Por Luis Mattini

em memória de Don Enrique Giesch,
o alemão espartaquista de Zárate

«Luis Mattini é o nome de guerra de Juan Arnol Kremer Balugano (Zárate, 1941), ex-dirigente do ERP, braço armado do Partido Revolucionario de los Trabajadores – a principal expressão das influências guevaristas na Argentina dos anos 60 e 70. Em 1977, após o derradeiro golpe militar de 76, vai ao exílio e retorna ao seu país 10 anos depois, com a abertura democrática já estabilizada. Publicou relatos e memórias de militância, incluindo balanços sobre a estratégia guerrilheira e a política contemporânea. Os dois contos traduzidos que serão publicados aqui são parte de seu primeiro livro de contos, “El asalto al banco y otros cuentos”, publicado pela editora Marat (Buenos Aires, 2017), no qual o antigo militante mistura ficção com episódios biográficos de suas aventuras “setentistas”.» Por Primo Jonas, tradutor dos contos.

Buenos Aires-Rosário, parando em todas as estações. Era um velho trem leiteiro que já não levava os frascos de leite porque as enormes empresas lácteas, La SERENISIMA, SANCOR, SAN IGNACIO, LA MARTONA e outras, enviavam seus caminhões diretamente a buscar o leite na porta das leiteiras. Esse trem, já uma relíquia, constituía uma formação que combinava uma locomotiva a diesel GAIA mais ou menos moderna, fabricada na Argentina por Cometarsa nos anos sessenta, cinco vagões de primeira classe com assentos forrados e os de segunda classe com assentos de madeira, um vagão-restaurante, um vagão de encomendas e correio e, no último, a correspondente sinalização. Tudo do tempo dos ingleses. Tomei o trem em Zárate, ou seja, a um terço do caminho, e logo me instalei no vagão-restaurante onde só serviam café ou água quente para o mate. Mas era muito mais agradável sentar-se numa mesa, matar tempo com esse péssimo café que, servido ali, parecia desfrutável; ler ou inclusive escrever, se fosse o caso, em uma viajem que tardava quase oito horas no total. Claro, estava o Porteño que fazia Buenos Aires-Rosário em quatro horas, mas só era possível embarcar em Retiro ou em Miguelete, a uma hora e meia de Zárate indo no sentido oposto.

Finalmente o trem chegou em Rosário e logo ao levantar-me busquei informações sobre como chegar a Gálvez, cidadezinha pequena perto dali. Encontrei um ônibus que me deixaria mais ou menos lá, mas eram já seis e pouco da tarde e o próximo só saía às oito. Não me parecia prudente chegar para uma visita deste tipo quase de madrugada. Então busquei um alojamento acessível e logo fui jantar como Deus manda, e claro, o que é que Deus manda comer em Rosário? Pois nada menos que um bom peixe de rio na grelha, piapara, surubim e, se possível, dourado. Me haviam advertido sobre a umidade de Rosário, no entanto, não era a primeira vez que eu ia e, por outro lado, eu era de Zárate, lugar que, algumas casas a menos ou a mais, gozava do mesmo clima e sobre tudo do mesmo grande rio.

Na manhã seguinte, às nove em ponto, eu já estava naquele dito ônibus, que me deu enjoo dando voltas e mais voltas pelo interminável subúrbio de Rosário, até sair campo afora e chegar na praça principal de Gálvez, a única que havia. Aproveitei a tagarelice de uma senhora que vinha falando pelos cotovelos com o motorista para perguntar se eu estava realmente bem orientado para o endereço que eu tinha, enquanto tirava do bolso um papelzinho já todo engorovinhado. A senhora se sentiu enormemente agradecida por ganhar a oportunidade de mostrar os seus saberes e me explicou tão bem que cheguei lá direto. Assim foi, e a poucas centenas de metros estava a simpática casinha onde estava recluso Don Enrique, o velho alemão espartaquista que, perseguido depois da derrota da revolução alemã, radicado neste país, tinha trabalhado até aposentar-se na Celulosa Argentina de Zárate como torneiro mecânico e, no entanto, dominava quatro línguas vivas e duas mortas: alemão, francês, castelhano, inglês, latim e grego antigo e além disso era douto em marxismo. O homem me recebeu com uma cortesia formal, mas não podia deixar de expressar certa emoção. Talvez porque eu, a quem ele tinha conhecido quando era apenas um moleque de dezessete anos, tinha atravessado meia província para visitar aquele senhor que hoje passava dos setenta. Sem dúvidas, estaria ao menos intrigado.

