Por Manolo

Viu-se na primeira parte deste ensaio como populismo e fascismo encontram-se numa zona nebulosa, de difícil distinção. A isto adiciono que estão como que num continuum, onde o fascismo é uma forma mais radical de populismo.

Viu-se na segunda parte deste ensaio como o populismo e o fascismo encontram solo fértil em meio a economias atingidas direta ou indiretamente pela crise financeira de 2007-2010. Os setores da classe trabalhadora mais duramente afetados pelos efeitos da crise – desemprego, precarização do trabalho, compressão salarial, redução do poder de compra, encarecimento ou redução severa na prestação de serviços públicos etc. – buscaram neste campo da política soluções imediatas para seus problemas, ainda que, no médio e longo prazos, saiam perdendo.

Livro de Carne, Artur Barrio.

Viu-se na terceira parte deste ensaio como o desenvolvimento da economia brasileira resultou na formação de um setor capaz de exportar capitais e internacionalizar operações para fugir à crise recessiva instalada no país desde 2014 como resultado de diagnósticos equivocados, políticas ineficazes e do acirramento da luta de classes instaurados pelo menos desde 2011. Em seguida à recessão, economistas indicam que a retomada do crescimento econômico mostra sinais de ser uma das mais lentas já verificadas, o que afeta os setores presos aos circuitos produtivos e financeiros afetados pelos vários elementos da crise.

Viu-se na quarta e quinta partes deste ensaio como os capitalistas brasileiros incapazes de recorrer a estes mecanismos de fuga empurraram a conta da crise para os trabalhadores por meio do desemprego, da inflação e da captura de poupanças dos trabalhadores, que resultaram na desvalorização da força de trabalho – o que, no fim das contas, beneficia os capitalistas, qualquer que seja sua inserção nos circuitos da economia. Além da desvalorização da força de trabalho, estes expedientes resultam numa enorme e difusa repressão às lutas e reivindicações dos trabalhadores, pois aumentam suas preocupações com o futuro imediato e a sobrevivência, cresce a disputa com outros trabalhadores pelos empregos restantes, diminui drasticamente seu poder de barganha frente aos patrões – e não são poucos aqueles empurrados ao limiar da sobrevivência.

Tudo isto tem efeitos.

Do ponto de vista dos capitalistas beneficiados pela recessão, ainda que ela afete os trabalhadores mais drasticamente que os capitalistas, nem a eles interessa manter por longo tempo a situação; os trabalhadores, de seu ponto de vista, são seus consumidores, e a repressão econômica não pode estender-se ao ponto de prejudicar seus negócios.

Do ponto de vista dos capitalistas retardatários, esmagados pelos efeitos da recessão, pouco capazes de fazer frente a seus efeitos sem reduzir enormemente suas próprias margens de lucro, é preciso sair logo da crise para que se beneficiem dos efeitos de uma retomada econômica e de prosperidade.

Do ponto de vista dos trabalhadores, os principais afetados por uma crise recessiva, é preciso sair dela o quanto antes, pois é de sua sobrevivência, literalmente, que se trata.

Os primeiros ainda podem “jogar limpo”, usar as “regras do jogo” em seu próprio favor, porque compartilham a gestão da economia com os gestores públicos, circulam amplamente nos centros de decisão e formam parte do governo real da sociedade. Já tive a oportunidade de falar do assunto em outras ocasiões (ver aqui, aqui, aqui e aqui), não será preciso repetir os mesmos argumentos.

Trouxas, Artur Barrio.

Os dois últimos, entretanto, encontram-se em situação desesperadora. Estão fora dos corredores do poder, têm pouco acesso às decisões políticas, sua participação na política e no governo é meramente formal e encontram-se atomizados, postos a lutar uns contra os outros. Não lhes falta a coesão sociológica, pois seus modos de vida e hábitos comuns permite-lhes reconhecer os que lhe são próximos, os que vivem de modo parecido, os que sofrem os mesmos problemas; falta-lhes, não obstante, a coesão política. Mesmo reconhecendo que seus interesses são apresentados imediatamente de modo difuso nas conversas cotidianas, nas correntes de redes sociais e em outros meios de expressão individual, eles não encontram expressão política concentrada. Poucos passam da conversa – e da bravata – à ação; quem o faz, via de regra é por iniciativa individual; na medida em que as muitas iniciativas individuais pouco dialogam, mesmo quando convergem, perdem fôlego em pouco tempo, duram rápido, não se espalham, não contagiam.

Eis o cenário perfeito para o surgimento de substitutos, sucedâneos, representantes. É deste modo que os interesses dos trabalhadores e dos pequenos e médios capitalistas chega aos corredores do poder: pela mediação dos seus “representantes eleitos”, pelo espelho das estatísticas e pesquisas de opinião, pelo vaivém dos indicadores sociológicos e econômicos – sempre pela mão de alguém, nunca diretamente.

Em tempos de crise, quando um arranjo político e econômico não funciona mais para os fins a que servia, é preciso substituí-lo por outro, mas os diagnósticos do que precisa ser substituído, de como fazer a substituição e do que colocar no lugar do arranjo antigo variam tanto quanto as diferentes inserções de seus proponentes nos processos produtivos.

Soma-se a isto o fato de que as crises não acontecem num espaço hermético. As formações sociais têm contradições próprias, são formadas por conflitos entre as classes que as compõem, e surgem daí tradições de luta e também de exploração e opressão. É aí que as crises fazem dos despossuídos, dos explorados e dos oprimidos os bodes expiatórios, os responsáveis pela ruptura na ordem, as causas do problema. Na crise atual, é esta procura por culpados pela piora nas condições de vida que tem grande potencial de amalgamar trabalhadores e os pequenos e médios capitalistas num só coro. Os velhos preconceitos vêm à tona, e a erradicação dos “indesejáveis” é elevada ao status de solução.

A partir daqui, o que se tentará é entender como as contradições da formação social brasileira encontram-se com as características específicas da crise recessiva recente e fecundam o ovo da serpente fascista. Depois de uma caracterização do espaço político brasileiro nesta parte do ensaio, serão vistos numa parte seguinte os traços da formação social brasileira capazes de fermentar um movimento fascista, ainda que difuso.

14 trouxas ensanguentadas, Artur Barrio.

O espaço político, da esquerda à direita

O espaço político considerado neste ensaio segue a tradicional divisão entre esquerda e direita, incluindo aí o centro, as posições intermediárias (centro-esquerda e centro-direita) e as posições extremas (extrema-esquerda e extrema-direita). Antiquadas como sejam tais classificações, ainda têm uso corrente no dia a dia, ainda permitem a qualquer pessoa sem treinamento em ciência política identificar e agrupar políticos e partidos de modo minimamente coerente.

