Conjunto habitacional construído com recursos do programa Minha Casa, Minha Vida em Várzea Grande (PI), município com 4.336 habitantes.

Por Manolo

Leia as demais partes desta série: [1][2][3][4][5][6]

Distribuição da população brasileira, segundo o Censo IBGE 2010. Notem a concentração no litoral.

Não bastassem as disparidades populacionais e o afastamento geográfico, entre Salvador (2.693.606 hab.) e Catolândia (2.632 hab.) há mais que 867km, e de São Paulo (11.316.119 hab.) a Borá (806 hab.) [1] a distância é bem maior que os 488km a separá-las.

Há uma diferença crucial entre o processo de urbanização vivido hoje pelas cidades pequenas e médias e aquele vivido no passado pelas atuais metrópoles. Dada a correlação entre crescimento urbano e desenvolvimento econômico, o tamanho de uma cidade é indicador do dinamismo da produção econômica de sua área de influência; quanto menor uma cidade, e quanto mais dependente de outras cidades, menor o dinamismo da produção econômica situada em seu território e menor, ou menos significante, a participação de seus capitalistas e gestores nos processos de distribuição inter-capitalista da mais-valia.

Isto se vê na prática a partir de dois indicadores, um estático e outro dinâmico: a participação das cidades no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e sua inserção na rede urbana.

Apesar de a análise do PIB das cidades poder ser feita evolutivamente, para efeitos de compreensão da participação das cidades pequenas e médias na produção econômica de um país o que se precisa fazer é, a partir da definição de cidade pequena e cidade média, entender sua participação no PIB de modo sincrônico, isto é, pegando o conjunto do PIB de determinado país e analisando a participação de cada cidade nesta composição.

Os dados das duas tabelas abaixo, que cruza faixas populacionais selecionadas com sua participação no PIB brasileiro, permitem montar um primeiro quadro. A primeira, de menor escala, estabelece tendências:

TABELA 1: As 100 maiores e as 100 menores participações de cidades no PIB brasileiro, segundo faixas populacionais selecionadas
Faixa populacional da cidade (hab.) Participação da faixa populacional no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro
100 maiores % dos municípios nesta faixa populacional % dos 100 municípios selecionados 100 menores % dos municípios nesta faixa populacional % dos 100 municípios selecionados
Acima de 1 milhão 9 60% 9% 0 0% 0%
Entre 500 mil e 1 milhão 13 56,52% 13% 1 4,35% 1%
Entre 100 mil e 500 mil 39 15,92% 39% 1 0,41% 1%
Entre 20 mil e 100 mil 9 0,66% 9% 5 0,37% 5%
Até 20 mil 30 0,77% 30% 93 2,38% 93%
Fonte: Censo 2010 e pesquisa Produto Interno Bruto dos Municípios, ambos do IBGE.

 

Como se vê, via de regra as cidades pequenas situam-se nas faixas mais baixas da participação municipal no PIB brasileiro, enquanto as metrópoles e boa parte das cidades médias situam-se nas faixas superiores desta participação. Os poucos casos de cidades pequenas com alto grau de participação no PIB brasileiro dizem respeito àquelas cuja economia depende de alguma atividade do setor secundário (indústria, mineração, extração de petróleo etc.); embora esta atividade resulte em aumento do PIB local, as empresas responsáveis por sua execução não têm qualquer relação com os capitalistas locais além do estritamente necessário para uma política de boa vizinhança (gestão ambiental, incentivos fiscais, criação de vantagens locacionais etc.), sem implicar em qualquer participação efetiva deles em seus lucros ou gestão.

A segunda tabela amplia a escala, mas confirma as tendências:

TABELA 1: As 1000 maiores e as 1000 menores participações de cidades no PIB brasileiro, segundo faixas populacionais selecionadas
Faixa populacional da cidade (hab.) Participação da faixa populacional no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro
1000 maiores % dos municípios nesta faixa populacional % dos municípios selecionados 1000 menores % dos municípios nesta faixa populacional % dos municípios selecionados
Acima de 1 milhão 9 60% 0,9% 0 0% 0%
Entre 500 mil e 1 milhão 13 56,52% 13% 7 30,43% 0,7%
Entre 100 mil e 500 mil 171 69,80% 17,1% 13 5,31% 1,3%
Entre 20 mil e 100 mil 484 35,38% 48,4% 99 7,24% 9,9%
Até 20 mil 323 8,25% 32,30% 881 22,51% 88,1%
Fonte: Censo 2010 e pesquisa Produto Interno Bruto dos Municípios, ambos do IBGE.