– Camarada, você por aqui com semelhante calor. É uma honra e também uma imensa alegria te receber, mas também devo dizer que me deixa alarmado.

– Oh, não se preocupe Don Enrique, não é nenhuma má notícia que me traz aqui, apenas busco conselhos.

– Um pouco longa assa viagem para simples conselhos. Entre, entre, na varanda está mais fresco.

Nos sentamos na varanda de sua casinha. Vi que o teto de chapas de zinco tinha um humilde mas eficaz forro, feito de adobe, verdadeiros adobes tradicionais, que resistiam o calor que as chapas roubavam do sol. Logo Nemesia, uma mestiça que há anos vivia na mesma casa de Don Enrique sem que se saiba se era uma empregada, sua amiga ou sua companheira de vida, se prontificou a preparar um mate em minha honra porque o velho não bebia semelhante coisa, somente diversos tipos de chás. Ao lado havia duas portas de carpintaria antigas que davam caminho ao que, sem dúvida, seriam os quartos, ao fundo uma porta aberta deixava ver claramente a cozinha e à direita toda uma parede de livros em estantes simples mas sólidas e, ao que parece, protegidas de possíveis chuvas, já que a varanda tinha todo um lado aberto. Uma grande poltrona de vime era, sem dúvida, a preferida do dono da casa, ao lado três cadeiras de palha colocadas para as visitas, porque todo o ambiente deixava claro que ali vivia uma pessoa só, isso dito sem ignorar a presença de Nemesia. Já entregues os abraços de amigos e conhecidos em comum e o comentário obrigatório sobre o terrível calor desta província, fui direto ao ponto. Na realidade nunca fui muito diplomático, mesmo com meus modestos oito anos de sindicalismo.

– Estou muito desorientado, Don Enrique, as pessoas toleram mansas este novo golpe de Estado, os civis que, bem ou mal, tinham sido eleitos em eleições regulares, são trocados por militares; ninguém se opõe, não há resistência, a esquerda é um mosaico fragmentado…

Meu anfitrião me escutava em silêncio e com o rosto inerte, como quem está atento tentando entender o que traz ao outro ou aonde vai; eu continuei, cada vez mais inseguro…

– Isso aqui… mas e lá fora? No mundo as coisas não parecem melhores. O Che desapareceu, alguns dizem que foi vítima das purgas em Cuba. Já não sabem o que dizer, mas o fato é que não aparece mais em público…

Don Enrique seguia no seu silêncio perturbador. Nem aprovava nem negava. Então arrisquei minha proposta:

– Enfim, acho que é necessário esperar que os tempos melhorem e que as massas se decidam por sair às ruas. Eu continuo sendo delegado sindical, manterei esta atividade que coloca meus pés na terra, mas queria fazer esta visita porque penso em dedicar-me a estudar o marxismo até que o panorama fique claro, para estar preparado para quando se dê novamente um auge de massas.

O rosto, até agora como eu o havia descrito e inclusive com certo ar de curiosidade do velho, começou a ficar vermelho, pareceu tragar saliva, tragou de fato, e começou a falar com clareza, apesar de seu sotaque teutônico e suas alemanizadas em algumas palavras (como dizer “foidal” em vez de feudal ou “páis” em vez de país), e foi elevando paulatinamente o tom quase sem conter a irritação.

– Não me estranha seu desgosto e até sua confissão, camarada, porque o panorama na superfície não pode ser mais magro, pobre e até sórdido. Os peronistas jogando esconde-esconde e disputando entre eles o apoio do velho caudilho lá em Madrid; os radicais, com sua máscara democrática, mais gagás que nunca, a dita esquerda, que é apenas estridente, o alardeado sistema socialista mundial cada vez mais estalinista, burocrático, conservador, cada vez mais incapaz de romper com o capitalismo…

Era notável como o velho tentava suavizar a dureza do seu sotaque alemão com expressões populares, quando não já com gírias locais. No entanto, eu disse…

– Que panorama, Don Enrique! Não é exatamente otimista.