Seguindo a tradição da ciência política, serão considerados apenas os partidos políticos eleitorais, quer tenham na via eleitoral e institucional a centralidade de sua atuação, quer vejam nela apenas uma oportunidade pontual para apresentar e disputar um programa político frente à sociedade. A relação entre estes e os partidos e organizações extraparlamentares, com os formadores de opinião extrapartidários etc., será tratada em outro momento.

Esquerda e direita, extrema-esquerda e extrema-direita

Esquerda é a posição política que defende a igualdade – não a igualdade biológica, mas a igualdade social. Envolve não apenas a preocupação com cidadãos em desvantagem frente a outros, mas o pressuposto de que tais desigualdades devem ser reduzidas ou abolidas. A diversidade de posições permite matizar este campo quanto à intensidade da redução da desigualdade – desde a nivelação total à moderada minoração das diferenças – e quanto os meios necessários para reduzi-la – desde reformas graduais na estrutura social até a revolução social. Nas oligarquias liberais a que na atualidade fomos acostumados a chamar de democracias, a esquerda política se opõe às monarquias, ao absolutismo, ao liberalismo laissez-faire, ao sexismo e ao racismo. Via de regra este campo da política é formado por comunistas, socialistas e social-democratas. (Anarquistas costumam ser classificados na esquerda, mas aqui estão sendo tratados apenas os partidos eleitorais e os anarquistas desde sempre rejeitam a participação em eleições.)

Um critério de avaliação específico para os partidos comunistas é a participação no Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários (IMCWP), onde congregam-se o Partido Comunista Alemão, o Partido Comunista de Cuba, o Partido Comunista da China, o Partido Comunista Português, o Partido Comunista da Federação Russa, o Partido Comunista do Vietnã, o Partido Comunista da Venezuela, o Partido Comunista Brasileiro e o Partido Comunista do Brasil. A proximidade de socialistas e social-democratas com o centro do espaço político faz necessário tratar deles mais adiante, junto à centro-esquerda.

Le Support de L’Art. Projetos. Artur Barrio.

Direita, por outro lado, é a posição política que aceita a hierarquia ou a desigualdade sociais como inevitáveis, naturais, normais ou desejáveis, justificando tal posição por meio da economia, do “direito natural”, da tradição, da revelação ou orientação divinas, da “superioridade” e “inferioridade” entre povos, etnias, sexos ou “raças” etc. A diversidade de posições permitem matizar este campo quanto à intensidade da manutenção das hierarquias e das desigualdades – desde a estremança radical às compensações pelas diferenças – e quanto os meios necessários para reduzi-la – desde reformas graduais na estrutura social até a revolução social. Nas oligarquias liberais a que fomos acostumados a chamar de democracias, a direita política se opõe ao socialismo, ao comunismo e à social-democracia. Via de regra este campo da política é composto por conservadores, democratas clássicos, democratas cristãos, liberais clássicos e nacionalistas.

Podem ser facilmente classificados como de direita partidos como Rússia Unida, a Aliança para o Futuro da Áustria, o Venstre e o Partido Popular Dinamarquês, o Partido Democrático Liberal e os Republicanos da Alemanha, o Partido Cristão Democrata francês, o Likud e o Zehut israelenses, o Komeito e o Partido Liberal Democrata japoneses, o Partido Político Reformado holandês, a Liga Muçulmana da União Indiana, o Partido da Liberdade Inkatha sul-africano, o Partido Saenuri sul-coreano, o Partido da Coalizão Islâmica e a Sociedade dos Devotos da Revolução Islâmica iranianos, o Movimento Cinco Estrelas italiano e, no caso brasileiro, o Partido Novo (NOVO), o Partido Social Cristão (PSC), o Patriotas (PATRI), os Democratas Cristãos (DC) e o Partido Progressista (PP).

Tanto esquerda quanto direita têm variantes extremas. O extremismo, todavia, tem longa história de conotação negativa, pois as chamadas “práticas virtuosas” de vários sistemas religiosos e éticos orientam à moderação e à temperança:

  • Nos muitos textos sagrados do hinduísmo, a temperança (dama) é uma das características de uma vida virtuosa (dharma), assim como a compaixão (daya), a caridade (daana);
  • No jainismo, os cinco yama são votos de moderação e temperança (ahiṃsā / não-violência, brandura; satya / sinceridade, honestidade; asteya / desapego, desprendimento, abnegação; brahmacharya / castidade, celibato; aparigraha / pobreza);
  • No budismo, o terceiro, o quarto e o quinto pañcaśīla, assim como quatro das oito práticas do āryāṣṭāṅgamārga, orientam a evitar condutas imoderadas;
  • Na ética grega clássica, a temperança (σωφροσύνη / sophrosyne) e a prudência (φρόνησῐς / phrónēsis) são virtudes importantes;
  • Na Bíblia, os Dez Mandamentos e o Livro dos Provérbios no Velho Testamento contém várias orientações no sentido da moderação e da temperança, que reaparecem em vários lugares do Novo Testamento como, por exemplo, na enumeração dos “frutos do espírito santo” na Carta aos Gálatas (5:19-23);
  • O Alcorão apresenta a moderação e a temperança como virtudes em várias passagens, e na sura Al-Isra (17.22-37) é apresentado um decálogo onde são apresentados como os fundamentos de virtudes éticas correlatas àquelas dos Dez Mandamentos.

Tal aversão histórica ao extremismo, conquanto questionável, encontra-se profundamente enraizada em sistemas religiosos e éticos adotados por multidões. Ela é uma das explicações para o surgimento de um centro no espaço político, a ser comentado mais à frente.

Nos extremos não é incomum a rejeição ou a secundarização da política institucional; se é a substituição total dos arranjos políticos e econômicos o objetivo final das organizações políticas deste campo, a rejeição ao sistema existente estende-se ao “jogo político” tradicional, tido como injusto, iníquo, ilusório, parcial, deturpado, viciado, corrompido, ineficaz, lento etc.

Da mesma forma, vê-se nos extremos do espaço político a tendência em ver as relações políticas nos moldes das alternativas radicais e irreconciliáveis; daí a tendência a não aceitar – como o centro – a gradualidade e parcialidade dos objetivos, a repulsa à negociação e ao compromisso. O extremismo, por isto, costuma ser confundido com o radicalismo e o maximalismo. O primeiro implica, de forma semelhante, no abandono de qualquer hipótese temporizadora e de toda tática moderada para impulsionar um processo de vigorosa (e portanto “radical”) renovação nos vários setores da vida civil e da organização política; o segundo implica a sobrevalorização dos objetivos finais de uma organização política (seu “programa máximo”) em detrimento dos objetivos intermediários que podem servir-lhes de caminho (seu “programa mínimo”).

Situação Ambiente K, 1970. Foto: Artur Barrio e Luiz Alphonsus.

