Por Passa Palavra

As eleições de 2018, e a candidatura de dois ex-militares – Jair Bolsonaro (PSL) e Cabo Daciolo (Patriota) – reabre o debate, muito comum na esquerda, em torno das reivindicações políticas dos militares. Qualquer reivindicação política é legítima por si só; o tema do debate diz respeito a saber se as reivindicações dos militares de baixa patente podem ou não ser integradas no conjunto das reivindicações da classe trabalhadora.

O ponto em comum a vários ex-militares que se lançaram na política nas últimas décadas é terem liderado motins (militar não faz greve) pela melhoria de seus salários e remunerações. É daí que arrumam a legitimidade eleitoral inicial, pois militares e suas famílias também votam.

A diferença entre Bolsonaro e Daciolo é que Bolsonaro não foi cooptado pela esquerda – apesar de ter sido base de votação do PT em vários projetos econômicos no Congresso – enquanto Daciolo foi rapidamente cooptado pelo PSOL, que depois o expulsou de seus quadros.

No que diz respeito a Daciolo, há outro fator curioso, que o aproxima de um político baiano chamado Pastor Sargento Isidório. Os dois envolveram-se em motins salariais, os dois foram cooptados para a política inicialmente por partidos de esquerda (no caso de Isidório, o PT baiano de 2001), os dois enveredaram pelo caminho neopentecostal como pastores e os dois deram vazão à sua verve neoconservadora depois de entrarem na política pela mão da esquerda.

Diga-se de passagem que no caso baiano Isidório não foi o único a ser cooptado no motim de 2001; o Soldado Prisco foi cooptado na mesma leva, no malsinado “Movimento 5 de Julho” (criado pelo PT em 2001, segundo o próprio), e hoje é deputado estadual como Isidório. O nome deste movimento já extinto, que coincide com uma data-chave do chavismo – outra modalidade do militarismo político –, refere-se à data inicial da greve da PM baiana em 2001 (ver maiores detalhes aqui e aqui). Expulso da PM baiana em 2002, Prisco seguiu como liderança nacional dos militares descontentes com seus salários e condições de trabalho, participando de vários movimentos de lá até cá; sua reintegração à PM baiana, em outubro de 2017, foi contestada pelo governo da Bahia em diversas ocasiões anteriores. As relações entre Prisco e Daciolo vão além da simples semelhança, pois agiram juntos em mobilizações militares recentes.

A insatisfação de setores dos militares com suas remunerações parece ser, assim, uma das contradições sociais centrais para sua entrada no campo político. É comum na esquerda que se tome a origem dos militares na classe trabalhadora como razão para apoiar as manifestações políticas dos militares de baixa patente. Não é bem este o caso. Sob a máscara de um elemento da classe trabalhadora, o que se encontra num militar já é outra coisa.

No caso da polícia, a origem dos soldados e praças na classe trabalhadora, conquanto real, é precisamente um dos requisitos para função, pois para reprimir adequadamente precisam conhecer os hábitos e a mentalidade daqueles de sua mesma classe que viessem a delinquir; nisto se aproximam tanto os bobbies britânicos (nos moldes estabelecidos por John Peel em 1829) quanto os capitães-do-mato brasileiros.

No caso das forças armadas, sua origem na classe trabalhadora tem a ver com formas brutais de disciplinamento das “classes perigosas”; basta verificar como exército e marinha em diversos países, Brasil incluso, tem tradições antigas de recrutamento por sequestro e de recrutamento em prisões e delegacias, conquanto extintos ou em vias de extinção estes modos mais extremos, típicos dos momentos históricos em que as “classes perigosas” precisavam ser disciplinadas como trabalhadores dóceis, basta ver como os trabalhadores em quem mais se inculcou a disciplina militar costumam ser “os mais produtivos”, “os mais empreendedores” etc. para comprovar a continuidade da função disciplinar das forças armadas sobre a classe trabalhadora.