– Pode ser, eu sou alheio ao otimismo e ao pessimismo. Existe uma expressão muito sábia de Goethe: “Quem, em tempos incertos, sustenta o espírito incerto, contribui para atrasar a saída da incerteza”. Em todo caso, o incerto é o que se vê na superfície.

Ele interrompeu, fitando-me de cabo a rabo. A severidade do seu olhar me desconsertou, pressenti que me faria sentir-me culpado e, de fato, atacou implacável:

– O que é que você pretende, camarada? Submeter-se à espera de que as massas encontrem a saída? Quando elas a encontrarem, e eu te garanto que encontrarão, você correrá ao seu lado com as malas cheias de marxismo gritando para que te esperem?

Poucas vezes um discurso me gerou tanta vergonha. Devo ter ficado vermelho, mas imediatamente o homem, fiel a si mesmo, suavizou o tom e avançou as ideias:

– Não, camarada, é preciso tirar os olhos da superfície, olhar abaixo da linha de flutuação, e tentar ver o mundo submerso.

– Mundo submerso? Você está falando do povo do abismo de “O Tacão de Ferro” de Jack London?

Eu não poderia explicar por que fiz essa pergunta, que mais do que pergunta foi uma demonstração pretensiosa de conhecimento literário. O velho respondeu suavizando ainda mais o discurso.

– Nem parecido, nem a mesma coisa. Diferente de London, que predisse o fascismo trinta anos antes, eu acredito que se avizinha a revolução com o surgimento de um novo sujeito social que está emergindo e que não vem das massas mais empobrecidas nem dos mais miseráveis, mas sim de parte da classe operária mais bem paga e essa parte da pequena burguesia que sofre uma enorme opressão política, cultural e sobretudo espiritual.

– A parte culta desta classe?

– Como você quiser chamar, o que eu digo é que não vem nem dos partidos tradicionais de esquerda ou de direita nem dos sindicatos formais. Vem de uma espécie de nova esquerda em formação de diversas origens, incluindo o peronismo e certo setor cristão. A provável aparição de Guevara a qualquer momento será o sinal mais propício.

– Esse não é o “povo do abismo”, o submerso…

– Submerso eu digo que é o que não aparece nos jornais, nas revistas de moda, no cinema ou na televisão. Por isso o Che desapareceu. De onde? Do primeiro plano. Você verá como ele vai aparecer a qualquer momento, mas em terra firme, não no mundo do espetáculo.

– Mas Don Enrique, o Che é muito questionado pela sua teoria foquista. A esquerda disse que Cuba é a exceção, pior ainda, dizem que foi apenas um peido histórico.

O alemão registrou a expressão grosseira e não pode evitar a careta de censura. Teve que esperar que terminasse de passar um caminhão que nos ensurdecia com o arranque em segunda marcha, aproveitou para tomar um tanto do chá servido por Nemesia, e suas palavras, agora tranquilas, adquiriram o tom de cátedra que lhe saía naturalmente, dizendo que não se podia falar em foquismo, nem de nenhum outro esquema, que o que prevalece no Che, o importante, não é sua proposta tática, que pode mudar de acordo com lugares, tempos e circunstâncias. O valor do Che – me disse – é sua práxis na qual se impõe imanência sobre a transcendência. Porque Guevara é acima de tudo um poeta e um modelo ético. Eu ainda não havia me recuperado da impressão pelo fato do alemão citar Goethe antes que Engels, ao escutar isso sobre Guevara soltei de repente:

– Mas Don Enrique, com poetas e ética não se faz uma revolução…

Frente a minha exclamação vulgar e provocadora, o rosto do velho passou definitivamente a ser vermelho, abandonou toda a calma e respondeu quase inflamado. Via que agora ele realmente se enfurecia.

– Por acaso você acha que os revolucionários foram cientistas de laboratório ou professores vulgares de química que se transformaram em historiadores que buscavam a verdade nos papéis da mesma forma que aprenderam a buscá-la nos laboratórios? Não, camarada, Danton, Robespierre, Castelli, Paine, Rosa Luxemburgo, Trotsky e o próprio Marx foram sobretudo poetas, ainda que não escrevessem versos. Poetas da vida.

– Poetas da vida! Isso sim que é bom, Don Enrique.

