Por Anônimo

Antes do texto propriamente dito, convém explicar porque abomino o uso da palavra “esquerda” e assinalo como erro (sic). Não existe “esquerda” e “direita”, existem posições políticas, ideológicas e teóricas a favor da manutenção da ordem social existente (capitalismo) e a favor da sua superação (socialismo/comunismo). Falar em “esquerda” e “direita” faz com que desapareça a discussão do modo de produção e suas categorias fundamentais, o capital, o Estado, o trabalho alienado, a forma mercadoria, o valor, a propriedade privada, a exploração e a mais-valia. Sem falar abertamente e de forma concreta em modo de produção, a discussão fica no reino das abstrações e paliativos da própria gestão do sistema do capital. “Esquerda” e “direita” viram termos relativos, geométricos, sem conteúdo. Fulano está à esquerda ou à direita de sicrano, o que não quer dizer nada. FHC está à esquerda de Bolsonaro, enquanto talvez Átila, o huno, esteja à direita. O PT é de esquerda? O nazismo é de esquerda? Depende do gosto do freguês! Esquerda e direita são indicadores genéricos que cada um distorce conforme a sua preferência, e que tiram o foco da discussão do modo de produção e da luta pela superação do capital. Feito esse desabafo, esclareço então que estou usando esquerda (sic) nesse texto como sinônimo de conjunto das correntes de pensamento, organizações políticas e indivíduos que se colocam contra o capital e de alguma forma em luta pelo (ou como simpatizantes do) socialismo/comunismo. Esse conjunto exclui o PT, que é instrumento de gestão do capital, embora praticamente toda a esquerda (sic) revolucionária e anticapitalista, praticamente sem exceção, tenha se engajado na campanha do partido.


Definido então o espectro do campo a que me refiro quando falo de esquerda (sic), passamos a discutir o tema do texto propriamente dito, o escândalo do zap e as reações desse campo político. Na semana passada uma reportagem da Falha de Sao Paulo (sic) expôs o esquema em que empresários apoiadores da campanha de Jair Bolsonaro (PSL) à presidência pagaram a agências especializadas para disparar pacotes de mensagens para milhares de contas do Whatsapp (o popular zap) com conteúdo falso e difamatório contra a chapa concorrente de Fernando Haddad (PT) e Manuela D’Ávila (PCdoB). Imediatamente essas mensagens foram replicadas e difundidas em outros milhares de grupos e redes de contatos, atingindo assim milhões de usuários do zap. Essa prática constitui crime eleitoral, já que se trata de uma doação para campanha eleitoral não declarada à justiça, conforme exige a lei. O PT prontamente pediu a impugnação da candidatura de Bolsonaro, e o PDT de Ciro Gomes, terceiro colocado no primeiro turno, pediu a anulação do pleito. Em meio à polêmica, a presidente do TSE e ministra do STF Rosa Weber concedeu entrevista dizendo que está tudo normal, não há o que se fazer contra a circulação industrial de mentiras e o segundo turno vai acontecer como planejado. O julgamento das ações contra o candidato do PSL deve ficar para o ano que vem ou depois, com o futuro presidente já empossado. Basta lembrar que o julgamento das contas da chapa Dilma-Temer de 2014 só aconteceu em 2017 (Para entender os próximos passos desse jogo jurídico, ver aqui).

Desde a publicação da reportagem um debate se acendeu no espectro da esquerda (sic) sobre as possibilidades da impugnação, sobre um sonhado segundo turno sem Bolsonaro, e sobre o fenômeno mais geral da disseminação de notícias falsas via zap. Afinal, para além do crime eleitoral de caixa 2 (doação não declarada), o próprio conteúdo veiculado é acintosamente mentiroso, difamatório, vil, repugnante. Alguém deveria fazer alguma coisa a respeito!, esbraveja a esquerda (sic). As reações trazem à tona um certo desespero, medo e impotência diante do que vai ser o governo Bolsonaro. Essas reações servem para traçar um retrato interessante do que tem sido o universo mental da esquerda (sic) brasileira. Um retrato tristemente trágico, composto de variadas acomodações, capitulações, condescendência, auto-engano e arrogância. Acompanhando o debate em torno do escândalo do zap e da reta final da campanha eleitoral, mapeamos pois várias espécies de cretinismo, que são imputáveis em doses variáveis aos diversos segmentos particulares do campo anticapitalista. Passemos então a uma análise desses cretinismos em suas formas mais acabadas e caricaturais, para termos uma noção dos desafios internos que a esquerda (sic) terá de superar para desenvolver alguma resistência ao governo Bolsonaro.

