Brasil, eles são fascistas…”. Sem escutar a explicação até o final, os quatro ocuparam o centro da calçada e, rindo, começaram a xingar os antipetistas, aproximando-se da fila dupla, encarando com olhares altivos cada um daqueles onze: “filhos da puta”, “sua piranha”, “vai tomar no cu”, “vão se foder”, “velho cuzão”. Os manifestantes não retrucaram, ficaram em silêncio, ambos os lados ficaram, a avenida pareceu silenciar. Os policiais, objetos até então imóveis e inexpressivos, pelo contrário, agitaram-se, ainda que pouco, por estarem confinados em seus lugarzinhos na corrente. Os meninos falavam alto, brincavam, gesticulavam e fumavam na calçada, no campo de segurança criado tacitamente entre os dois grupos. Aos poucos, o objeto de seus olhares e ofensas se deslocou da segunda fileira para a primeira, o foco passou dos filhos da puta de outros para seus próprios filhos da puta. Entre xingamentos, faziam armas com os dedos, apontadas para as cabeças dos policiais que, pela primeira vez, passaram a se comunicar em seus walkie talkies. Chamei o menino e lhe falei baixinho para vazar rápido; ele riu e, já de costas para mim, encarando um dos homens da barreira, cujo tamanho o ultrapassava quase em dobro, falou alto: “você acha que eu tenho medo, tia? Eu pego esse cuzão, bang, bang, bang. Ele que tem que ter medo, ele não me encara não, vai morrer, cuzão, vai morrer policial!” Apenas então me dei conta da cena tripartida e pensei em uma foto, tirei o celular da bolsa e, pela tela, vi que a menina de roupas largas posava para mim, com a cintura para frente, cigarro na boca e os dedos em V, não de paz ou vitória, mas voltados um para o outro: posição rapper. Tirei a foto, abaixei o celular e ela já estava ao meu lado, segurando meu braço, querendo ver a imagem. Mostrei e lhe disse que ficara linda. Ela chamou os demais para outra foto. Apenas o menino não veio, pois ainda se ocupava de seus alvos. As três posaram, todas com cigarros na boca e armas imaginárias nas mãos. Combinamos de nos conectarmos via Facebook para que eu pudesse enviar as fotos. Não consegui entender o nome que me falavam todas ao mesmo tempo, então outros nomes me foram ditos, todos complicados, até que consegui enviar a solicitação de amizade para um perfil de nome mais simples, sem foto. Não me adicionou.

A batalha do Clube Homs
Foto de Leonardo Benassatto

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