Os três termos parecem dizer a mesma coisa, mas na prática nem todas as organizações situadas nos extremos do espaço político adotam meios radicais – a adoção da via eleitoral e da construção paulatina de blocos parlamentares nada tem de radical, ainda que vista como tática e pontual – e de igual modo nem todas sacrificam seu “programa mínimo” em nome de seu “programa máximo” – não são poucas as organizações extremas que têm nas reformas legais e administrativas um meio para alcançar seus objetivos.

A extrema-esquerda costuma ser definida como o lugar mais à esquerda dos partidos socialistas e comunistas tradicionais; embora compartilhem com eles muito de sua doutrina política e disputem uma base social semelhante, a extrema-esquerda é menos propensa ao envolvimento em alianças e coalizões com forças políticas situadas mais ao centro, como fizeram os partidos comunistas do passado e ainda hoje o fazem muitos de seus sucessores, embora não descartem alianças e coalizões com outros partidos da esquerda, inclusive participando de governos nacionais.

Estão neste lugar os muitos partidos e organizações trotskistas, maoistas, senderistas, bolivarianos, sankaristas, jucheístas etc., cuja proliferação e pulverização dificulta a exemplificação simples. (Novamente: se a participação em eleições é o critério definidor neste ensaio, ficam automaticamente excluídos anarquistas, conselhistas, bordiguistas e todas as demais correntes políticas que rejeitam a participação nas eleições e são comumente situadas na extrema-esquerda.)

A extrema-direita costuma ser definida pela intensidade com que seus proponentes pretendem manter as desigualdades e hierarquias sociais ou aprofundá-las. É rotineiro proporem pautas supremacistas de cunho racista, nacionalista, xenófobo, etnocêntrico e/ou elitista. Situam-se aqui ultraconservadores, fundamentalistas, fascistas de todos os tipos, neonazistas, nacional-bolcheviques, baathistas, adeptos da “terceira posição”, wahabistas, salafistas, nacional-anarquistas e muitos outros.

O critério das afiliações internacionais pouco afeta a extrema-direita, pois o nacionalismo extremo é uma de suas características marcantes. Poucas são as organizações internacionais como a Aliança pela Paz e Liberdade e a Aliança dos Movimentos Nacionais Europeus, restritas à União Europeia. Somente uma comparação direta entre partidos poderia avançar em critérios comuns.

Trouxas III (Alusivo ao Artur Barrio). Fábio Magalhães.

Pode-se dizer, entretanto, que são de extrema-direita partidos como o Partido Popular da Reconstrução (PPR) argentino, a Alternativa para a Alemanha e o Partido Nacional-Democrata da Alemanha, a Frente Nacional britânica, o Partido Estadunidense da Liberdade, o Partido da Liberdade da Áustria, a Frente para a Estabilidade da Revolução Islâmica do Irã, o Partido Comunitário Nacional-Europeu (PCN) da Bélgica, os partidos CasaPound Italia e Força Nova (FN) e o Movimento Social Flama Tricolor italianos, o Hamas palestino, o Eretz Yisrael Shelanu e o Otzma Yehudit israelenses, o Movimento Nacional-Socialista da Dinamarca, a Aurora Dourada na Grécia.

O centro, a centro-esquerda, a centro-direita

Entre esquerda e direita equilibra-se o centro. Trata-se de um lugar político fluido, maleável segundo as circunstâncias, onde proliferam posturas conciliatórias, ideologicamente ecléticas pretensamente “pragmáticas” e “dialógicas”. Sob tal máscara de “equilíbrio” e “moderação” esconde-se a manutenção do sistema, do status quo; a “conciliação” e o “diálogo” se dão apenas entre quem já participa do jogo político institucional, sendo rara e excepcional as organizações politicas centristas defenderem a abertura do “jogo político” à participação de sujeitos que dele se encontrem excluídos, impedidos ou bloqueados – salvo, claro, se tal abertura se der por meio de seus próprios quadros e instituições, fortalecendo-as portanto.

Nas oligarquias liberais a que na atualidade fomos acostumados a chamar de democracias, o centrismo é a política adotada seja por alas e frações dos partidos de esquerda e direita, seja por partidos mais bem acomodados neste lugar político que nos dois lugares tradicionalmente opositores. Um critério de avaliação da localização dos partidos de centro no espaço político global é a participação na Internacional Democrata Centrista (IDC), integrada por partidos como a União Democrata Cristã (UDC) da Alemanha, o Fine Gael irlandês, os Republicanos da França, o Partido Conservador Colombiano (PCC), o Partido Justicialista (PJ) e o Partido Democrata Cristão (PDC) da Argentina, os Democratas (DEM) e o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) do Brasil.

A centro-esquerda é o agrupamento de partidos políticos que buscam reduzir a desigualdade social sem eliminá-la de todo. Trabalham em meio ao sistema estabelecido para melhorar a justiça social. Defendem pautas como a tributação progressiva, a proibição ao trabalho infantil, estabelecimento de um salário mínimo e de legislação trabalhista e outras medidas características do chamado estado de bem-estar social. Encontram-se aqui os social-democratas, os progressistas, os trabalhistas e alguns socialistas democráticos, assim como a esquerda cristã e alguns ambientalistas.

Um critério de avaliação da localização dos partidos de centro-esquerda no espaço político global é a participação na Internacional Socialista, herdeira política da II Internacional, integrada por partidos como a União Cívica Radical (UCR) e o Partido Socialista (PS) da Argentina, o Partido Liberal Colombiano, o Partido Socialista francês, o Movimento Socialista Pan-helênico (PASOK), a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) da Nicarágua, o Fatah palestino, o Partido Socialista português, o Partido Socialista do Uruguai e o Partido Democrático Trabalhista (PDT) no Brasil.

Trouxas II (Alusivo ao Artur Barrio). Fábio Magalhães.

Saíram da Internacional Socialista vários partidos que em 2013 fundaram a Aliança Progressista, integrada hoje por partidos como o Movimento ao Socialismo (MAS) boliviano, o Partido Social-Democrata da Alemanha, o Congresso Nacional Indiano, o Partido Trabalhista Israelense (HaAvoda) e o Meretz de Israel, o Partido Trabalhista da Holanda, o Partido Socialista Europeu, a Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas atuante no Europarlamento, o Partido Democrata dos EUA, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB) no Brasil.

A centro-direita é o agrupamento de partidos políticos que buscam compensar de algum modo as desigualdades sociais existentes sem reduzi-las. Defendem que sociedades democráticas garantam aos indivíduos as liberdades políticas e pessoais, igualdade de oportunidades e de desenvolvimento econômico sob o império da lei e dos direitos humanos de primeira geração, pautas comuns ao liberalismo político clássico – nem sempre coincidente com o liberalismo econômico.