Cretinismo jurídico – acreditar que o judiciário poderia impugnar Bolsonaro.

Essa crença revela uma confiança ingênua nas instituições do Estado burguês, na separação dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), na sua autonomia e na efetividade da Justiça como protetora da lei e do direito. Acreditar nisso significa desconhecer o mínimo sobre como funciona o Estado (comitê gestor dos negócios comuns da classe burguesa, já diziam Marx e Engels há mais de um século). Uma temporada qualquer do seriado House of Cards deveria bastar como introdução didática e vacina contra essas crenças ingênuas. O Judiciário é parte integrante do Estado burguês, é um órgão de dominação de classe igual aos demais. Não é um guardião neutro da lei, que emite decisões imparciais a partir de interpretações técnicas. O que os juízes escrevem nas suas decisões, especialmente nas cortes superiores (como a que vai julgar as ações contra Bolsonaro), não é decidido por eles apenas. Os juízes (nesse caso chamados pomposamente de ministros) conversam com outros segmentos do Estado, com o governo moribundo de Temer, com lideranças do legislativo, com as Forças Armadas, com a mídia, com o empresariado. É assim que as decisões são tomadas. Em se tratando de impugnação, não estamos falando de uma chapa de Centro Acadêmico, mas de uma candidatura que teve 49 milhões de votos no primeiro turno, de um partido que elegeu mais de 50 deputados, de um movimento ascendente, bem financiado, organizado, agressivo, que está nas ruas matando e agredindo opositores, que conta com o apoio mais ou menos explícito de militares, policiais, igrejas, segmentos da mídia, etc. O Judiciário não tem força contra esse tsunami reacionário. Para não passar a vergonha de serem derrubados (como já ameaçou abertamente e impunemente o filho de Bolsonaro), vão absolver a campanha mentirosa e fraudada, com uma bela sentença (acórdão, como eles dizem) lavrada em juridiquês castiço. Não há que se esperar outra coisa do Judiciário. O escândalo do zap só será desarquivado caso o governo Bolsonaro fracasse miseravelmente naquilo que a burguesia espera dele (hipótese aliás bastante provável), servindo talvez de pretexto para que seja removido, como foram Collor ou Dilma. Mas dado o caráter do que será esse governo, é muito provável que haja pretextos abundantes e muito mais escandalosos para o seu descarte quando chegar o momento (para colocar sabe-se lá o quê no lugar). O que é certo é que a esquerda (sic) não pode contar com nenhuma proteção do Judiciário e demais segmentos do Estado burguês contra a vingança raivosa que será desencadeada sobre ela a partir do dia 28/10.

Cretinismo liberal – acreditar que uma empresa privada como o Whatsapp poderia tomar medidas efetivas contra a disseminação de notícias falsas, como se pudesse ser guardiã desinteressada da verdade.

Depois que a porta foi arrombada e a casa assaltada, o Whatsapp bloqueou 100 mil contas do seu aplicativo por terem sido usadas para disseminar as notícias falsas. Poucos meses atrás, antes ainda da campanha eleitoral começar oficialmente, o Facebook (empresa proprietária do Whatsapp) já tinha derrubado dezenas de páginas e perfis, ligadas ao MBL, pela disseminação sistemática de mentiras escabrosas. Tudo inútil, porque o estrago já estava feito. A ação tardia das empresas responsáveis por essas redes sociais ao bloquear alguns usuários maliciosos serve apenas para passar a imagem de que não são omissas e estão fazendo alguma coisa a respeito.

Mark Zuckerberg, dono do Facebook, já teve que prestar esclarecimentos perante o Congresso estadunidense por conta do uso dessas mesmas ferramentas para disseminar notícias falsas durante a campanha eleitoral vencida por Trump em 2016. Depois dessa sabatina, a eleição brasileira é a principal campanha de grande porte na qual a confiabilidade das redes sociais é testada e novamente fracassa terrivelmente. Nem o Facebook nem o Whatsapp têm condições de fiscalizar o conteúdo que circula nas suas redes. Legalmente, nem sequer poderiam fazer isso, já que significaria uma atividade editorial, que mudaria a classificação dessas plataformas, de modo que passariam a ser tratadas como emissores de conteúdo (como se fossem uma emissora de TV ou jornal), com implicações regulatórias, fiscais, etc. Para não serem enquadrados, o face e o zap têm que permanecer neutros, mas isso ao mesmo tempo abre a brecha para que a rede seja explorada maliciosamente por disseminadores de notícias falsas.

