Para o capitão Nascimento não adianta analisar o mundo, a sua recomendação é “deixe os caveira trabalhar”. Por Acauam Oliveira

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III

3.1 A fratura como sistema

“O nosso curso prepara os policiais pra guerra. E não adianta me dizer que isso é desumano. Enquanto os traficantes tiverem dinheiro pra se armar… a guerra continua. Todo policial do BOPE aprende isso. O Matias tava aprendendo. E quer saber, parceiro? Já tinha passado da hora de ele afrontar aqueles maconheiros.”

O filme apresenta uma discussão que foi muito louvada por setores mais conservadores, que entenderam se tratar de um verdadeiro tapa na cara da elite universitária. Trata-se do afrontamento de Nascimento aos jovens de classe média consumidores de maconha que, em sua opinião, alimentam o tráfico de drogas e são responsáveis diretos pela morte dos moradores do morro. Ao invés de entrar no mérito da validade ou não da argumentação, é interessante observarmos que essa cobrança não constitui um caso isolado. Ao contrário, ela se distribui por múltiplas camadas ao longo do filme, criando o que podemos identificar como um sistema. Fazem parte dessa constelação, além dos “maconheirozinhos”, os intelectualóides leitores de Foucault que pensam entender a violência da guerra ao tráfico protegidos em seus apartamentos. Também a visita do Papa e sua insistência de ficar na favela cumprem a mesma função, ou seja, mostrar ao espectador que aqueles que estão no topo da cadeia social nada entendem da realidade social brasileira e que suas atitudes, em franco descompasso com as condições reais de sobrevivência, apenas aumentam as trapalhadas e imbróglios (para não dizer outra coisa, menos sutil) que o Bope precisa desfazer, com prejuízo da população. “O senhor tá de brincadeira né coronel? Pô, vai morrer gente… Põe na conta do papa”. A mensagem ao longo de todo o filme é clara, a solução para a violência nacional passa pela superação dessa separação entre saber e prática, é preciso erradicar o humanismo mitificador e colocar para trabalhar quem, além de honesto, conhece as complexas realidades do país. “E a realidade daqui é a guerra, parceiro”.

Podemos dizer que essa separação entre teoria e prática, funciona como um princípio regulador da estrutura do filme, além, é claro, do enquadramento no formato filme de guerra, que já comentamos. Ou antes, essa separação relaciona-se diretamente à violência exposta, e a promove. Desde o início, este é o vetor que sustenta as ações do Bope, é o abismo colocado entre as altas esferas e a vida real que obriga o batalhão a se mobilizar para consertar as trágicas confusões daí decorrentes. Todo o filme é construído a partir desse movimento. Uma interpretação, uma ordem equivocada, imposta de cima para baixo, gera efeitos desastrosos no plano da prática, onde transcorre a vida do cidadão comum. Essa defasagem é orquestrada pelo olhar analítico do capitão Nascimento, especialista no assunto. Seu papel é justamente colocar as coisas no lugar, quando tal separação conduz ao inevitável choque.

Ora, essa defasagem está no centro da vida social brasileira. O abismo social, que gera um descompasso entre o plano da interpretação (universidade, política, Foucault) e o plano concreto (polícia, bandidos, cidadãos). Em suma, é a divisão internacional do trabalho, na parte que coube ao país, que movimenta a estrutura do filme. A matéria local se inscreve na forma [1]. Essa é pois a raiz do incômodo expresso por Tropa de Elite I, o abismo social da nossa sociedade. Mérito do filme em criar um princípio estrutural assentado em ponto decisivo do contexto nacional.