– E não se trata de uma expressão de romantismo de cabeleireiro. Temos que reconhecer que quem melhor tratou este tema foi Jean Paul Sartre, que, além disso, se negava como marxista para poder pensar livremente.

– Sartre?

– Sim, Sartre! E também se lembre que por falta de ética se desnaturalizaram todas as revoluções. O antecedente mais visionário e valente desta preocupação foi o de Rosa Luxemburgo, que recomendou aos bolcheviques não transformar a necessidade em virtude.

– Sim, de fato, advertência premonitória.

– Porque essa é uma verdade muito profunda, fazer da necessidade uma virtude pode ser uma necessidade da moral, mas é o começo da negação da ética.

Don Enrique foi quem melhor conseguiu estabelecer a distinção entre moral e ética. Esta metáfora me pareceu muito indicada. Logo ele retomou a calma. Pareceu refletir, bebeu um pouco de chá, me espetou com seu olhar azul e me disse com uma voz suave, um pouco grave e com ar conspirativo.

– Escute, camarada. Eu vou te confiar algo que é muito reservado e estou dando por certa tua discrição. É um segredo que desejo compartilhar e decidir com você, já que é impossível determinar que energia cósmica te trouxe aqui diante de mim, neste fim de mundo em plena pampa gringa.

Fiquei sem reação por um instante.

– Pode confiar em mim, posso ser uma tumba.

– Sei que posso confiar. A questão é que eu tive uma conversa recente com Guevara.

A frase me impactou. Em vez de apenas não reagir, fiquei mudo, sua expressão conspirativa pareceu agora dominar a tensão do ambiente, cheguei só a dizer:

– Com o Che? Não acredito!

– Sim, camarada. Digamos que o encontrei em algum lugar da América que não posso mencionar porque a CIA costuma ter ouvidos nas paredes. O Che está formando uma espécie de Estado Maior da revolução americana.

– Com Cuba na direção?

Pergunta inoportuna, para não dizer idiota. O ambiente sob o ar fresco do teto forrado de tijolos se encheu totalmente de sensação conspirativa, meu anfitrião não olhava para os lados, nem para trás, mas o tom cada vez mais baixo de sua voz, os gestos suaves de suas mãos acompanhando as palavras e a proximidade de seu corpo atuaram a favor de uma estranha representação. Logo vi com clareza que a ênfase que Don Enrique colocava era na solenidade. Era para que se tomasse as coisas em toda sua importância. Respondeu minha pergunta de forma consequente.

– Não, claro que não, precisamente disso queria falar-lhe. O Che renunciou ao poder em Cuba. Por isso ele é tremendo, porque renunciou ao poder ao constatar que o poder se transforma inevitavelmente em um fim em si mesmo, contrário a tudo o que signifique expandir a revolução.

Don Enrique sempre se referia ao Che como Che ou Guevara, jamais dizia “o comandante Guevara”. E isso não era casual, já que certa vez escutei dele que isso de manter título militar fora do exército era uma das reminiscências monárquicas dos povos latinos. Comandante Fidel, General Bolívar, General Belgrano, General Perón, General De Gaulle, Generalíssimo Franco, e assim por diante. Por que não dizíamos Marechal Trotsky, fundador de nada menos do que do Exército Vermelho, que derrotou não apenas os brancos mas também as potências capitalistas? As vezes ele nos provocava.

– Veja, camarada, que Guevara faz isso agora, depois de seu discurso na Argélia, quando denunciou a cumplicidade do chamado campo socialista com o imperialismo no crime do Vietnã.

Crime do Vietnã! Toda uma definição que excedia a responsabilidade dos yankis! Russos e chineses eram cúmplices! Logo, com certo entusiasmo na voz, o alemão continuou explicando que o Che tinha decidido estabelecer uma espécie de Estado Maior em algum lugar da América, a partir de onde impulsionaria diversas iniciativas revolucionárias em todo o continente, como uma espécie de prolongação do Vietnã que obrigaria os EUA a gastar forças em outros continentes. Mas sobretudo como um âmbito para uma nova práxis revolucionária, que trate a fundo aquela discussão sobre o poder, que ficou interrompida entre os primeiros marxistas e os anarquistas. Não pude mais do que perguntar afirmando…

– A ditadura do proletariado?