Uma empresa capitalista se preocupa com o lucro apenas, não importa quais as consequências. Quando os estragos são muito grandes e podem afetar sua imagem, as empresas tomam somente medidas formais e tardias, mas nada que tenha efeitos materiais e concretos para sanar os danos das suas ações e omissões. As empresas capitalistas vendem desde armas nucleares a agrotóxicos, produzem poluentes de todos os tipos, destroem o meio ambiente e envenenam as pessoas, já há séculos. Não há porque acreditar que deixariam também de envenenar a mente das pessoas.

Mas pior do que acreditar que as empresas proprietárias das redes sociais poderiam impedir a disseminação de notícias falsas é achar que elas deveriam fazer isso. Colocar o Facebook como árbitro supremo acima das posições políticas e ideológicas para decidir o que é verdade e o que é falsidade e assim autorizar a sua circulação nas redes seria criar uma distopia perfeita. Entregar a uma megacorporação capitalista o poder de decidir o que cada um vai receber no seu celular, tendo ainda por cima lhe conferido a condição superior e o status de guardião inquestionável e certificado da verdade, significaria abrir mão definitivamente de qualquer possibilidade de dissidência. O sistema teria o guardião perfeito incontestável da versão que lhe interessa da realidade, amado e acreditado por todos. Na verdade, isso já está em partes acontecendo. A maioria dos usuários não tem noção de que existe um algoritmo matemático selecionando aquilo que recebem no celular, e vai se isolando nas suas bolhas e filtros, enxergando a realidade como desejam que ela seja, não como ela é em sua inesgotável complexidade e contraditoriedade, sem desconfiar que o Facebook, como toda empresa capitalista, possui interesses de classe e funciona como ferramenta ideológica de perpetuação e administração do sistema.

Cretinismo comunicacional – acreditar que a chamada “web 2.0” e as redes sociais seriam uma via de mão dupla.

Essa modalidade de cretinismo não está muito na moda ultimamente, pois já submergiu no debate. Trazemos de volta essa crença porque ela está um pouco na base da anterior, de certa forma, e ainda atua como obstáculo para entender o real caráter das redes sociais. Quando a internet estava começando a adquirir a sua configuração atual, com uma multiplicidade de plataformas abertas em que os usuários também têm a possibilidade de publicar conteúdos (YouTube, Orkut, Myspace, Facebook, Instagram, Snapchat, etc), muitos teóricos da comunicação vieram com a teoria de que isso significava uma ruptura com o formato tradicional dos meios de comunicação de massas. Desde a imprensa escrita até os meios que se popularizaram no século XX, como rádio, disco, cinema, TV, etc., todos se caracterizavam por uma estrutura piramidal em que um único emissor ativo elabora e distribui verticalmente o conteúdo de cima para baixo para milhões de receptores passivos. A Internet, com seus blogs, primeiramente, depois com as plataformas citadas acima, que compuseram a chamada web 2.0, supostamente romperia com essa estrutura piramidal de disseminação vertical de informação, já que permitiria ao usuário final sair da condição secular de receptor passivo e também passar a ser ativo, produzindo conteúdos próprios. Não teríamos apenas uma via de mão única, de cima para baixo, com um único emissor e milhões de receptores, mas ao contrário, uma rede horizontal, com milhões de nós autônomos, atuando simultaneamente como receptores e produtores de conteúdo.

Essa utopia comunicacional desmoronou em poucos anos conforme se tornou patente que as mesmas corporações que controlavam a produção de conteúdo para os antigos meios de comunicação passaram a atuar também na web 2.0. Os conteúdos que circulam nessa rede que supostamente deveria ser horizontal são os mesmos da velha comunicação de massas piramidal. Os usuários têm a possibilidade de gerar conteúdos próprios, mas ao invés disso, debatem sobre as fofocas das celebridades das novelas, como faziam antes. O caráter aberto e de suposta via de mão dupla da internet não serviu para empoderar o usuário final com a escolha e elaboração de conteúdo, mas ao contrário, o tornou ainda mais prisioneiro de uma estrutura de geração de conteúdo altamente especializada, segmentada e direcionada para se adaptar às suas preferências pessoais (com a eficácia implacável dos algoritmos matemáticos).