Mas, diante desse efeito perverso da cordialidade, captado pelo olhar analítico de Nascimento, qual é a solução proposta pelo filme? Para o capitão, dada essa separação, dada a guerra permanente que vivemos, não adianta analisar o mundo, a reflexão sobre processos sociais imediatamente posiciona o intérprete ao lado dos produtores da violência, distantes do mundo real. A crítica não é infundada, e de fato essa separação sustenta o processo perverso de reprodução da desigualdade que promove a violência. Mas a resposta dada diante desse quadro, “acabe com a reflexão e atira em tudo que se mexe, seu 01”, é problemática, justamente pelo ponto abordado no segundo filme: os alvos não são assim tão claros e o direito de matar só é concedido até determinado ponto, bem seguro, aliás. Diante da ineficiência da reflexão de atuar no mundo para transformá-lo, a recomendação de Nascimento é “deixe os caveira trabalhar”. Ou seja, exige-se do pensamento que ele assuma de vez sua face grotesca e violenta, ao invés do movimento contrário, de superar a separação. Como se o problema do escravista fosse a ideologia liberal abolicionista e não o fato dele ter escravos. A solução proposta não é acabar com o muro, mas fazer com que cada um fique do seu lado, sem intervir no espaço do outro. Desse modo, com cada qual no seu cada qual, todo mundo sai ganhando. O enrijecimento da lógica permite que se afronte também o campo dos vencedores que procuram estabelecer algum pólo de contato com os do lado de lá – ONGs, intelectuais, usuários. Toda tentativa de transposição do muro, por menor que seja, vai feder, vai mexer com forças para além da compreensão. A proposta do filme, em tudo contrária à dos Racionais, apesar de participar do mesmo caldo histórico, é obscurantista. A afronta contra a elite, ao mesmo tempo em que marca a distância do Bope daquele universo, funciona como a advertência de um pai rígido, porém amoroso. No fundo, quem sai ganhando ao não se misturar com a gentalha são eles mesmos, a elite, mais do que ninguém.

Padilha constrói assim um filme de guerra que parte de questões e problemas realmente relevantes no cenário nacional, fazendo com que sua obra, ao furtar-se de ser mera transposição do modelo hegemônico, consiga formalizar nossa matéria social. A distorção da resposta oferecida é exigida por questões de verossimilhança impostas pelo gênero, atendendo à demanda pela criação de um herói nacional. O acerto com a matéria histórica por si não garante a qualidade da obra, que precisa vir amparada por uma estrutura coerente. O mérito do filme consiste em ter criado uma estrutura coesa, em que as inverossimilhanças são funcionais e conferem sentido ao olhar do narrador. É esse duplo acerto, convertido em um – a estrutura –, que torna o filme bem melhor e mais lúcido do que a média do cinema norte-americano de entretenimento, indo além. Além disso, o torna tão sólido e representativo quanto seus pares de esquerda. Não é pouca coisa.

Nota

[1] SCHWARZ, R. (2000). As idéias fora de lugar. In. Ao Vencedor as Batatas. São Paulo, Duas Cidades/Ed. 34.

Bibliografia

ASSIS, M. (2008). Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo, Globo.
CANDIDO, A. (1993). Dialética da malandragem. In: O discurso e a cidade. São Paulo, Duas cidades.
CALLIGARIS, C. (2007). Tropa de Elite. In: Folha de São Paulo – Ilustrada. 11 out.
GARCIA, W. (2007) ‘Diário de um detento’: uma interpretação. In: NESTROVSKI, A. (Org.). Lendo música. São Paulo, Publifolha.
HOLANDA, S. B. (1995). Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras.
KEHL, M. R. (2001). As fátrias órfãs. Disponível aqui. Acesso em 20 de setembro de 2009.
PASTA Jr., J. A. (1999). Romance de Rosa: Temas do Grande Sertão e do Brasil. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 55.
QUITÉRIO, C. T. (2008). O Cavaleiro Democrata das Trevas e a Tropa Brasileira da Elite. Artigo publicado aqui. Acesso em 01\02\2011.
ROCHA, J. C. C. (2004) Dialética da marginalidade. In: Folha de São Paulo – caderno Mais! 29 fev.
SCHWARZ, R. (1999). Fim de século. In: Seqüências Brasileiras. São Paulo, Companhia das Letras.
— (2000). As idéias fora de lugar. In. Ao Vencedor as Batatas. São Paulo, Duas Cidades/Ed. 34.
ZIZEK, S. (1996). O espectro da ideologia. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro, Contraponto.

2 COMENTÁRIOS

  1. Acauam, gostei muito de ler os teus textos, achei uma análise muito rica e livre. Eu concordo que o filme é uma obra bem redonda e uma produção de qualidade muito boa dentro do mercado atual. Eu apenas manteria alguns comentários que fiz na 2ª parte, um tema que demandaria mais bem um texto do que um comentário, que para mim é o limite da estética do cinema, um tipo de arte que hoje é feita e reproduzida em moldes que me muito me fazem desconfiar da crítica empenhada nesse tipo de produção cultural.

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