– Essa mesma. O Che parece ter na mochila algum texto do Trotsky, porque diz que a ditadura do proletariado passou a ser a ditadura do Partido e daí a ditadura do secretário-geral, inclusive em Cuba.

Apesar do calor eu não pude evitar os calafrios. Eu tinha vindo para pedir ajuda para fazer um programinha de estudos durante uma espera e este espartaquista, digno discípulo de Rosa Luxemburgo, já estava traçando linhas de ação. Os motivos da minha viagem trabalhosa se tornaram miseráveis frente à perspectiva que ele estava me apresentando. Devolvi o mate para Nemesia, que continuava servindo incansável e atenta à menor indicação do homem da casa, atitude que me intrigou ainda mais sobre a relação entre ambos, e fiz uma pergunta que tirei da manga para ganhar tempo e reacomodar minhas sensações.

– Ele critica o Fidel?

– Bem, isso não, ele tem um enorme respeito e grande carinho pelo Fidel, mas não podemos esquecer que o Che pode ser muito racionalista e dizer que o Fidel ficou preso pelo dever, já que ninguém pode evitar a armadilha do Estado, apenas renunciando ao poder.

– Racionalista, sim, de fato esse é o grande paradoxo do Che…

– Mas Fidel, diferente do Che, tem uma formação filosófica muito mais próxima de São Tomás de Aquino e Kant, que de Espinosa, Nietzsche ou Hegel, e é filho do dever ser. Além do quê, não há dúvidas de que sua missão atual é governar Cuba, e se concordamos que Estado e Revolução passaram a ser antônimos…

– Mas então o que é que o Che propõe?

– Conversamos toda uma noite em seu acampamento em plena selva, para dar esse nome nobre a um matagal hostil. O Che é um homem muito prevenido contra o estalinismo apesar de seus antecedentes de família simpatizantes dos soviéticos, porque ele pôde comprovar ao vivo o estalinismo na URSS, na China, nos países da Europa do Leste e sua crescente influência em Cuba.

– Claro, menos o trotskismo.

– E os espartaquistas, camarada. Precisamente por isso ele me chamou, por ser um deles; parece que uma mulher argentina-alemã, fiel colaboradora sua, lhe falou com entusiasmo da Rosa e dos espartaquistas alemães. Não fazer da necessidade uma virtude é muito mais do que uma frase bem bolada, na boca de Rosa, tem uma profundidade de alto conteúdo filosófico.

Eu escutava fascinado. O velho entregou a taça de chá vazia para Nemesia e continuou.

– Já lhe disse, camarada. Eu aproveitei e falei de como os espartaquistas tínhamos conseguido ser nem estalinistas nem trotskistas, depois falei da ética de Marx, de sua afirmação de que não se pode atingir fins justos com meios injustos e contei de quando as tropas mais atrasadas do Exército Vermelho, trazidas com toda intenção da bárbara Sibéria, fizeram muito mais do que liberar Berlim, estupraram centenas de mulheres alemãs com o consentimento do mando soviético, que considerou que era uma compensação pelos sofrimentos que os nazistas haviam provocado na terra russa.

– Sim, me lembro, horrível, parte da história negra do exército vermelho…

– Falamos muito da evolução da proposta marxista, partindo do projeto original com base na comuna e como Lênin impôs o famoso período de transição que se chamou ditadura do proletariado e que nas mãos de Stálin se transformou em sua tirania pessoal.

– E o Che enxergava isso com a mesma gravidade?

– Não saberia lhe dizer, em todo caso eu o lembrei, digamos, porque não sei se em realidade o informei, da brutal repressão aos anarquistas por mãos de Trotsky com Lênin ainda vivo; e, como ironia da história, a mesma repressão muito mais brutal, de Stálin contra os trotskistas depois da morte de Lênin.

– É isso de que a Revolução come os próprios filhos, Don Enrique?

Mal terminei de fechar a boca quando já me arrependi de dizer semelhante lugar-comum, no entanto o alemão aceitou.

– Isso mesmo. O Che sabia disso em termos formais, teóricos digamos, por ter estudado a revolução francesa, mas parecia agora muito amargurado por comprovar o destino quase inescapável de todas as revoluções socialistas e seu temor de que Cuba não pudesse evitá-lo.

– Amargurado?