A utopia comunicacional se converteu na distopia de uma avalanche de notícias falsas envenenando e esterilizando quaisquer possibilidades de um debate político sério. As eleições brasileiras são somente o capítulo mais recente dessa história. O que ninguém quer debater e que constitui a verdade cruel sobre essa questão é que o usuário final da comunicação de massa, aquele que está na base da pirâmide da recepção, não tem condições de gerar autonomamente um conteúdo próprio e nem sequer de discernir as qualidades elementares do conteúdo que recebe, desde o seu valor de verdade objetiva até o estético. O empoderamento do usuário não é apenas uma questão técnica de plataformas de circulação, que podem ser fechadas ou abertas (afinal a web 2.0 já supriu esse recurso), nem apenas de “nível cultural”, que poderia também ser elevado via ações educacionais formais (essa crença constitui uma outra modalidade de cretinismo, discutida mais adiante), mas política, de organização para ação coletiva. Estando ausente isso, tudo o mais são vãs esperanças e energias desperdiçadas.

A condição do usuário das comunicações de intervir ativamente no processo como sujeito autônomo depende da existência de espaços de organização e ação coletivos, em que ele seja sujeito de transformações materiais. Nesse caso a recepção dos conteúdos comunicacionais estaria mediada por uma esfera coletiva de articulação para a luta, voltada para interesses materiais. Sem essa mediação, sem os instrumentos de ação coletiva para se colocar em ação na realidade material, o usuário final seguirá sendo receptor passivo de conteúdos gerados por outrem e que correspondem a outros interesses de classe.

Cretinismo vanguardístico/epistemológico – tratar como um problema cognitivo o fato dos eleitores de Bolsonaro serem incapazes de perceber que estão supostamente votando contra os próprios interesses.

O fato de que a grande massa dos usuários do zap (o aplicativo tem 120 milhões de contas no país) não tenha a capacidade de discernimento para avaliar o conteúdo que recebe das redes sociais deixa desesperados os apoiadores da candidatura PT-PCdoB. Não é fácil aceitar que dezenas de milhões de pessoas acreditem que comunismo é uma conspiração Internacional do Foro de São Paulo e de George Soros, contando com a mídia comprada, para implantar a ideologia de gênero através da Pablo Vittar e artistas da lei Rouanet, e fazer meninos beijarem meninos, meninas beijarem meninas, todos usarem drogas e roubarem a propriedade alheia. Diante do grau de ignorância das pessoas que acreditam nessa definição, a reação de grande parte dos apoiadores da campanha petista é menosprezar a capacidade cognitiva delas, chamando a todos os eleitores de Bolsonaro de burros, indiscriminadamente.

Mais uma vez se trata de uma resposta tão fácil quanto falsa para um problema que exige muito maior profundidade de análise. A começar pelo fato de que o eleitorado de Bolsonaro não é homogêneo, nem em termos de classe, nem de ideologia, nem muito menos de capacidade intelectual. Não falta capacidade cognitiva aos eleitores de Bolsonaro, falta alternativas de organização e ação coletivas. A tia e o tio do zap que vão votar no Bolsonaro estão fazendo uma escolha legítima com base numa avaliação material das condições de vida. A tênue prosperidade da era Lula desmoronou como um castelo de cartas diante da crise mundial e das exigências brutais do parasitismo rentista que comanda o capitalismo periférico brasileiro. O que sobrou foi o ressentimento, agravado pela percepção da corrupção petista, para gerar um caldo de ódio e desejo de vingança em que germinam as mentiras da campanha anti-petista. As pessoas que votam em Bolsonaro não são zumbis ignorantes ou debilóides sem cérebro, são pessoas entregues ao abandono, tratadas como estatística de consumo pela publicidade dos governos petistas.

Em lugar de se empoderarem como sujeitos históricos, receberam dos governos petistas um cartão de crédito. Quando os empregos acabaram ou se tornaram piores, precários, mal pagos e incertos, ficaram as dívidas impagáveis, e quem organizou essa população foram as igrejas neopentecostais. A solidariedade espontânea e os laços de coletividade foram capturados pelo discurso meritocrático e empreendedorista das igrejas para se transformar no seu oposto: competitividade e indiferença.

