Por José Nuno Matos

Cidadãos, denizens e clandestinos: a questão da habitação

A crise da cidadania, nas suas múltiplas manifestações, aparece representada no atual discurso académico e jornalístico sob o termo de “exclusão”. Todavia, e não querendo necessariamente refutar esta lógica, consideramos que a linha divisória que separa o incluso do excluso é cada vez mais ténue, “de tal modo que exclusão e inclusão, interior e exterior, bios e zôê, direito e facto entram numa zona de indistinção” (Agamben, 1998: 18). Recorrendo a Badiou, Giorgio Agamben distingue a pertença – situação em que a inserção da unidade no colectivo é anónima –, da inclusão, caracterizada pela existência de uma forte representação do uno no múltiplo. Em termos políticos (ou apolíticos), podemos verificar: a coincidência entre pertença e inclusão (denominada “normal”), referente, por exemplo, à participação activa da pessoa numa dada associação; a “excrescência”, ou inclusão sem pertença, em que uma entidade e/ou indivíduo apresenta uma capacidade de determinar a actividade de um colectivo sem, contudo, ser sua parte (podemos nomear como exemplo o lobbying exercido por um grupo estranho a uma dada sociedade); e, finalmente, “a existência de um termo que é apresentado mas não é representado (que pertence, sem ser incluído)” (Agamben, 1998: 33), visível na incapacidade de participação formal e/ou informal do indivíduo no social.

No estado de excepção, o conflito entre poder soberano e vida nua define-se pela fusão das duas últimas relações. O duplo impedimento do livre exercício de liberdades e do usufruto de garantias (apresentação sem representação) assume-se como uma estrutura fundadora do estado de excepção, ou seja, é algo que se encontra incluído (representação sem apresentação) no processo governativo. Parafraseando Agamben, “A excepção soberana é, pois, a figura em que a singularidade é representada como tal, isto é, enquanto irrepresentável” (Agamben, 1998: 33).

A repressão da mobilidade transnacional de pessoas, nomeadamente do Sul, mais pobre, para o Norte, mais rico, constitui um dos fenómenos que melhor ilustra o estado de excepção em que vivemos. O Estado-Providência, teoricamente instituído com base numa noção universalista de cidadania, vê-se confrontado com um crescente número de pessoas que, habitando no seu território (pertença), não tem acesso às condições inerentes à casta cidadã (não inclusão). No entanto, a sua inexistência formal corresponde a um alicerce fundamental do sistema social, desempenhando competências essenciais ao seu bom funcionamento (representação, sem apresentação).

Tomas Hammar denomina os membros deste novo conjunto social de denizens, um antigo termo inglês que designava um estrangeiro que, apesar de possuir estatuto britânico, não poderia auferir do direito ao exercício de cargos públicos. Segundo o autor, “Um novo grupo de status emergiu, e membros deste grupo não são mais cidadãos estrangeiros comuns, não sendo igualmente cidadãos naturalizados do país receptor – eles são residentes alienígenas a que chamamos denizens” (Hammar, 1990: 13). É importante referir que a categoria identifica apenas a população estrangeira com autorizações de residência ou vistos de trabalho sem qualquer restrição temporal que, contudo, não goza da totalidade dos direitos políticos –, ou seja, com uma cidadania de “segunda categoria, «autorizada»” (Mezzadra, 2005: 107). Para além destes, contam-se todos os imigrantes clandestinos, cuja permanência no país não se encontra legalmente autorizada, mas que, todavia, não deixam de fazer a máquina andar.

A desigualdade no acesso a bens e serviços essenciais, como a habitação, ilustra bem este paradoxo. Nalguns casos, este poderá mesmo atingir dimensões extremas, como no caso dos vários bairros da periferia de Lisboa (Azinhaga dos Besouros e Fontaínhas na Amadora, Marianas e Fim do Mundo em Cascais, Quinta da Serra em Loures, entre outros) demolidos no âmbito do Programa Especial de Realojamento (PER) [1]. A distância de mais de uma década entre o início dos processos de demolição e o plano que os fundamentou, delineado em 1993, impediu a compatibilidade entre o espírito da lei e a aplicação do PER. A não contemplação de situações relativas à alteração do agrupamento familiar e de todas as pessoas ausentes dos bairros na altura do recenseamento – desde imigrantes que começaram a residir nesses bairros depois de 1993, a moradores que simplesmente não se encontravam em casa (hospitalizadas ou a trabalhar fora) –, aliada ao modus operandi [2] das autoridades municipais, originou protestos por parte das comissões de moradores, que diversas vezes culminaram na resistência às demolições.

As contradições do processo, que rejeita o direito ao realojamento de todas as pessoas não inscritas no PER, não apresentam apenas uma dimensão jurídica (de acordo com o artigo 65 da Constituição da República Portuguesa, todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação condigna), mas também administrativa. De facto, é difícil argumentar a ilegalidade das moradias, quando se cobram faturas de eletricidade, água, esgotos e contribuições autárquicas (existem mesmo casos de “habitação ilegal” registada nas Finanças). A situação de excepção – traduzida na pertença (pagamento de taxas municipais ou impostos vários), sem representação (não reconhecimento do direito ao realojamento), como política pública e não como fenómeno gratuito – veio a tornar-se progressivamente clarividente, à medida que aumentavam os contingentes policiais que protegiam as operações de demolição.

Não obstante constituírem casos extremos de excepção, devido exactamente à condição social das pessoas desalojadas (na sua maioria imigrantes, alguns dos quais sem documentação legal), os acontecimentos analisados não surgem como factos isolados, indiciando um estado de excepção generalizado que determina as mais variadas esferas sociais, entre as quais a da habitação.