– Sim, essa é a palavra, por isso me disse que esse Estado Maior que ele estava formando na selva não era apenas, nem principalmente, um organismo de condução militar, senão uma espécie de núcleo para impulsionar as revoluções buscando desviá-las das armadilhas do poder, porque o poder é precisamente um ente implícito de opressão, ao qual pretender libertá-lo é uma contradição.

– Contradição?

– Sim, como pretender fazer uma prisão livre. Com isso ele estava dando razão aos anarquistas; não é possível o poder libertário. O poder é em si mesmo uma ditadura. Então, como chegou a esta conclusão, agora está vendo de experimentar a possibilidade de fazer uma revolução sem tomar o poder.

– Mas Don Enrique, desculpa, mas o senhor sabe que isso era elemental já para Lênin, por isso ele chamou de ditadura do proletariado. Só que ele e os marxistas de seu tempo afirmavam que era uma ditadura de curta duração necessária para terminar com a ditadura da burguesia.

– Isso mesmo, porque o marxismo clássico foi também filho da transcendência; mas o Che está pensando como seria possível esquivar desta suposta necessidade imposta pela transcendência e é aí onde reside sua potência imanente; porque essa necessidade da ditadura do proletariado é a consequência de uma visão transcendente da história, é como se disséssemos que existem determinações dadas por sabe-se lá que estranho poder, estranho ao ser.

– Estranho ao ser?

– Sim, alheio à vontade dos protagonistas. Este estranho pode ser Deus ou uma suposta Lei transcendente da natureza. Ao contrário, a proposta do Che dá potência à imanência e assim como ontem ele o chamou foco, hoje propõe ensaiar diversas formas libertárias, como a rotação de dirigentes ou, mais concretamente, a negação dos dirigentes.

– Negação dos dirigentes? Anda bem anarco esse Che!

– Mais ainda, conceber os chamados dirigentes como simples coordenadores ou administradores, mas sobretudo eliminar pela raiz a divisão do trabalho entre dirigente e dirigido, incompatibilidade para os que tiveram que tomar em armas para exercer administrações civis, recriar os conselhos de anciãos… enfim, ver a forma de eliminar todos os mecanismos nefastos que compõe o poder, sem o prejuízo da necessidade de administrar.

– O sonho de Lênin em seu texto célebre: “O Estado e a Revolução”, substituir os economistas pretensiosos por humildes leitores. Mas Don Enrique, o Che não lhe falou da adequação de tática para tomar o poder? Então segue vigente o foquismo?

– Não, nada disso. Disse que não se pode falar de uma tática, que tudo depende dos tempos e lugares e que esse não é o problema porque isso é o primeiro que se encontra, porque a criatividade vem da vontade de fazer.

– Isso não é chamado de voluntarismo? Subjetivismo? Forçar as leis objetivas?

– Não, camarada, o Che é um criador por estar alheio a preconceitos teóricos. Sua inquietude atual se dirige a que nos perguntemos do quê faremos a respeito da sociedade que queremos, já que a vida demonstrou definitivamente que o caminho da tomada do poder é equivocado. Os comunistas no poder estão traindo o Vietnã!

– Equivocado? Sua posição é tão radical?

Respirou, e então me lembrou que isto ocorria depois do discurso do Che na Argélia e que em algum momento chegou a afirmar que o estalinismo é pior que o nazismo, não apenas porque Stálin matou mais comunistas que Hitler, senão porque a derrota militar do nazismo foi seu final, já que o nazismo foi a loucura desesperada de Hitler; mas o estalinismo excede a loucura de Stálin, é um modo de ver a vida e as relações sociais e se reproduz por todas partes e em todas as formas de organização social quando tendem ao autoritarismo. Dito de outra forma, volta e meia aparece um pequeno Stálin e é um potencial anticomunista. Um pouco sobressaltado por semelhante comparação nestas afirmações do Che, perguntei:

– É verdade, Don Enrique, que Stálin matou mais comunistas que Hitler?

Minhas perguntas contínuas pareceram devolver a Don Enrique seu acostumado papel de professor, ele reacomodou seu corpo na poltrona, me olhou como dizendo “você vai acreditar em mim?”. Então recorreu às estantes com os olhos como quem busca a resposta, ou melhor, considera a pergunta tão trivial que nos manda à biblioteca. De todo modo, ele respondeu com extrema amabilidade.