Nesse cenário, não é de se surpreender que optem pelo candidato que aparece como aquele que é “contra tudo o que está aí”. O fato de que esse candidato apareça como associado a ideias retrógradas, autoritárias, violentas, etc., aparece para essa grande massa do eleitorado como excessos e efeitos colaterais toleráveis diante da sua prioridade, que é castigar o petismo pela traição das suas esperanças frustradas. Sabemos que Bolsonaro não é contra, mas ao contrário, faz parte de “tudo isso que está aí”. O que estamos argumentando é que se trata de uma escolha epistemologicamente legítima, baseada numa avaliação fundamentada de uma certa realidade material. Não se trata de um caso de “burrice”. Falar de burrice revela na verdade uma postura condescendente e arrogante de quem se considera dono da verdade, sabedor do que é melhor para todos, e não se conforma pelo fato dessa massa de ignorantes estar escolhendo outra coisa.

O petismo e seus apoiadores de primeira e de última hora querem agora ensinar com ares professorais aos eleitores do candidato reacionário qual deveria ser o seu comportamento “correto”. Não percebem que é justamente essa postura professoral e superior que afastou o eleitorado. Esquecem que na década de 1990 o próprio PT dizia que era “contra tudo isso que está aí”. Entretanto, quando o partido se tornou governo, se comportou igualmente como parte de “tudo isso que está aí” (o que não deveria ser surpresa para ninguém, considerando o comportamento que já vinham tendo os petistas nos sindicatos e outros movimentos sociais, como colaboradores da gestão do sistema do capital). Militantes se converteram em burocratas ministeriais, acadêmicos, sindicais, funcionários de ONGs e gestores de pautas identitárias. Criaram um abismo entre si e a classe que diziam representar.

O problema que temos aqui não é de linguagem, apenas. Não é o simples fato de que o petismo no governo não soube “falar a língua do povo”, o que poderia ser facilmente corrigido por uma estratégia de comunicação reconfigurada. O problema é mais profundo, está na própria concepção vanguardista de representação que estrutura a relação dos partidos com a classe. Segundo essa concepção os dirigentes e militantes partidários devem representar o povo perante o Estado (ou dentro dele) e as demais classes, porque são detentores do conhecimento e sabem o que é melhor para ele.

O povo, a classe trabalhadora, não precisa de representantes que supostamente ajam em seu nome nas esferas burocráticas de poder. Precisa de espaços de organização em que possa se reconhecer como sujeito da história, forjando suas próprias reivindicações, organizações, métodos de luta e discursos. A postura vanguardista do petismo o fez cair na armadilha de subir ao governo, acreditando que tinha subido ao poder. O poder social emana das relações sociais materiais, não do Estado. O poder permanece sempre nas mãos do capital, e é só no enfrentamento ao capital, jamais por meio de gestores e “representantes” no Estado, que a classe trabalhadora pode desenvolver um contra-poder e um projeto social próprio. A opção de conquistar cargos no Estado traz consigo a consequência inevitável de ser identificado como gestor do sistema do capital. Como o sistema é incapaz de produzir melhorias materiais duradouras, estando sujeito a crises cíclicas mais ou menos violentas, mas sempre inevitáveis, o rastro de misérias e frustrações acaba sendo colocado na conta de quem se ofereceu para ser seu gestor, ou seja, o PT.O neofascismo (nome provisório até que possamos falar ao final sobre a classificação do bolsonarismo) é a ressaca do reformismo. E a esquerda (sic) revolucionária joga no lixo toda a sua já escassa credibilidade como opositora do PT ao aderir de última hora à sua campanha eleitoral e se comprometer assim com a gestão representativa do sistema. Chega a ser comovente o esforço da esquerda (sic) revolucionária na campanha de Haddad, muito mais sincero do que o do próprio PT. Os petistas fazem uma campanha protocolar, pois como bons gestores que são, contam com o desastre certo do governo Bolsonaro para voltarem ao governo em 2022 (se esse cálculo é correto e se teremos realmente eleições em 2022 ou em 2020, são outros quinhentos). O que importa aqui é que tanto o petismo quanto a esquerda (sic) revolucionária compartilham desses mesmos pressupostos vanguardistas. Essa variedade de cretinismo é portanto a mais grave, porque está disseminada não só no petismo, mas também naqueles que lhe fizeram oposição pela esquerda (sic) ao longo das suas passagens pelo governo, e que na última hora aderiram com mais ou menos vergonha à campanha eleitoral petista, como se isso pudesse salvar alguma coisa. As próximas duas variedades de cretinismo são menos graves, mas nem por isso devem deixar de ser mencionadas.

Cretinismo identitário/moralista – acreditar que se pode convencer o eleitorado de Bolsonaro a não votar nele associando ao seu nome adjetivos como “fascista”, “autoritário”, “reacionário”, manipulados de maneira moralista.