O enraizamento dos militares na classe trabalhadora tem a ver também com antigos hábitos hierárquicos herdados do regime senhorial da Idade Média; basta comparar os nomes das patentes dos praças com os das patentes do oficialato para constatá-lo. Soldado vem de soldarius, “aquele que vive de soldo”. Cabo vem do italiano capo corporale ou caporale, comandante de um “corpo”, um reduzidíssimo grupamento de poucos soldados. Sargento vem do latim servientem, “servente”, “vassalo”. No oficialato, a situação é diferente. Tenente, abreviação da antiga patente “lugar-tenente”, vem do francês lieutenant, “aquele que ocupa o lugar de alguém”, ou seja, um comandante substituto. Capitão vem do grego κατεπάνω / katepánō, “aquele que está no topo”, e também do latim caput, “cabeça” (no sentido de “comandante”). Major é a palavra latina que significa “maior”. Coronel vem de capitaneus columnello, ou seja, “o que comanda uma columnella (pequena coluna). Almirante vem do árabe أمير الـ / amīr al-, “comandante de” determinada formação militar, que deu origem à palavra latina admiralis com o mesmo sentido. General vem do antigo posto de capitaneus generalis, ou seja, “comandante-geral”. Brigadeiro era o comandante de uma brigada, formação militar de grande porte. E por aí vai a etimologia, cristalizando no significado das palavras o conteúdo de relações sociais pretéritas e atualizando-as de outras formas, em outros contextos.

Que relação isto guarda, por exemplo, com o recorrente debate em meio à esquerda anticapitalista acerca do apoio ou rejeição às mobilizações de militares? Tratamos do assunto em outras oportunidades (ver aqui, aqui), e este conjunto de fatos parece nos dar razão. Outros artigos publicados no Passa Palavra sobre o mesmo assunto (ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui) reforçam este sentimento. Deve-se ter atenção a este campo porque é aí, principalmente, que proliferam as relações entre os militares e a extrema-direita (ver aqui, aqui, aqui, aqui).

Quem observar a política estadual e municipal em vários lugares do Brasil certamente terá exemplos semelhantes, e o padrão se repete, pois uma das reclamações mais constantes nos meios militares radicalizados – à direita e à esquerda – é a desvalorização salarial das forças armadas e auxiliares (polícias e bombeiros militares), mesmo contrariando os fatos, pois verificam-se significativas melhoras tanto neste aspecto quanto no investimento em armas, veículos, aeronaves etc. no Brasil nos últimos quinze anos.

A nosso ver, as manifestações políticas dos militares em favor de melhores remunerações e de reequipamento das forças armadas ou auxiliares estão fora do campo da classe trabalhadora. Partidos de esquerda “adotam” esta pauta seja por uma leitura dogmática e pouco flexível da prática bolchevique, incapaz de perceber as diferenças de contexto que separam o contexto atual do contexto russo das primeiras décadas do século XX, seja por puro e simples oportunismo eleitoreiro. Os resultados estão aí para quem tenha olhos de ver.

As imagens são do curtametragem “O dia em que Dorival encarou a guarda”.

13 COMENTÁRIOS

  1. Aqui em Florianópolis a prática mostrou outra coisa, como toda a esquerda da cidade sabe (a não ser os dogmáticos que seguem a linha centralizada do partido).

    Até hoje por vezes em pautas da classe trabalhadora, como a não privatização da distribuição de medicamentos pelo governo estadual, a presença numérica da Associação dos Praças foi maior que de qualquer outra categoria. Não há uma alma sequer na esquerda da cidade que não enxergue essa associação (sindicato) como parte da esquerda da cidade. Isso é pela prática.

    Não consegui pescar qual o argumento do artigo para afirmar que os militares de baixa patente não podem fazer parte da classe trabalhadora?

    Qual o argumento afinal?

    Aliás, não fica claro nem qual o conceito e o entendimento do que é classe trabalhadora.

    É pela função da polícia? Mas é isso que define quem é trabalhador ou não? É o tipo de trabalho que define quem pode ser ou nao da classe trabalhadora?

    Evidente que a função da polícia coloca uma contradição mais explícita entre a atividade e o fato de ser assalariado. Ora, mas deixa mais explícito contradição que existe também em outras atividades assalariadas em maior ou menor medida, como a de professor também, e quantos mais agentes do Estado…
    Contradição do próprio trabalhador enquanto força de trabalho, que no processo de luta até chegar na revolução passa a se negar enquanto tal, enquanto força de trabalho, enquanto função para o capital.

    Esse processo de questionamento da própria função, em parte da sua atividade, dos objetivos do trabalho e da produção está presente e faz parte de qualquer luta de trabalhadores. Com os militares de baixa patente é apenas mais explícita essa necessidade.

    No meio da policia militar há o próprio questionamento de ser militar. A maioria preferia não se-lo.