Um critério de avaliação da localização dos partidos de centro-direita no espaço político global é a participação na União Internacional Democrata (UID), integrada por partidos como a União Democrata Cristã (UDC) da Alemanha, a Proposta Republicana (PRO) da Argentina, o Kuomintang taiwanês, o Partido Popular Austríaco, o Partido Conservador da Noruega, o Partido Progressista sérvio, o Partido Republicano estadunidense, o Partido Conservador britânico, o Partido do Povo Indiano e os Democratas (DEM) do Brasil.

Ressalvas e cuidados na classificação

Nenhuma destas posições é absoluta. Indivíduos dentro de partidos podem ter práticas diametralmente opostas ao posicionamento da organização que integra em meio ao espaço político. De igual modo, partidos podem conter em seus programas e práticas elementos de esquerda e de direita. Adicionalmente, embora as ideologias políticas permaneçam relativamente estáveis no campo político, os partidos que as adotam costumam mudar de posição ao longo do tempo.

Tendo como base o fato de os partidos políticos serem organizações voltadas à tomada de poder de Estado por vias eleitorais ou revolucionárias, é a comparação entre as propostas e práticas dos partidos nos diferentes sistemas políticos atualmente existentes que permite colocá-los num ou noutro lugar do espaço político.

Todas dependem de comparação com outros partidos do mesmo sistema político, ou com outros sistemas. Salvo no caso das tendências e organizações políticas internacionalistas, que defendem variações da mesma política em contextos nacionais distintos, dificilmente se pode comparar a esquerda do sistema político de um país com a de outro, e o mesmo vale para a direita.

O espaço político brasileiro

Partidos de âmbito nacional num país de dimensões continentais, de economia muito diversificada, onde capitalistas empregam variadíssimas formas de extração da mais-valia de uma classe trabalhadora com composição étnica bastante diversificada etc. apresentam um enorme desafio às análises que tendem a simplificá-los.

Um exemplo: apesar do que comumente se diz na esquerda com grandes doses de exagero, DEM e PSDB estão muito longe de serem partidos fascistas. Representam variados matizes da tecnocracia e diferentes inserções na estrutura produtiva dos tecnocratas que os integram, e para complicar ainda mais a situação os vários “partidos” dentro deles respondem a diferentes bases econômicas regionais, estaduais e locais. Para complicar ainda mais a situação, o sistema eleitoral brasileiro permite alianças diversificadas nos diversos níveis da estrutura federativa brasileira.

É este o grande equívoco das simplificações excessivas do espaço político brasileiro, tal como a operada por André Singer no ”intermezzo histórico” de O lulismo em crise. Ele já se equivocara antes em Os sentidos do lulismo ao usar os “pobres” num esquema analítico de corte marxista originalmente talhado para a classe trabalhadora francesa do século XIX; falhou agora ao não considerar as diversas escalas em sua tentativa de estabelecer o PT como o “partido dos pobres”, o PSDB como o “partido da classe média” e o PMDB como o “partido do interior”. Sua análise, como a da vasta maioria dos cientistas políticos brasileiros, leva em conta principalmente as eleições presidenciais, secundarizando as eleições para o Congresso Nacional e ignorando solenemente as eleições estaduais e municipais, lá onde as certezas das eleições federais embaralham-se no cipoal das alianças e coligações “heterodoxas”. Singer falha igualmente por considerar o “urbano” e o “rural” como universos infensos a mudanças desde a década de 1940, mantendo intacta a equação uspiana/cebrapiana entre “rural” e “atraso”, de um lado, e “urbano” e “modernidade”, de outro; é precisamente a dialética marxista que anima suas pesquisas quem ensina existir “atraso” e “modernidade” tanto no campo quanto nas cidades, e que uma não sobrevive sem a outra. Infelizmente, o interessante e necessário cruzamento da expressão política das diferentes classes sociais nas três escalas federativas não cabe neste artigo.

A tabela 1 apresenta uma tentativa de localização dos partidos brasileiros atualmente existentes no espaço político, assim como o número de eleitores filiados em cada um deles. Como qualquer classificação similar, não pode ser tida como definitiva, nem representa qualquer opinião “científica” ou “neutra”; trata-se de uma classificação por meio de autodeclaração nos sites de cada partido (quando possível) e por meio do posicionamento de tais partidos pela imprensa.

Tabela 1: Localização dos atuais partidos brasileiros no espaço político e número de filiados

Partido Filiados Participação no total de eleitores filiados
Extrema-esquerda 185.513 1,10%
PSTU 17.142 0,10%
PCB 14.718 0,09%
PCO 3.738 0,02%
PSOL 149.915 0,89%
Esquerda 2.864.309 17,05%
PT 1.589.377 9,46%
PMN 221.183 1,32%
PSB 656.411 3,91%
PCdoB 397.338 2,37%
Centro-esquerda 2.741.640 16,32%
PDT 1.257.080 7,48%
REDE 23.936 0,14%
PPS 482.141 2,87%
PV 376.942 2,24%
PRP 250.891 1,49%
PPL 40.454 0,24%
SD 212.478 1,26%
PROS 97.718 0,58%
Centro 4.267.066 25,40%
PTB 1.191.886 7,09%
MDB 2.394.547 14,25%
PODE 167.041 0,99%
PSD 326.320 1,94%
AVANTE 187.272 1,11%
Centro-direita 4.206.524 25,04%
PRB 396.796 2,36%
PR 797.396 4,75%
DEM 1.094.162 6,51%
PHS 215.173 1,28%
PMB 42.619 0,25%
PTC 199.420 1,19%
PSDB 1.460.958 8,70%
Direita 2.153.829 12,82%
PP 1.444.264 8,60%
PSC 423.418 2,52%
DC 187.318 1,12%
NOVO 19.026 0,11%
PATRI 79.803 0,48%
Extrema-direita 380.357 2,26%
PRTB 138.901 0,83%
PSL 241.456 1,44%
TOTAL 16.799.238 100,00%

Fonte: TSE, sites dos respectivos partidos, O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, A Tarde, Correio 24h, O Popular, Correio Brasiliense e outros.

Centro-direita e centro-esquerda podem ser agrupadas junto ao centro, como o fez André Singer em outras oportunidades; isto resultaria na alocação de 66,76% dos eleitores filiados num “centro ampliado” e no compartilhamento do mesmo campo por notórios adversários como PT e PCdoB, de um lado, e PSDB e DEM, do outro. Diferentemente, centro-esquerda e centro-direita podem ser agrupados junto à esquerda e extrema-esquerda, de um lado, e à direita e extrema-direita, de outro; este método corresponde mais à realidade e resulta numa alocação de 40,12% do eleitorado filiado a partidos numa “direita ampliada” que vai da extrema-direita à centro-direita, de 25,40% num “centro puro” que se alia à esquerda e à direita ao sabor das circunstâncias e de 34,47% numa “esquerda ampliada” que engloba desde a extrema-esquerda até a centro-esquerda. Numa hipotética situação de extremos, a aliança da “direita ampliada” com o “centro puro” resultaria na alocação de 65,52% do eleitorado filiado num campo “conservador”; de outro lado, uma hipotética aliança da “esquerda ampliada” com o “centro puro” resultaria na alocação de 59,87% do eleitorado filiado a partidos num campo “progressista”.