Quanto mais a esquerda (sic) ofende Bolsonaro e seus eleitores, mais reforça o elo entre eles. A esquerda (sic) se recusa a descer do salto e reconhecer que perdeu o debate moral e ideológico para o reacionarismo. Os anos em que os petistas (bem como seus apoiadores voluntários e involuntários) ocuparam cargos no aparato estatal e paraestatal (sindicatos, ONGs, universidades) serviu para criar neles a ilusão de que a população concordava com suas posições. Estar temporariamente no governo não significa estar no poder, já dissemos antes.

É preciso dizer agora que não significa também contar com a concordância da população em relação ao seu discurso ideológico. Essa ilusão é particularmente mais grave entre uma certa camada de militantes cooptados pelos mecanismos de administração dos conflitos sociais para se transformarem em gestores de pautas identitárias. Uma vez que o capitalismo periférico brasileiro sob gestão petista não pode atender as reivindicações de melhorias na situação material de segmentos como mulheres, negros e LGBTs (pois para isso seria preciso enfrentar os interesses materiais da burguesia, coisa que está fora de questão para o PT), o que eles fizeram foi “empoderar” simbolicamente uma parcela minúscula desses segmentos em espaços de “representatividade”.
Os gestores das pautas identitárias devidamente iludidos pelo empoderamento meramente simbólico dos anos de governo petista se tornaram justiceiros sociais e fiscais punitivistas do comportamento e da linguagem alheios, especialmente nas universidades e no movimento estudantil. De uma postura libertária, esclarecida e pedagógica, a esquerda (sic) passou a ser identificada com um patrulhamento autoritário, paranóico e rancoroso da vida privada. Mais grave do que isso, desapareceram do horizonte as discussões sobre os fundamentos materiais de uma realidade que coloca dificuldades adicionais bem concretas para as mulheres, negros e LGBTs. Dessa forma, não adianta reclamar que haja partes desses segmentos populacionais descrentes do discurso da esquerda (sic) e dispostos a votar em Bolsonaro. Melhorias simbólicas nunca os alcançaram, mas a deterioração material veio de maneira bem concreta e é isso que prevalece nas escolhas, acima de considerações de ordem moral.

Encerrando este ponto, convém aqui discernir entre a tia do zap que ouve uma história horripilante sobre supostas perversões sexuais dos esquerdistas, de um lado, e o pastor mal intencionado ou nerd do MBL que fabrica essas histórias, do outro. Desnecessário seria dizer que ao tratar da presente modalidade de cretinismo estamos criticando os que nela incorrem por não saber tratar aquela parte do eleitorado bolsonarista que vai votar de boa fé, acreditando que é necessária uma mudança e que vale à pena correr o risco. Não estamos falando dos eleitores que sabem muito bem o que é ditadura, o que é autoritarismo, tortura, perseguição, censura, etc. Contra esses, qualquer argumentação moral é também inútil, obviamente.

Cretinismo educacional – acreditar que se poderia impedir o advento do reacionarismo por meio de políticas educacionais, não entendendo o papel atual das instituições educacionais formais como mera gestão da barbárie.

Mencionamos acima a crença de que políticas educacionais poderiam ser mobilizadas para melhorar o nível cultural da população e impedir assim a sua confiança ingênua nas mentiras do zap e consequentemente a sua adesão a projetos nefastos como o bolsonarismo. Longe estamos de menosprezar a importância de se massificar o acesso ao acúmulo cultural da humanidade, que precisa ser franqueado às camadas mais amplas da população, até como uma condição para a sua emancipação.

O que estamos assinalando aqui como uma modalidade final de cretinismo é a existência de uma dupla ilusão subjacente à defesa da educação como panaceia de todos os males sociais.

O primeiro aspecto dessa ilusão é a redução da educação à escolarização formal sob patrocínio estatal ou privado. A educação num sentido realmente emancipatório precisa ser entendida de maneira mais geral como formação humana, que se dá também (ou principalmente) para além dos muros da escola, nos movimentos sociais, nos sindicatos, associações, coletivos e espaços de luta, onde a real natureza da sociedade de classe se revela e a dimensão coletiva e social do ser humano se materializa. A outra dimensão da ilusão educacional é a crença de que a educação parocinada pelo Estado ou empresas possa ser um instrumento neutro efetivamente capaz de proporcionar o acúmulo de conhecimento necessário para uma transformação realmente emancipatória. A escola na sociedade capitalista é inerentemente incapaz de fazer isso. A educação escolar formal será sempre uma educação voltada para a formação da mercadoria força de trabalho com as características adequadas à reprodução do capital no momento histórico dado. E o atual momento histórico requer uma mão de obra fragmentada, atomizada, sem vínculos coletivos, individualista, empreendedora e crente na meritocracia, em constante reciclagem, aprendendo a aprender, flexível e disposta a aceitar sacrifícios laborais e sociais sem reclamar. Em outras palavras, a educação produz uma força de trabalho adaptada a uma nova situação em que as relações de trabalho na modalidade de empregos formais estão sendo substituídas aceleradamente por relações precárias, informais, terceirizadas, temporárias, intermitentes, etc. O trabalhador tem que se adaptar a isso sem questionar, e é para isso que serve a escola.