    Em 2004 pude ver onde pode chegar esse processo de luta, de trabalho de base, que traz o questionamento da função e do objetivo do trabalho. Em cma do carro de som, numa manifestação de policiais militares, com apoio da esquerda da cidade, se questionava veementemente a função da polícia, deles próprios, dizendo que deveria ser de garantir a segurança das pessoas e não proteger a propriedade privada.

    O trabalhador é cindido. O policial ou o militar também. Não seria possível luta de classes e nem poderia existir possibilidade de revolução se não houvesse essa contradição e a capacidade do trabalhador negar aquilo que é.

  2. Os argumentos do artigo estão claros para quem saiba ler, mas parece que debater com o que não está escrito virou a regra na internet nos últimos tempos. A discordância — que é legítima, diga-se de passagem — é confundida com o não-reconhecimento dos próprios argumentos e pontos de vista naqueles com quem se debate; se o próprio argumento não está lá, se o outro argumenta de outra forma, apresenta outros raciocínios etc., o que há não é discordância, mas questionamento da falta de argumento. Deslegitimação do debate, portanto. Impossibilidade de debate enquanto não se partir da concordância, ou, melhor dizendo, da ressonância dos mesmos argumentos no outro.

    O problema, visto por outro lado, está em buscar a polẽmica tomando a exceção pela regra. A APRASC é o que é por causa das correntes prestistas que atuaram (não sei se ainda atuam) por muito tempo no interior da associação. Como se sabe, o prestismo vem de longa tradição de militares de esquerda. E aí o debate começa a girar em círculos. Isto, claro, para quem conheça a história do tenentismo e do prestismo dentro do velho PCB. Quem não conhece continuará girando em falso na confusão entre militares e trabalhadores.

    Naquilo em que se pode avançar com bom proveito no debate é na afirmação de que os trabalhadores são cindidos. Ou bem vendemos nossa força de trabalho para sobreviver, ou bem nos rebelamos. Claro, isto é fato. Todos somos cindidos por estas questões. Acontece que este argumento, sem qualquer ressalva, tende a homogeneizar as demais classes sociais, que são também atravessadas por conflitos de natureza distinta. Há momentos em que os interesses conjunturais em jogo colocam pontos de convergência entre classes sociais distintas e antagônicas, o que não significa de modo algum que estas classes se fundam ou se diluam por força destas convergências pontuais. Não percebê-lo pode conduzir a sérios problemas na compreensão da conjuntura.

  3. Com um pouco de boa vontade (ou má vontade, dependendo do viés classista), seria possível fazer uma comparação do tipo regra de três: o trabalhador assalariado está para o escravo, assim como o policial (militar ou civil, ambos assalariados) está para o capitão do mato.
    O proletário é o escravo assalariado. O policial (com ou sem farda) é o capitão do mato estatal-assalariado.
    Todos são trabalhadores? Há quem (leninistas, jacobinos populistas etc.) diga que sim…

  4. Léo Vinícius deu para defender até a polícia agora, sinal dos tempos… Em Florianópolis, os mesmos policiais que reprimiram a revolta da catraca, era os queridos “praças” que os prestistas tanto defendiam. Militantes da juventude prestista chegaram a acobertar atividades de P2 na época, dizendo que eram membros do PCdoB, no final descobriu-se que sabiam até os nomes dos “praças” P2. Enquanto isso, manifestantes eram presos sob seu focinho. Pouco tempo depois eram os mesmos praças que estavam em greve, com os prestista usando camisetas da APRASC. Assim como houve um “ato unificado” onde os “boa praças” a paisana, com suas camisetas da APRASC, fizeram o cordão de isolamento da manifestação que ocupou apenas uma pista da ponte, para “não atrapalhar o trânsito”. Ou seja, era o movimento antes por eles reprimido, agora por eles tutelado. E Léo Vinícius estava lá, embora não deva se lembrar…

  5. assim como os gestores podem ser recrutados de setores populares, os e as policiais também. Assim como os e as gestoras podem em dados momentos inclinar-se pelas reivindicações da classe trabalhadora na correlação geral de forças, alguns setores das forças repressivas também. Vale lembrar, no entanto, que um exército de conscritos (isto é, recrutados À FORÇA) em uma guerra nacional não é treinado, nem tática nem ideologicamente, para a repressão da classe trabalhadora ou camponesa da qual foi retirado. Estas guerras, alias, já praticamente não existem. Um policial é treinado para botar “ordem” em qualquer situação. Um soldado é treinado para atacar ou defender posições. As diferenças são grandes.
    Policial não é trabalhador, assim como um burguês nascido em berço de miséria tampouco o é. Não deixa de ser importante, para todos e todas as revolucionárias, observar os fenômenos próprios destes setores (de forças armadas e repressivas, cada vez havendo menos diferença entre ambos).