– Claro que é verdade. Isso será comprovado definitivamente quando os arquivos soviéticos forem abertos. Eu provavelmente não chegarei a ver isso, mas você tem chance, camarada, a União Soviética não pode seguir assim eternamente, em algum momento ela se abrirá ou explodirá por dentro.

Essa afirmação me fez passar do sobressalto à perturbação, eu seguia acreditando na necessidade de uma revolução interna na URSS, que democratizaria as relações socialistas. Mas o espartaquista pensava que na realidade isso não era socialismo. Tentei perguntar justamente sobre isso, mas bem neste momento outro caminhão em segunda ensurdeceu a varanda. Entendi que do outro lado da casa a rua começava uma subida. Como ele não me escutou, uma vez que se recobrou o silêncio, prosseguiu com a comparação entre nazismo e estalinismo, dizendo que existe uma explicação mais simples. Hitler não enganava ninguém – me explicou – era um nazista legítimo, racista e antissemita confesso, não prometia nem liberdade nem democracia porque essas eram coisas de afeminados, não de povos fortes; e tinha inimigos mais variados: liberais, socialistas, comunistas, judeus, cristãos, enfim, meia humanidade. Ao contrário – seguiu Don Enrique – o falso comunista Stálin prometia comunismo e criava cada vez mais capitalismo, portanto só poderiam vencê-lo os legítimos comunistas. Por isso é que Stálin temia mais que nada os comunistas.

– Stálin temia mais os comunistas do que outros? Não é um pouco exagerado?

– Eu remito às provas, camarada. Não se esqueça que além de fuzilar ou mandar ao exílio todo o histórico Comité Central bolchevique e milhões de chamados opositores, despachou sem vacilar todo o Comitê Central do Partido Comunista Polaco junto com toda a oficialidade e os comissários políticos da Polônia quando assinou o pacto de não agressão com Hitler, dividindo a Polônia.

Não era fácil rebater Don Enrique, que jamais falava sem fundamento. Era muito contundente.

– Por isso o que eu conversava com o Che é que o nazismo já virou história, acabou com Hitler; foi necessário um formidável e custoso esforço militar. Mas o estalinismo se reproduz por todas partes e a derrota definitiva só pode ser política.

– Ehhh Don Enrique, você está sendo muito duro!

– Tranquilo, camarada, você viverá para ver como a história me dará razão. O estalinismo é contagioso, por isso o Che se meteu na selva; não apenas para escolher o terreno de luta contra o imperialismo e dirigir todas as frentes possíveis, mas também para escapar à influência e, sobretudo, o contágio estalinista que se encontra no sistema socialista mundial atual.

O sol se fortalecia fora do nosso refúgio fresco, as cigarras vibravam em frenesi e Nemesia atarefada preparava um almoço, donde saíam aromas ostensíveis que eu interpretei como um convite tácito. A verdade é que agora eu realmente tinha fome, enquanto ele continuava.

– Sua mensagem tática, criar um, dois, três, muitos Vietnã, se dirige contra o imperialismo ianque, mas também para colocar em evidência a hipocrisia da URSS e o grandiloquente chamado sistema socialista mundial.

– Mas então, Don Enrique?

– Então, camarada, se trata de um ato de decisão em adotar uma postura imanente, abandonando toda transcendência. Isto é, justamente, o que está passando debaixo da superfície.

Alguns meses depois, o Che apareceria publicamente na Bolívia e nós já estávamos formando as primeiras guerrilhas urbanas.

Luis Mattini

2 COMENTÁRIOS

  1. O que determina a relação entre imanência e transcendência? Ou dito doutra forma, como reconduzir a transcendência a imanência?Retornamos a ontologia e a questão do Ser?

  2. Belo texto e tradução pertinente, pelos quais agradeço.
    REVOLIÇÃO:
    A relação entre imanência e transcendência não é ontológica, mas existencial. Sobretudo, se a expressarmos nos seus devidos termos: relação entre concreto e abstrato, na práxis. A questão do ser é -por assim dizer- uma abstração ruim, uma fantasmagoria ou transcendência. A questão imanente, em sua concretude, é a do devir, do acontecer: a questão da práxis. A dialética do concreto nos remete, entre outras (re)leituras, às Teses sobre Feuerbach.

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