Não por acaso, a própria escola pública está sendo também privatizada, desde a creche até a pós-graduação, convertida em um lucrativo mercado para ONGs, fundações, institutos, consultorias e corporações educacionais, precarizando também o trabalho dos professores e funcionários, rebaixando o nível do conteúdo (muito longe de garantir aquilo que chamamos de acesso ao acúmulo cultural da humanidade), etc. A escola não será antídoto contra a barbárie, mas instrumento de gestão dela, confinando crianças, adolescentes e jovens em um imenso desperdício de tempo que não lhes ensina nada realmente útil e transmite apenas os discursos paupérrimos dos gurus empresariais da moda diluídos em jargão vulgar.

Considerações finais

Para não incorrer ele próprio em alguma modalidade de cretinismo, a última coisa que o autor poderia fazer seria fornecer algum tipo de receita pronta e supostamente infalível de como enfrentar o bolsonarismo. Mas algo que com certeza é necessário apontar é que o enfrentamento só é possível quando se conhece a real natureza do adversário. E nesse campo a esquerda (sic) também não está se saindo muito bem.

O uso e abuso do conceito de fascismo, e em especial a sua distorção como uma espécie de qualificação moral impedem uma compreensão real do fenômeno. Sumariamente, conforme o texto citado, somos contra a classificação do bolsonarismo como uma variedade de fascismo. Na época do fascismo clássico, houve um suposto equivalente brasileiro, o integralismo, sobre o qual J. Chasin já argumentou que não se tratava de fascismo, mas de uma “forma de regressividade num capitalismo hipertardio”, título da sua tese. Parafraseando esse título, classificamos o bolsonarismo como uma forma nacional particular de regressividade e sintoma psicossocial do capitalismo hipertardio. A diferença é que Chasin falava em capitalismo hipertardio para definir a implantação do capitalismo no Brasil. O que chamamos de hipertardio hoje é o modo de produção capitalista global como um todo.
O capitalismo extingue aceleradamente os antigos empregos formais e coloca os trabalhadores numa dança das cadeiras permanente, em que há cada vez menos vagas e a disputa por elas é cada vez mais acirrada. Populações supérfluas vão ser postas para exterminar umas às outras, direta ou indiretamente, pelas mãos de milícias ou polícias, Estado islâmico ou estado neopentecostal, enquanto acima de todos um baronato financeiro usufrui olimpicamente da espoliação dessas massas de bárbaros, mediante aplicativos de gestão e psicopatas animadores de auditório como Trump ou Bolsonaro. Plataformas digitais impessoais vão coletar as gotas escassas de mais-valia geradas por essas massas em correria ensandecida e indiferente ao esmagamento dos mais frágeis, canalizando-as para um rio de onde a elite financeira e burocrática vai se servir. Todo esse circuito insano vai gerar cenários de decomposição e entropia, das quais o Brasil vai ser o primeiro laboratório mundial, ao mesmo tempo em que está escancarada para quem quiser enxergar a obsolescência fatal do capital como relação de produção dominante.

Nunca estivemos tão perto de uma revolução socialista (pelas possibilidades técnicas de expropriação dos aplicativos de gestão em favor de uma economia de valores de uso e tempo disponível) e ao mesmo tempo tão longe (pela correlação de forças legada pela derrota de todas as lutas passadas pelo socialismo). O bolsonarismo é somente a versão brasileira da forma de gestão adequada a esse capitalismo, ao mesmo tempo ultra-tecnológico e ultra-primitivo. O enfrentamento contra ele não poderá ser feito sob os pressupostos de uma ressurreição das formas de luta que derrotaram a última ditadura militar, por exemplo (lutas de massas de categorias de trabalhadores compactas e homogêneas organizadas em sindicatos, liderando uma vasta plêiade de outros movimentos sociais).