  6. O sujeito anônimo que diz que defendo polícia já começa mal. Polícia é uma instituição. Onde a defendi?

    Depois ele segue com um truísmo, a polícia reprime. Nossa, a polícia que reprimiu as revoltas da catraca era a mesma que um grupo de esquerda fazia trabalho de base. Que surpresa, não houve deserção… não chegamos na revolução.

    Até poderia haver uma discussão interessante sobre a mudança sentida da atuação da PM de SC, que de anos para cá passou a usar mais a inteligência e a ‘política’ (ah sim, eles ainda reprimem quando querem ou aham necessário). Mas como se vê, se não largarem as armas e desertarem, os policiais não são trabalhadores. Porque, claro, como se sabe, as funções são subvertidas e as contradições explodem do dia pra noite.

    Por fim, o anônimo terminal mal novamente, mostrando que fora a verborragia sobre quase nada do que escreveu. Uma manifestação de uma categoria é essa categoria que deve definir o que quer ocupar ou não. Ou seja, eles se autotutelarem ao definirem que uma pista ficaria liberada da ponte. Mas pelo jeito o sujeito anônimo quer dizer para os outros o que devem fazer na própria manifestação ou greve.

  7. Você estava lá Léo Vinícius, não se faça de desentendido… Era uma manifestação de civis integrada pelos praças, que se autointitularam os “seguranças da manifestação”. Eram civis dentro da fila demarcada pelos praças, fora. O movimento não era deles apenas. E essa costura foi feita graças aos prestistas da cidade, às voltas com o deputado Amauri, famoso membro da APRASC. É disso que estamos falando. Inclusive ali eles podiam ver como se organizavam os manifestantes, quais eram as lideranças, etc. Tudo com o respaldo da “esquerda”. Dormindo com o inimigo, é o nome desse filme…

  8. Caro anônimo, claro que eu estava lá. por que você acha que eu mencionei essa manifestação.

    Me pergunto por que estou respondendo um anônimo que sequer entende a diferença entre apontar que os policiais carregam contradições (são cindidos) e a defesa da instituição Polícia.

    Mas vamos lá: A manifestação era da APRASC. Era deles. Claro, com solidariedade da esquerda da cidade, pessoas de outros movimentos foram engrossar a manifestação, como eu aliás, que entrei nela saindo da rodoviária, chegando de uma viagem. Ora, os PMs, por serem militares, não podem se manifestar, não possuem os mesmos direitos políticos dos civis. Como você bem deve saber nas manifestações de militares as famílias dos militares costumam participar no lugar destes. Se os praças estavam fazendo a segurança lateral na ponte, qual o problema? Mas pra caber na sua teoria você tem que transformar isso em tutela de uma manifestação (que era deles mesmos!!!).

    Enfim, estou discutindo tática, sobre se vale a pena ou não fazer trabalho de base com policiais, enquanto você veio aqui reproduzir birra com outros grupos políticos.

    O problema do artigo em questão, aliás, é que ele não discuto a validade tática de se apoiar essas manifestações de policiais exemplificadas no artigo, ou se vale a pena fazer trabalho de base dentro das corporações policiais ou militares, ele simplesmente – sem fundamento a meu ver – define que policiais não são trabalhadores.

  9. Apenas para esclarecer, meu anonimato nada tem a ver com você, mas com o tema e o contexto. Não se hipervalorize.

    Em seguida, não se trata de “birra” com outros grupos políticos, mas da segurança dos movimentos sociais que têm em seu interior, infelizmente, organizações que fazem leva e trás com os policiais. Aliás, levam muito mais do que trazem, diga-se de passagem. Mas, isto não parece um problema para Léo Vinícius, que está muito mais preocupado com a segurança dos policiais e suas famílias, do que com o resto dos manifestantes… E ainda se admira com meu anonimato… Da próxima vez assinarei e colocarei RG, CPF e endereço completo…