As actuais políticas urbanas e de habitação, mais orientadas por valores de mercado – como se a cidade tivesse valor em si – do que por uma política de ordenamento territorial, alteram profundamente a face da cidade, assistindo-se a uma dicotomia entre centro, crescentemente ocupado por negócios privados e por condomínios de habitação privada, e a periferia, reservada para quem trabalha. Este processo é reforçado pelo aumento do preço das moradias, fenómeno associado a um mercado imobiliário especulativo, e pela diminuição dos apoios ao arrendamento. A não correspondência entre o valor dos salários e os custos habitacionais, quer no mercado de arrendamento quer no de compra, obriga ao maior endividamento das famílias e a um aumento da procura das ofertas a menor preço, longe do centro e da maioria dos locais de trabalho. Parece, assim, desenvolver-se uma cada vez maior semelhança entre as condições de habitação de cidadãos, denizens e clandestinos.

Partindo de uma análise das novas formas de trabalho e das suas repercussões sociais, Javier Toret e Nicolás Sguiglia consideram existir uma aproximação do paradigma laboral pós-fordista ao paradigma laboral imigrante, verificando-se a extensão das “condições laborais de que sofrem os imigrantes (informalidade na contratação, vulnerabilidade, vínculo intenso entre território e emprego a realizar, desprotecção sindical, temporalidade, total disponibilidade,…) […] ao resto dos trabalhadores” (Toret, Sguiglia, 2006: 106) [3].

Considerações finais

O crepúsculo da cidadania, ao colocar a nu a relação entre poder soberano e vida nua, poderá originar uma outra reivindicação de cidadania, não mais baseada neste antagonismo. A ideia de que todo o imigrante visa estabelecer-se e integrar-se num determinado país receptor constitui um lugar-comum, cuja generalização não corresponde inteiramente à verdade. O interesse no acesso a um conjunto de bens e serviços, derivados do estatuto de cidadão, não redunda, necessariamente, numa ambição em “obter a cidadania do país onde reside, nem sequer após vinte anos de residência” (Mezzadra, 2005: 100). Embora o desinteresse pela nacionalização possa ser suscitado por uma reivindicação identitária, o imigrante, perante uma vasta e complexa rede de países, poderes soberanos e fronteiras, é movido, mais do que tudo, pelo desejo de uma existência de si e para si, “que declina qualquer identidade e qualquer condição de pertencer” (Agamben, 1990: 89). Um dos problemas, aliás, das teses defendidas por Agamben é, justamente, colocar o ónus da agência totalmente do lado do poder soberano, em detrimento da vida, despida de qualquer capacidade de iniciativa.

O nivelamento por baixo das condições económico-sociais, fator que dificulta crescentemente a distinção entre nacional e estrangeiro, ou clandestino e legal, conduz a um concomitante devir imigrante das singularidades. As novas formas de intervenção político-social, por meio de grupos e movimentos sociais em rede (cujos nódulos transpõem fronteiras), com formas de organização horizontais, reflectem a reivindicação, por parte da vida nua, de uma nova condição política, não fundamentada na diferença entre vida nua e potencial, mas sim na sua natural correspondência. Deste modo, “a cidadania poderá outra vez tornar-se, não uma ilusão doméstica, mas antes um espaço de conflito” (Mezzadra, 2006: 178).

Notas

[1] Iniciativa pública destinada a “limpar” os grandes centros urbanos de bairros de lata e de barracas [favelas], bem como a assegurar o realojamento dos seus moradores em habitações a custos controlados.

[2] “Avisos de demolição enviados por telemóvel [celular], afixação de avisos sem data ou anunciando a demolição a partir de um determinado dia, passando-se os dias seguintes na incerteza, são práticas comuns a vários dos municípios com processos de demolição de casas habitadas em curso, não sendo raro o regresso a casa com as paredes no chão e os haveres no armazém camarário [galpão da Prefeitura]” (Cerejo, 2007: 11).

[3] Os autores defendem igualmente que o trabalho contemporâneo se caracteriza por um devir feminino, absorvendo características das formas de labor anteriormente destinadas às mulheres (atenção, cuidado ou produção de sociabilidade), bem como por um devir cíborg, resultado da interacção da inteligência humana com as novas tecnologias informativas, numa rede global de produção (Toret, Sguiglia, 2006: 106).

Bibliografia

Agamben, Giorgio, (2006), “A brief history of the state of exception”, (http://libcom.org/library), Consultado a 2007-02-05;
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Agamben, Giorgio, (1998), O Poder Soberano e a Vida Nua, Lisboa, Editorial Presença;
Cerejo, Pedro, (2007), “Entre a barraca e o meio da rua: as propostas da Plataforma Artigo 65”, Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Nº3, pp.11;
Guerra, Isabel, “Tensões do Urbanismo Quotidiano”, In Portas, Nuno, Domingues, Álvaro, Cabral, João, (2003), Políticas urbanas: tendências, estratégias e oportunidades, Lisboa, Fundação Calouste-Gulbenkian, pp.236-251;
Hammar, Tomas, (1990), Democracy and the nation state: aliens, denizens and citizens in a world of international migration, Aldershot, Avebury Ed.;
Mezzadra, Sandro, ´Borders/Confines, Migrations and Citizenship`, In AAVV, (2006), Fadaiat, libertad de movimiento – libertad de conocimiento, Málaga, Ed. Fadaiat, pp. 175-180;
Mezzadra, Sandro, (2005), Derecho de fuga: Migraciones, ciudadanía e globalización, Madrid, Traficantes de Sueños;
Plataforma Artigo 65 (org.), (2007), “Petição pelo Direito à Habitação”, (www.paltaformaartigo65.org), Consultado a 2007-04-04;

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