O número de eleitores filiados não reflete de modo algum os resultados eleitorais. Como se sabe, o comportamento eleitoral no Brasil é menos determinado por fidelidades partidárias que pela identificação muito lata de eleitores entre a “esquerda ampliada” e a “direita ampliada”, de um lado, e de outro pela avaliação utilitária e pragmática do voto (sem qualquer conotação pejorativa no uso destes dois adjetivos) em meio às alternativas que se apresentam a cada nova eleição. Adicionalmente, o número de filiados não varia apenas em função do alinhamento ideológico, pois há oportunidades em que os partidos são “inflados” por alguns de seus chefes para fazer número nas convenções internas e processos eleitorais para a direção dos partidos. Há ondas de filiação estritamente determinadas pelas conveniências eleitorais, em especial quando se pretende beneficiar da popularidade momentânea de um candidato (p. ex., o que acontece com o PSL depois da filiação de Jair Bolsonaro). Pode acontecer também um aumento no número de filiados para aumentar o caixa partidário. Com todas estas ressalvas, a distribuição de eleitores filiados aos partidos expressa, sem embargo, uma situação conjuntural em que os partidos da “direita ampliada” são mais procurados que os da “esquerda ampliada” por eleitores que pretendem de algum modo engajar-se na política partidária – é este o fenômeno que deve ser compreendido para entender os rumos da política atual, em especial no que diz respeito à juventude (ver reportagens a este respeito aqui, aqui, aqui e especialmente aqui); entender a conjuntura olhando apenas para a extrema-esquerda é pura miopia.

Este espaço político é estruturado, arranjado e permeado pelas pautas, demandas, interesses e propostas surgidas em meio aos conflitos e lutas sociais característicos da formação social brasileira. Daqui por diante, na parte seguinte deste ensaio, se verá mais especificamente como se forma neste espaço político um campo sensível aos temas do populismo e do fascismo, estruturado num eixo endógeno e num eixo exógeno.

etc. [Para Artur Barrio]. Mazzilli.

Este artigo é o sexto de uma série. Leia as demais partes clicando aqui.

6 COMENTÁRIOS

  1. O fascismo de entre as guerras mundiais só se converteu de movimento em regime em países que depararam com obstáculos ao crescimento económico, fossem esses obstáculos de ordem económica ou política. A situação hoje parece equiparável, já que as alterações geoeconómicas provocadas pelo decoupling (peço desculpa por não usar o termo «desengatamento», que é realmente difícil de engolir para um português) geraram tendências fascistas em alguns países. No Estados Unidos, por exemplo, o governo Trump, sem ser fascista, acolhe uma ala fascizante, de que Steve Bannon foi o elemento mais destacado. Mas o caso até agora mais significativo é o italiano, com o governo de aliança entre a Liga e o Cinco Estrelas. A Liga é um partido fascista com abertura aos fascistas radicais, e basta ver as recentes expressões de simpatia de Salvini pela CasaPound.

    A este respeito, cabe aqui uma reflexão. Os conceitos «populismo» e «populista» não gozam de simpatia entre a extrema-esquerda, e logo no primeiro artigo desta série Manolo revelou-se um tanto ou quanto avesso ao seu emprego. No entanto, se esses conceitos hoje reapareceram e se difundem, isto deve-se a uma necessidade prática, porque sem eles torna-se impossível reunir num mesmo quadro de análise fenómenos que na prática se encontram reunidos. Sem admitirmos a existência de uma teia populista, mais ampla e difusa do que o fascismo, dificilmente se explica a convergência da Liga com o Cinco Estrelas. No centro dessa teia impera a figura de Putin, e são ele e o círculo em seu redor quem tem fomentado politicamente e apoiado monetariamente este novo populismo, que junta um programa social a uma estratégia nacionalista. Na Europa, a estratégia nacionalista visa o ataque à União Europeia, esforçando-se por fragmentá-la e por desagregar a Zona Euro. Nesta estratégia convergem partidos fascistas, como a Liga em Itália, partidos da extrema-direita radical, como o Rassemblement National de Marine Le Pen em França, e partidos comunistas, como Partido Comunista Português, que recentemente votou no Parlamento Europeu em defesa do regime de Orbán. Sem o conceito de populismo, mais amplo e mais ambíguo do que o conceito de fascismo, não se pode dar conta da formação desta teia. E esta teia é imprescindível também para entendermos o que agora ocorre no Brasil.

    É que o decoupling não se limitou a erguer obstáculos ao crescimento económico em países que antes haviam ocupado uma situação dominante, mas fê-lo igualmente em países emergentes como o Brasil. No terceiro artigo desta série Manolo, depois de chamar a atenção para as alterações que o decoupling está a provocar na forma de internacionalização da economia brasileira, escreveu que «a crise econômica afeta mais os capitalistas pouco capazes de exportar capitais ou de atrair investimentos externos diretos». Ficou assim desenhado um dos campos de apoio de um fascismo brasileiro, quando empresas arcaicas e ineficazes procuram o amparo do poder político para construírem uma reserva de mercado. Seria bom que a extrema-esquerda reflectisse a partir desses dados, em vez de papaguear as eternas diatribes contra o neoliberalismo e o imperialismo (entendido exclusivamente como Estados Unidos). Os conceitos ultrapassados que têm curso na extrema-esquerda só se explicam pelo facto de ela estar vocacionada para uma realidade também ultrapassada. O problema é que com uma chave de parafusos só se pode manipular parafusos, e se há muito já deixara de ser possível analisar em quadros nacionais uma economia que se internacionalizara, hoje é impossível analisar como soma de nações uma economia que se transnacionalizou. Ora, o trágico é que uma boa — ou má — parte da extrema-esquerda pretende dar voz aos mesmos anseios, apresentando como programa o mesmo proteccionismo e o mesmo nacionalismo que são o programa do fascismo clássico. É aqui, na teia assim gerada, que o conceito de populismo me parece imprescindível.