A nova forma de organização do trabalho atomizada e em redes manipuladas por aplicativos imporá uma nova forma de luta. Ao mesmo tempo, as facilidades da comunicação que possibilitam a gestão podem facilitar também a revolta contra ela. Se a esquerda (sic) sobreviver à apoteose de violência que vai se seguir à vitória do reacionarismo em 28/10, a sua tarefa será organizar a revolta contra o inevitável fracasso retumbante da gestão do capitalismo brasileiro pela gangue bolsonarista, em um contexto de crise mundial.

 

3 COMENTÁRIOS

  1. Camarada,
    Você mandou muito bem. Que texto!

    Vou esperar decantar um pouco as idéias para trazer algumas questões.

    abraços

  2. O texto desperta excelentes reflexões…

    O “parasitismo” no capitalismo, na verdade, seria mais apropriado chamar de “simbiótico”. O rentismo, dentro do modo de produção capitalista é elemento fundamental para a expansão capitalista, ou então não haveria sentido a existência de instituições capitalistas como bancos ou organismos como o BIRD ou FMI. Também o termo capitalismo periférico não seja uma denominação adequada, pois sua integração é imensamente grande e profunda, mesmo onde aparentemente ele não esteja presente ou seja tão forte. Por exemplo, mesmo em países extremamente pobres, com escassas infraestruturas, atrasados tecnologicamente, etc, esta pobreza e escassez são determinações, ainda que negativas, do próprio capitalismo. E tudo isso é importante para que se tenha claro que não existe um “capitalismo do bem” (produtivo) e um “capitalismo do mal” (improdutivo) – base de fundamentação ideológica de partidos de esquerda, especialmente do PT – e sim apenas um único capitalismo, que possui variadas formas de se produzir e reproduzir.

    Ainda que as conjunturas de 1990 e de agora sejam diferentes, as estruturas continuam semelhantes, porém, o PT daquela ocasião não “levou”, mesmo estando “contra tudo que esta aí”, enquanto que o “bolsonarismo” que também estava “contra tudo que está aí”, levou… E não dá para dizer que não havia crise do capital. Estávamos em plena implantação do neoliberalismo, do qual Fernando Collor foi o representante eleito. Na verdade, a análise crítica e racional também deve ser feita em relação à classe trabalhadora.

    O capital está em “revolução permanente” ao desenvolver constantemente as forças produtivas. Por isso a mão de obra é estritamente integrada em todo o processo produtivo em escala mundial, e não fragmentada. O que se fragmenta, atomiza, individualiza, etc., é a classe.

    A educação atual não é tão “a-questionadora” quanto parece. Ao contrário. Ela é produtora de uma forma estratégica para o capital de questionamento, que se manifesta através dos identitarismos e multiculturalismos, ou seja, ao integrar na grade curricular (desde o ensino fundamental até os cursos universitários), nos vestibulares e no cotidiano social estas questões identitárias e multiculturais, ao invés das questões de classes, ela está justamente direcionando o potencial questionador da classe trabalhadora para onde quer o capital.

    “Mas algo que com certeza é necessário apontar é que o enfrentamento só é possível quando se conhece a real natureza do adversário”. (…) “Ao mesmo tempo, as facilidades da comunicação que possibilitam a gestão podem facilitar também a revolta contra ela”. É o adversário que produz e detém o monopólio de toda a comunicação, tantos dos “softwares”, quanto dos “hardwares”. O Adversário real produz o computador, é dono da empresa telefônica, dos cabos, das torres, dos satélites, dos programas, etc, além de deter a própria força de trabalho do trabalhador. E essa é sua real natureza…. Portanto, o adversário permite a revolta, e até estrategicamente facilita e estimula a revolta, mas em limites rigidamente controlados (algoritimos são largamente utilizados para fiscalizar a “revolta dentro da ordem”…), mas em nenhum momento permite a “revolução”, ao contrário. Por isso, nem como auxílio a um movimento revolucionário se prestariam estes meios, caso contrário, estaria-se simplesmente negando “a real natureza do adversário”…

  3. Parabéns pelo texto, compa anônimo.

    Você tem material de leitura/video para nos aprofundarmos no tema que você levantou sobre a ilusão da horizontalidade a midia 2.0 e, principalmente e acima de tudo, dos elementos do cretinismo identitário que você colocou em debate (expansão da formação de gestores das pautas identitárias, assim como a difusão desse viés nas universidades)?

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