Por Kuarup

Para todos os lados que você olhar, ou apontar os seus dispositivos, lá estará A Crise, essa substância conformadora que sintetiza a vida do país. A própria psique nacional parece só existir nas determinações e coordenadas em que opera Isto, A Crise.

A Crise é mais que uma condição, é o evento verdade de cada brasileiro, o seu ser próprio. É a instância do que restou de comum nessa nodosa substância a que chamamos, por ausência de outro nome, de sociedade brasileira.

Ela está nas conversas de boteco, povoa a mesa na hora do almoço, é pretexto para conversas no busão, e, também motivo de “debates” nucleares entre os moradores deste vasto território. Ninguém escapa, é uma tatuagem da subjetividade brasileira, mais até que o imaginário do futebol.

São nessas linhas de força que os fenômenos que dão materialidade a crise se movem, serpenteiam, adentrando cada cômodo do “ser nacional”, e é a isso que o gelatinoso espectro político do Brasil chama pelo nome de “conjuntura nacional”.

Eles querem nossa atenção para a “conjuntura nacional”, não nos querem mirando outras coisas que não a “conjuntura”. A procissão de temas, as “problemáticas”, o viscoso noticiário da noite fechando o dia para que precários e a classe dominante finalmente possam dormir em paz.

Por outro lado, é no WhatsApp, esse “sheet tube” genuinamente brasileiro, o coração trevoso das narrativas que efetivamente configuram a cotidianidade nossa. É por aqui que as Fakes Farms verdadeiramente povoam e administram o sujeito brasileiro, esse walking dead tropicalizado.

Numa vida de feeds e stories, o país vive o ritmo da exploração movida a fibra ótica, sob a condição predominante imposta pela casa grande e os feitores do canavial.

O cotidiano é um hackeamento diário, estão todos os sujeitos em cena. Da extrema esquerda aos partidários fascistas da limpeza social, ninguém se ausenta a esse banquete diário. Todos vão a essa praça central onde humanos e bots circulam avidamente em busca da última versão da existência. Também passam aí os aplicativos, as ferramentas que configuram as disputas das “narrativas”.

Nessas praias ensolaradas pelos algoritmos, é indistinguível a gritaria do anarquista identitário do bolsomito que clama por sangue, visto que o multiverso digital está projetado justamente para distrair a todos daquilo que poderia ainda importar.

Até mesmo àqueles que labutam pela insurreição e defendem com paixão um mundo emancipado da exploração, vivem suas próprias versões, sempre com upgrades, daquilo que podemos chamar pelo nome de Procrastinação Revolucionária. Também nós formamos nosso próprio “eu meme”.

Se a vida, com sua pouca couraça de realidade já parecia opaca, agora tudo flui para o grande oceano de Metadados, um mar de sujeitos esquálidos, vampirizados por incontáveis exércitos de bots.

O mundo é esse biopoder de algoritmos rasgando a crosta da existência humana. A tudo isso temos o privilégio de ser o primeiro país onde a política apaga sua fraca luz e cede lugar aos perfis, mensagens, likes e TTs. Ainda seremos estudados!

Não é que só exista o virtual, a rede, não é que a rua, lugar por excelência de contrapoder, não mais exista, é pela simples falta de ocupantes que ela está vazia de incêndios, permanecendo por ora uma hipótese em aberto.

O grosso da “militância de esquerda” segue tomando Red Bull diante das telinhas, teclando em seus perfis, pedindo fast food em “intenso ativismo digital”. A Esquerda no Brasil é analista e analisando de seus próprios bullyings diários, micro maldades semanais entre indivíduos e coletivos de variados contornos.

Agora, com a esfera pública entregue à decapitação, os terrenos baldios não param de crescer. Em escala nacional a vibe dominante é o exclusivo gozo narcísico, alcança todas a matizes ideológicas.

A chamada institucionalidade, outrora portadora do “estado de direito democrático” que adveio da constituinte de 88, é agora um lugar de pura jagunçagem política, sem regras, o aparato jurídico é um exemplo de gangsterismo elevado ao extremo com requinte e arte. Nada difere seus membros e operadores de assassinos de aluguel: Juízes e ministros do supremo, promotores, bancas de advogados, todos estão atarefados em seus crimes e impunidades diárias. Isto para o deleite dos milhões de espectadores desse reality show de alta voltagem.

Os escombros desse país aí já estavam, cada centímetro de demolição, cada pedaço de chão manchado por sangue e exploração selvagem. As escaramuças das sociabilidades tóxicas diárias, a subida do BOPE no morro, a bala perdida, o dinheiro na cueca, a cocaína no helicóptero, a novela das oito, a “pacificação” levada a cabo pela PM, o bullying convertido em vibrador universal de cada brasileiro. O que falta acrescentar? Indígenas e quilombolas acossados pela pistolagem, agora um delivery, as áreas naturais sob rapinagem imobiliária, o fim do serviço público, a privatização do SUS. Vamos parar por aqui que a tinta é pouca!

Não faltam receitas para sairmos do beco sem saída. No terreno anarquista-libertário sobram argumentos sobre “unidade nas lutas”, vagas promessas, etc. As vontades são esquálidas, as disposições para o comum beiram a inanição, tal sua palidez. A Procrastinação Revolucionária é um osso duro de roer, impede não apenas encontros e cumplicidades, como alimenta rancores e asperezas.

Dizem por aí, ouvi falar, que nada nasce sem que o reino da necessidade entre em cena. Receio termos faltado a alguns encontros.

Estamos condenados às bolhas, a não mais nos encontrarmos, a nada tramarmos, viveremos em loop infinito consumindo o pão diário que o Google, Facebook e Instagram nos oferece?

Teremos nós, no coração de nossa matéria, alguma substância que nos permita construir caminhos da revolta?

Ainda temos capacidade de aprendizagem, de mirar as lutas de tantas povos e camaradas em tantos lugares deste planeta, suas táticas e organizações, suas muitas formas e relevos?

Nós, anticapitalistas, ainda temos um futuro, algo a dizer ou a instituir?

Publicado originalmente na ANA – Agência de Notícias Anarquistas.

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