    Este carácter estatista da extrema-esquerda é mais lamentável ainda quando pretende enfrentar a reforma das leis do trabalho. Nos quarto e quinto artigos desta série Manolo traçou um quadro diversificado da exploração da força de trabalho brasileira nas actuais circunstâncias, mas neste comentário vou limitar-me a sublinhar um aspecto, especialmente interessante por atingir sectores modernos. É que a reforma trabalhista não decorre, ou não decorre exclusivamente, no plano governativo. Se os governos não promovem essa reforma, as empresas realizam-na na prática. A uberização é a modalidade mais notória dessa reforma trabalhista realizada na prática, dando à terceirização uma nova amplitude. Muitas vezes o desemprego não significa que não se trabalhe. Significa que se trabalha sem estabilidade nem garantias, e se nesta situação muitos desempregados se dedicam a actividades tradicionais ainda vivas no Brasil, noutros casos a actividade é mais moderna e por isso mais rentável para o capitalismo. É aqui que a Uber e congéneres têm um vasto campo de acção. Em suma, as grandes remodelações da economia capitalista não dependem de eleições nem de jogos partidários. Os políticos eleitos é que se adequam às remodelações já efectivadas na prática. Entretanto a esquerda só consegue lutar contra a uberização propondo reservas do mercado de trabalho, ou seja, lançando uns trabalhadores contra outros, numa réplica do que sucede com o nacionalismo e o proteccionismo.

    No Passa Palavra têm sido publicados ultimamente numerosos artigos e comentários que debatem as eleições presidenciais e as alternativas que elas colocam. Ora, é um sintoma do estado a que chegou a esquerda anticapitalista, ou melhor, do estado a que chegou o anticapitalismo na esquerda, que esse debate esteja a processar-se no plano estritamente político, em vez de tomar como pano de fundo a situação descrita e analisada por Manolo no quinto artigo desta série. A luta da classe trabalhadora no plano económico que lhe pertence encontra-se sem voz nem expressão, e o que se ouve é apenas o confronto entre políticos profissionais no plano das instituições capitalistas.

    Se os movimentos identitários forem, como tenho afirmado que são (ver o último capítulo do meu livro Labirintos do Fascismo, na sua 3ª versão https://archive.org/stream/jb-ldf-nedoedr/BERNARDO%2C%20Jo%C3%A3o.%20Labirintos%20do%20fascismo.%203%C2%AA%20edi%C3%A7%C3%A3o#page/n1361 ), uma componente do fascismo pós-fascista, então o que está neste momento a ocorrer no Brasil é um confronto entre dois tipos de fascismo, um representado por Bolsonaro e o outro pelos movimentos identitários que se lhe opõem. A clivagem não é, porém, tão nítida, pois entre os apoiantes arruaceiros de Bolsonaro, aquilo a que eu poderia chamar as suas milícias informais, predominam as réplicas de movimentos sociais originariamente anticapitalistas, num processo que já foi analisado no Passa Palavra. Ora, este confronto entre tipos diferentes de fascismo não é uma anomalia nem uma novidade. Ele ocorreu na Roménia, onde duas modalidade de fascismo se exterminaram reciprocamente numa espiral sanguinária; ocorreu na Áustria, onde um dos tipos de fascismo liquidou o outro; ocorreu também, embora sem chegar a consequências tão extremas, no Japão, na França ocupada pelas tropas germânicas, em Portugal em 1933-1934; e, para não ir mais longe, no Brasil durante o Estado Novo, quando a Acção Integralista defrontou Getúlio Vargas.

    Será que estaremos agora reduzidos a um remake, assistindo ao confronto entre o fascismo e o fascismo pós-fascista?

  2. João, você deve ter acompanhado as últimas eleições francesas. Por lá, dois candidatos disputavam o título de “populista”, Le Pen e Mélenchon, o segundo inclusive se recusou a declarar apoio a Macron quando este último foi ao segundo turno contra Le Pen. Pois bem, há uma autora muito bem recebida por Mélenchon, a Chantal Mouffe, que está defendendo a existência de um “populismo de esquerda”. Mas isso não é uma crítica, e sim um grande elogio. O povo que defende o “populismo de esquerda”, entretanto, fecha os olhos para a intensa migração dos votos dos seus candidatos para os candidatos que eles juram combater, os “populistas de direita”, como se isso não lhes dissesse respeito.

  3. João, deixo aqui algumas notas mentais acerca de seu comentário enquanto não saem publicadas as demais partes da série.

    Em primeiro lugar, o foco da vasta maioria da esquerda nas disputas eleitorais e na criação de algo como “guetos discursivos” isolou-a completamente dos grupos onde a campanha de Bolsonaro teve e tem maior ressonância. É comum hoje a piada criada nas eleições de 2006 de que depois das eleições não existem mais jantares de Natal, pois se antes do acirramento eleitoral ninguém mais se falava, agora querem matar uns aos outros. Isto reflete o fato de que os avanços comportamentais emersos num ambiente de relativa prosperidade econômica distinguiram muito claramente campos na sociedade com discursos e práticas radicalmente distintos, quando não antagônicos. É o rapper que não fala mais com o amigo de infância hoje evangélico, é a jovem feminista que cria “ambientes seguros” de autodefesa e não consegue mais dialogar inclusive com as próprias colegas de escola, é o porteiro que nutre um ódio mudo contra os “maconheiros” do prédio, é o motorista de Uber furioso porque “foi censurado” por passageiros de esquerda que se recusam a andar num carro plotado com adesivos pró-Bolsonaro… Tudo isto são exemplos reais, que vão acontecendo com pessoas que me são próximas — bolsonaristas, petistas ou não. Os anos do PT no governo e as políticas públicas de inclusão social e econômica efetivamente tiraram centenas de milhares da miséria, mais que dobraram o número de pessoas com diplomas universitários e multiplicaram em várias vezes o número de universidades e escolas técnicas, fizeram a dita “inclusão pelo consumo”, mas ao mesmo tempo, e talvez por isto mesmo, mudaram a matriz política da esquerda brasileira. Não mais a esquerda com bases comunitárias e coletivistas, mas uma esquerda de “empreendedores”, de “batalhadores”, de grupos politicamente oprimidos em busca de conquistar não somente o espaço público, mas afirmando — com a agressividade resultante de décadas ou séculos de opressão e silenciamento — seu direito à existência e à vida. Aquela matriz universalista e coletivista, aquilo que bem o sintetizava a máxima “paz entre nós, guerra aos senhores” que foi própria da esquerda durante um século ou mais, isto cedeu lugar aos particularismos identitários. Em meio às lutas dos negros, mulheres, LGBTT, indígenas, quilombolas etc., também elas atravessadas por contradições e conflitos internos, venceu a weltanschauung fragmentária, lacradora, solipsista, pouco capaz de construir algo que transcenda as identidades particulares para construir algo distinto, que consiga conceber as diferenças em diálogo, não em apartação. Não demorará muito para que este trecho específico do comentário seja execrado pelos haters de plantão, mas basta olhar ao redor para checar se é ou não real o que digo.