  10. Ainda na graduação, partilhei a sala com um aluno que era tenente da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Um homem negro, sorridente, muito simpático e defensor do que no campus chamavam de “esquerda militar”. Conversei bastante com esse homem, sabendo que ele era cindido, ou falsamente cindido (a pulga atras da orelha sempre está na moda), mas uma coisa me marcou muito. Ele disse que o grosso do contingente da polícia militar é homem, negro e pobre, mas, ocorria um fenômeno estranho, como que ao vestirem o uniforme eles encarnassem soldados prussianos, dispostos a tudo pela corporação. Uma citação me marcou bastante, nesse período:
    “ver-se-iam os defensores da pátria tornarem-se, mais tarde ou mais cedo, seus inimigos e manterem continuamente um punhal alçado contra seus cidadãos, e chegaria o tempo em que se ouviria dizerem ao opressor de seu país: ‘Pectore si fratris gladium juguloque parentis/ Condere me jubeas gravidaeque in viscera partu/ Conjugis, invita peragam tamen omnia dextra.” (discurso sobre a desigualdade, pensadores Rousseau, página 279, ed. Abril)”.
    Está é uma parte da história, que joga forte contra esse fetiche da farda, que muitos podemos desenvolver.

    Contudo, não podemos ser míopes, devemos entender que muitos camaradas foram militares: Carlos Lamarca, Nelson Wenerck Sodré, Luis Carlos Prestes, só para dizer alguns nomes. Além desses nomes grandes, muitas vezes idealizados, temos que nos ater aos números da repressão durante a ditadura (http://memoriasdaditadura.org.br/militares-que-disseram-nao/index.html). Ou seja, houve uma necessária repressão interna, dentro dos quartéis, para que não só a aparência de unidade fosse mantida, mas para que necessariamente os elementos subversivos não conseguissem mobilizar forças internas no coração da ditadura.

    Então, até agora na minha exposição, temos um sim e um não. Sim, existe uma tendência “prussiana” nas forças repressivas. Não, os militares não são um corpo absolutamente coeso.

    Isto me leva ao seguinte ponto não há possibilidade de aliança, a não ser, que: a) exista uma força interna coesa etc…; b) uma mobilização militar que aponte para a ruptura progressiva contra a militarização da polícia (que no brasil é um avanço e tanto); c) um estado tal de mobilização que as forças da ordem são afetadas pela disputa hegemônica.

    No mais, estaremos dando palanque para os inimigos, o exemplo do oportunismo do psol frente nosso amigo da pátria grande é gritante. Me parece que o fetiche pelas armas causa uma reificação do pensamento, algo como: “se tivermos apoio das forças armadas, teremos mais poder de ação, assim conseguiremos constituir uma força popular”. Quando, para mim, é o contrário, quanto mais as forças progressistas estão difundidas e fortes, mais poder de ação, o que afetará até mesmo o contingente militar. O Dacciolo é teocrata, por que há uma ramificação do misticismo cristão no Brasil, ele é produto desse processo, ou seja, é mais necessário mudar o processo, disputar a hegemonia do que dar palanque, no meu entender.

    abraços.

  11. Para não deixar passar em branco a “questão tática” colocada por Leo Vinícius e aproveitando as ponderações lucidas do Marcelo, enfatizo o seguinte: tentar extrair uma prática política de uma análise simplista e binária como propõe LV, na escolha entre as noções vagas de “trabalhador” e “não-trabalhador” para definir os policiais, é um grande equívoco. Teríamos que mobilizar outras categorias nessa análise, como proletariado sociológico e proletariado empírico, para começar. O caminho sugerido por LV já conhece um resultado: Cabo Dacciolo. O PSOL trilhou esse caminho irresponsável e oportunista, nos deixando uma bela herança política. Mas o que esperar de um partido fundado por alguém que se autodefine como “trotskista cristã”? Portanto, o pessoal do “Policial é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo!”, do “ADO ADO ADO, policial também é explorado!”, já deveria saber aonde acaba sua “tática”…

  12. O debate esquentou por caminhos que talvez não sejam os melhores. A este respeito, trago exemplo semelhante de outra cidade: militantes do PT e do Levante Popular da Juventude que nas manifestações de junho de 2013 fizeram, literalmente, um “cordão de isolamento” para… proteger os policiais dos manifestantes.

    De casuísmo em casuísmo, entretanto, sempre será possível encontrar alguma “razão tática” para apoiar tal ou qual demanda apoiada pelos policiais.

    Me permito, entretanto, chamar a atenção para duas formas sutis pelas quais o debate proposto pelo artigo tem sido desvirtuado.