    A segunda questão que apresento tem a ver, ainda que muito de longe e com muitos senões e poréns, com uma afirmação sua acerca das previsões de Marx e Bakunin quanto á Comuna de Paris: estavam “certos” ao prever o fracasso da Comuna antes de seu desfecho final, ou mesmo a impossibilidade de qualquer agitação revolucionária em Paris nos meses e semanas imediatamente anteriores à Comuna, porque com o repertório teórico de que dispunham era esta a resposta, digamos, “natural” a que eram levados; e estavam errados, pois as condições sociais haviam mudado muito e, portanto, mudaram também as condições em que aquela revolução se se processou, e também seus resultados. Apesar de Bolsonaro ter dito já em 2014 que se candidataria à presidência em 2018, ninguém acreditou. Melhor dizendo, poucos acreditaram. A julgar pelos marcos tradicionais das campanhas eleitorais, tudo indicava que a campanha de Bolsonaro estaria fadada ao fracasso: partido pequeno (e portanto máquina partidária frágil), pouca capacidade de costurar alianças, pouca capacidade de articular um programa de governo… Ocorre, como todos agora veem com variados graus de desespero, que as condições mudaram: os setores de mais baixa renda na sociedade brasileira têm acesso a smartphones com acesso a WhatsApp, e aquilo que serve para mandar nudes sem fiscalização serve também para fazer o que bem se entender, pois a conexão no WhatsApp tem criptografia ponta-a-ponta e o conteúdo só é visível para aqueles que participam do ato comunicativo. Resultado: uma campanha simultaneamente pública e subterrânea, simultaneamente ostensiva e clandestina, descentralizada muito além do que qualquer partido político jamais possa ter sonhado, e portanto de dificílima fiscalização. O paralelo óbvio são as campanhas de Trump e do Brexit, mas este lugar-comum de agora nada mais é que uma análise ex post facto.

    A terceira questão que apresento diz respeito a estas mudanças, e também a algumas continuidades; nos dois casos, elas tem sido tratadas de modo um tanto quanto estanque, sem relacionarem-se. Trata-se de questões que apresentarei com maior rigor e precisão nas partes vindouras da série sobre o fascismo. Tomo a liberdade, entretanto, de adiantar algumas conclusões, pedindo-lhe a paciência de aguardar que nas próximas partes do artigo tudo isto fique mais bem contextualizado e desenvolvido com fatos, números e exemplos.

    No eixo exógeno a esta teia formada pelos populistas e fascistas, temos os militares; se já eram formadores de força de trabalho disciplinada desde sempre, agora no Brasil, como demonstram as estatísticas, há mais candidatos às FF. AA. do que vagas, tornando o serviço militar obrigatório algo como um serviço voluntário de acesso altamente competitivo, ainda mais quando muitos jovens buscam nas FF. AA. um primeiro emprego e uma formação técnica. A isto se soma a crise orçamentária do Ministério da Defesa: se foram os governos do PT a reverter esta tendência durante a fase de prosperidade, nem por isto todos os conscritos o percebem, e isto deu azo à formação de alas radicalmente antiesquerdistas, ou abertamente fascistas, em meio aos soldados, praças e ao oficialato subalterno. São estes mesmos os que circulam entre as FF. AA. e dois outros componentes do “elemento bélico” do eixo exógeno: as forças privadas de segurança e o crime organizado.

    Ainda no eixo exógeno à teia populista e fascista, há o “elemento conservador”, que no caso brasileiro diz respeito ao fundamentalismo neopentecostal e ao arraigado e difuso misticismo vigente em meio à população brasileira. Durante décadas o neopentecostalismo virou as costas à política, mas desde meados dos anos 1990 esta vertente do cristianismo protestante adotou a política “irmão vota em irmão” que resultou na formação da temida bancada evangélica. Este neopentecostalismo fundamentalista, que chamo sem rodeios de clinicamente paranoico, vive em meio a outros neopentecostais que são conservadores no campo dos costumes, mas com quem não partilham o grau de extrema paranoia. Unem-nos não apenas os ritos, gestos, falas, hábitos e vestimentas, mas a profunda crença numa concepção persecutória de mundo: daí o “kit gay” e outras mentiras muito piores que circulam nestes meios como se fossem uma verdade ocultada pela mídia, daí a vinculação direta às teorias conspiratórias (maçonaria, Illuminati etc.)… Os paralelos com as paranoias do núcleo duro nazista e com a mentalidade que tornou possível a aceitação destas paranoias por vastas massas na Alemanha, estes paralelos tornam-se, por este caminho, muito ilustrativos. Há mais a dizer sobre o assunto, mas não quero ser enfadonho quando tratarei extensamente do assunto.

    No eixo endógeno, não há nenhum partido ou movimento fascista organizado no Brasil que tenha relevo ou impacto suficientes para causar assombro. Mas é isto necessário em tempos de comunicação horizontalizada? É isto necessário quando, como externalidade negativa das facilidades à comunicação causadas pela internet, basta um youtuber afirmar algo para que passe como verdade sem qualquer comprovação? É isto necessário quando estes mesmos influenciadores digitais (ou digital influencer, para os mais “descolados”) mantém algum nível de consistência e coerência em meio a seus delírios, aparentando alguma verdade? É isto necessário quando há um público não digo nem fascista, mas conservador, formado em meio às forças armadas, às forças privadas de segurança, ao crime organizado e ao neopentecostalismo, onde os delírios encontram ampla ressonância? A meu ver, não é preciso um movimento fascista ostensivo neste contexto. Basta que os temas do fascismo e as teorias conspiratórias tenham uma boa roupagem audiovisual para movimentar centenas de milhares de pessoas. É Goebbels elevado à enésima.

    Como último elemento do eixo endógeno, há, como campo comum de teorias, discursos e práticas entre a esquerda e os fascistas, tudo aquilo que o Passa Palavra denuncia há quase uma década: mobilizações burocratizadas, apassivamento generalizado, nacionalismo em vários graus em meio à esquerda, criação de “guetos discursivos”, fragmentação dos trabalhadores e, em especial, a criação de uma verdadeira fratura entre os setores mais qualificados e os menos qualificados da classe trabalhadora. Quando, em março de 2013, o Passa Palavra publicou aquele texto sobre protestos virtuais e impotência política — falo mais precisamente da parte 2 –, que em meio às manifestações contra o pastor Marco Feliciano chegou ao fundo da questão e encarou de frente a fratura a que me refiro, nunca imaginei o alcance e a profundidade deste problema. Agora ele está aí exposto para quem queira ver: as estatísticas eleitorais do primeiro turno demonstram insofismavelmente que Bolsonaro consegue eleitores em meio aos municípios onde predomina o agronegócio, e também nas capitais e grandes centros urbanos, onde o neopentecostalismo torna-se a expressão religiosa se não majoritária, aquela com maior ressonância. Inversamente, as mesmas estatísticas demonstram como Haddad consegue maior votação nos municípios mais desfavorecidos em todos os sentidos, naqueles com IDH mais baixo, ou naqueles onde governos estaduais do PT e partidos aliados tenham feito investimentos pesados em políticas públicas que por qualquer razão haviam sido negligenciados por décadas.