    Primeira: me parece que o artigo não indaga se reivindicações da classe trabalhadora podem ser, eventualmente, adotadas e defendidas por policiais, como é o caso no exemplo — controverso — da APRASC. O artigo pergunta, muito explicitamente, pelo sentido contrário da relação: “se as reivindicações dos militares de baixa patente podem ou não ser integradas no conjunto das reivindicações da classe trabalhadora”. Se as reivindicações salariais de policiais e das forças armadas, assim como as reivindicações por “melhores condições de trabalho” destes setores são, ou não, reivindicações de trabalhadores. Está entre as reivindicações de trabalhadores o maior investimento em patrulha de fronteiras, em transição para um modelo “tecnocêntrico” de combate (via drones, VANTs etc.), em substituição de equipamentos bélicos obsoletos? Devem os trabalhadores fortalecer as lutas por melhores reivindicações para policiais, por melhores viaturas, por sistemas de inteligência policial mais sofisticados? É esta a questão posta pelo artigo, não o contrário. É este o campo de reivindicações posto pelos militares insurrectos em seus movimentos mais recentes, não a pauta apresentada por Leo Vinicius.

    Segunda: me parece também que o artigo, seguindo a mesma linha, não entra em muitos detalhes sobre a “natureza de classe” dos militares. Só diz que “sob a máscara de um elemento da classe trabalhadora, o que se encontra num militar já é outra coisa”, sem definir claramente o que é esta “outra coisa” mas dando algumas pistas por meio daquilo que fazem os militares. Não é esta, entretanto, a questão, mas sim aquela acerca da adequação entre as reivindicações de militares e aquelas da classe trabalhadora. Tenho para mim que esta é uma definição que dá muito pano para manga por estar num campo bem cinzento, mas acho que este debate é longo e complexo demais para uma simples caixa de comentários. Pede maior detalhe e extensão.

    É preciso ter atenção para que nos desvios e nas tresleituras o debate não perca o foco.

    Veja-se, por exemplo, como Cabeça de Papel traz uma contribuição interessante. De fato, há diferença funcional entre forças armadas nacionais e as forças policiais. Ao menos “conceitualmente”. Na prática, entretanto, e tendo em vista apenas o caso brasileiro, a doutrina, a estratégia e a tática das forças armadas nunca perdeu de vista o “inimigo interno”. Estamos falando, sem muitos detalhes, de forças armadas que serviram para aplastar rebeliões (a “função policial” da repressão ás revoltas do período regencial é mais que explícita), capturar escravos fugidos (não é à-toa que um dos elementos da crise militar dos anos 1870 e 1880 tenha sido a recusa do exército em “agir como capitães-do-mato”), debelar conflitos sociais pela força (Canudos, Contestado, Capim etc.), agir como “última linha de defesa” (GLO, intervenção)… Não faltam exemplos semelhantes também em outros contextos. A diferença funcional entre polícias e forças armadas existe, mas precisa ser compreendida num continuum construído em torno do significado histórico dado a cada prática “desviante”, e ao grau de intensidade da repressão que as classes hegemônicas de momento entendem ser necessário voltar contra ela.

    A contribuição de Cabeça de Papel traz ainda outro aspecto interessante. Não pelo que diz, mas pelo que não diz a respeito da conscrição. Sim, soldados são conscritos para — em termos estritamente militares — defender posições. Mas se analisarmos historicamente os métodos de conscrição, veremos que havia não somente um “jogo” em torno de quem era isento das conscrições, de quem podia fazer-se substituir por outros (e “que outros”, sob que condições etc.) e de quem podia pagar para ver-se livre da conscrição. O serviço militar sob o regime da conscrição foi um dos métodos de disciplinamento de trabalhadores “rebeldes” dos mais eficazes. Mesmo a mudança deste regime para o de sorteio, e depois para as versões modernas do levée en masse, nada disto alterou o caráter disciplinar do serviço militar, no que diz respeito ao disciplinamento de trabalhadores. Se hoje a questão não está apenas em fazer ordem unida (um verdadeiro anacronismo), há toda a vida em caserna a “preparar” jovens trabalhadores para serem pontuais e obedientes, para terem iniciativa dentro de certos limites rigidamente definidos, para serem pragmáticos e não questionarem ordens etc. — em suma, para serem trabalhadores extremamente produtivos. Este é, claro, o sentido geral da disciplina militar na atualidade, o que não quer dizer que funcione com todo mundo. Cabe perguntar, entretanto: é apenas a função, o uso dos militares engajados em combate (“interno” ou “externo”, pouco importa) o mais importante? Ou é importante, talvez ainda mais importante, o que fazem os miitares entre um combate e outro?

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