    Estes quatro eixos devem ser compreendidos num contexto global. Pelo que tenho visto, é nos países mais impactados pela crise aberta em 2008 que as tendências fascistas desenvolveram-se ao ponto de influenciar decisivamente na política. Trump = trabalhadores menos qualificados e extremamente prejudicados pela “globalização”; Brexit = trabalhadores das áreas mais retardatárias da economia britânica, ela própria muito impactada pela crise, rejeitando tudo o que tenha a ver com a “globalização”; Bolsonaro = trabalhadores menos qualificados somados ao pequeno empresariado (que no Brasil é muito numeroso) personificando no PT os efeitos da recessão 2014-2016, ela própria efeito retardado das crises de 2008 e 2011, e embarcando numa aventura reacionária, facilmente classificável como populista, quando não como fascista ou fascizante. Isto sem falar que a ascensão do judiciário em várias crises políticas mundo afora, a que você já se referiu algumas vezes em outros comentários, me parece, a meu ver, uma tentativa de estabilização, de “domesticação” destas tendências ao rule of law, ou seja, àquelas exigências de previsibilidade, legalidade e “confiança” necessárias ao desenvolvimento econômico capitalista regular.

    Mas neste cenário de complexidades, é claro, há quem queira soluções simples, narrativas simples, ações simples. Não é o meu caso.

  4. O comentário do Manolo anuncia todo um vasto programa, mas uma passagem chamou-me especialmente a atenção: «[…] não há nenhum partido ou movimento fascista organizado no Brasil que tenha relevo ou impacto suficientes para causar assombro. Mas é isto necessário em tempos de comunicação horizontalizada? É isto necessário quando, como externalidade negativa das facilidades à comunicação causadas pela internet, basta um youtuber afirmar algo para que passe como verdade sem qualquer comprovação? É isto necessário quando estes mesmos influenciadores digitais (ou digital influencer, para os mais “descolados”) mantêm algum nível de consistência e coerência em meio a seus delírios, aparentando alguma verdade? É isto necessário quando há um público não digo nem fascista, mas conservador, formado em meio às forças armadas, às forças privadas de segurança, ao crime organizado e ao neopentecostalismo, onde os delírios encontram ampla ressonância? A meu ver, não é preciso um movimento fascista ostensivo neste contexto. Basta que os temas do fascismo e as teorias conspiratórias tenham uma boa roupagem audiovisual para movimentar centenas de milhares de pessoas. É Goebbels elevado à enésima». Lembro-me de já há muitos anos, na verdade já há várias décadas, eu dizer em conversas que a Inglaterra (a Inglaterra especificamente, não a Escócia) não precisava de ter um partido fascista porque a imprensa de massas, os tabloids, cumpriam essa função. Eu dizia isto sobretudo como blague, embora com uma parcela de seriedade. Mas hoje a questão, tal como o Manolo a colocou, é inteiramente séria. No entanto, será que essa rede de comunicação horizontalizada pode continuar a substituir-se a um partido fascista, ou será que em breve há-de gerar um partido fascista? O que sucedeu em Itália com o Movimento 5 Estrelas poderá talvez ser elucidativo, porque este Movimento baseou-se inicialmente numa rede estabelecida na internet e funcionando à maneira das redes sociais, e agora assumiu o perfil de um partido clássico, aliando-se à Liga para formar o primeiro governo claramente fascista da União Europeia.

    Aliás, não levem a mal a minha observação, mas se os brasileiros olhassem para o que se passa fora do Brasil poderiam entender melhor o seu país. O mais urgente é conhecer a actuação do presidente Duterte nas Filipinas, porque ele é uma versão aumentada de Bolsonaro — aumentada em truculência e em desmandos verbais. Serve de lupa. Se quiserem prever o que poderá ser uma presidência de Bolsonaro, olhem para o que é a presidência de Duterte.

  5. O comentário de Caribé sobre a migração de votos do populismo de esquerda para o populismo de direita está relacionado, creio eu, com outro processo que podemos verificar atualmente.

    Vejam, por exemplo, esta notícia: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/eleitores-de-partidos-de-esquerda-engrossam-vantagem-de-bolsonaro.shtml

    Sobre isso, gostaria de adicionar o seguinte: tenho percebido que o identitarismo está cada vez mais forte nas redes sociais, justamente por causa do fortalecimento da candidatura do PSL e do fascismo que se forma ao seu redor.

    Muita gente de esquerda ataca o Bolsonaro porque ele representaria um conjunto de identidades antagônicas às identidades negra, feminina, LGBT, etc. Pautar a exploração e o modo de explorar específico dos capitalistas simpáticos ao Bolsonaro, por exemplo, passa longe das preocupações. Quando muito, “capitalista” é também uma identidade, o que acaba contribuindo para que sejam excluídos da conta os gestores petistas, etc. (afinal, Lula não tem nada a ver com Bolsonaro, Mourão com Haddad, etc.)

    Por outro lado, Bolsonaro e seus asseclas, com toda aquela defesa da “família” e dos valores tradicionais, etc., são a outra face da mesma moeda. Definem-se e projetam-se contra a esquerda – só que à sua maneira – também em termos identitários. E da mesma forma que à esquerda as pessoas deixam de refletir sobre a economia capitalista e as relações de exploração, à extrema-direita chega-se ao ponto de qualificar políticas públicas claramente capitalistas como “comunismo”, os direitos humanos são uma reivindicação “comunista”, discussões sobre gênero são “comunismo”, e assim por diante.

    Tudo isso facilita o trânsito de pessoas que se situam no campo da esquerda identitária – uma das modalidades do fascismo na atualidade, como colocado por João Bernardo no comentário acima – para o campo bolsonarista – outra modalidade de fascismo pós-fascista. Basta trocar de cor, trocar esta palavra por aquela, este gesto por aquele, etc.

    Não é de outro modo que interpreto a notícia que compartilhei no link acima.

  6. Uma análise que nega o fascismo no Brasil, justamente por não ser igual ao italiano, além de considerar que se trata de um fenómeno exclusivamente europeu e historicamente derrotado. Além de exaltar apenas o eixo radical, definindo o fascismo como um “movimento revolucionário”… Tem uma esquerda que adora um “líder carismático”…

    http://www.iela.ufsc.br/noticia/nao-existe-fascismo-no-brasil?fbclid=IwAR1-TbSGbRKD-BYngGjYY8_j-TL4unz93lFuyXZeVqGl-cQ01SlzTc9m5jo

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