 

Distribuição do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro pelos 5.565 municípios que compõem seu território. Notem como na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado há vários municípios com PIB médio e alto, refletindo a presença desproporcional (em relação à população municipal) da agroindústria, do extrativismo mineral ou da industrialização baseada em incentivos fiscais.

Se falamos de PIB, falamos de produção econômica, e qualquer análise adequada desta produção precisa considerar as relações entre empresas, cadeias produtivas etc. Nenhum quadro de referências que veja o capitalismo a partir de um modelo de empresas isoladas serve para o que quer que seja, nem mesmo para fins puramente didáticos; sem uma análise destas relações recíprocas entre empresas – sejam elas de uma mesma cadeia produtiva, sejam elas o conjunto de empresas de um território específico – qualquer quadro de referências fica condenado a uma visão parcial e fragmentária do processo econômico.

A análise a participação das cidades no PIB nacional é um primeiro passo para entender como se estrutura a produção, mas não serve para ver as relações entre empresas, entre entes federativos, entre centros de gestão etc.; tal análise vê as cidades isoladamente, e por isto compartilha dos mesmos problemas de um quadro de referência baseado em empresas individuais isoladas umas das outras. Falando metaforicamente, é como ver uma fotografia da distribuição da produção econômica num território. Esta fotografia mostra uma imagem estática que permite identificar detalhadamente uma paisagem, mas pouco revela sobre o que produz esta paisagem, como esta paisagem se integra com o restante do ambiente com que se relaciona. Uma análise dinâmica, que permita ver como se estruturam as relações travadas a partir desta produção exige, para prosseguir com a metáfora, que se vejam várias fotografias em sequência, como num filme. E é para isto que serve a análise da rede urbana formada por estas relações.

A rede da gestão empresarial no Brasil em 2004. Como uma mudança nos padrões desta rede implica em mudanças drásticas de infraestrutura, é de supor que siga a mesma em 2013.

Uma rede urbana, para o geógrafo Roberto Lobato Corrêa, “constitui-se no conjunto de centros urbanos funcionalmente articulados entre si. É, portanto, um tipo particular de rede na qual os vértices ou nós são os diferentes núcleos de povoamento dotados de funções urbanas, e os caminhos ou ligações os diversos fluxos entre esses centros” [2]. A rede urbana, para o autor, “constitui-se simultaneamente em um reflexo da e uma condição para a divisão territorial do trabalho. É um reflexo à medida que, em razão de vantagens locacionais diferenciadas, verificam-se uma hierarquia urbana e uma especialização funcional definidoras de uma complexa tipologia de centros urbanos. (…) A rede urbana reflete, assim, a divisão territorial do trabalho”[3]. Por outro lado, a rede urbana “é também uma condição para a divisão territorial do trabalho. A cidade em suas origens constituiu-se não só em uma expressão da divisão entre trabalho manual e intelectual, mas também em um ponto no espaço geográfico que, através da apropriação de excedentes agrícolas, passou de certo modo a controlar a produção rural. Este papel de condição é mais tarde transmitido ampliadamente à rede urbana: sua gênese e evolução verificam-se na medida em que, de modo sincrônico, a divisão territorial do trabalho assumia progressivamente, a partir do século XVI, uma dimensão mundial (…)” [4].

O processo é simples de entender. Qualquer território é composto por uma quantidade de cidades; as relações de produção que se estabelecem no território de cada uma delas dependem de certas vantagens locacionais, isto é, a maior ou menor presença de vias de transporte, infraestrutura de telecomunicações, equipamentos coletivos, imóveis urbanos, força de trabalho com determinadas qualificações etc. Quanto menor a presença destas vantagens locacionais, mais a economia local depende do estabelecimento de relações com a economia de cidades onde as vantagens locacionais reduzam os custos de produção e gestão. Estas cidades com melhores vantagens locacionais têm sua produção econômica subordinada a outras cidades com vantagens locacionais ainda melhores, e assim sucessivamente, até chegar-se aos nós da rede onde as vantagens locacionais permitem economias de escala suficientes para que nela se estabeleça a gestão de vastas áreas territoriais.

A rede da gestão federal brasileira em 2006. A imagem mostra os pontos de concentração da gestão federal no território brasileiro e sua relação com a capital (Brasília).

A análise da rede urbana é um poderoso instrumento de planejamento urbano e regional, e é a partir dela que se pode tentar entender as decisões de instalação ou fechamento de fábricas, de abertura ou alargamento de estradas, de opção por um ou outro modal de transporte de cargas ou passageiros (trens, barcos, caminhões, aviões etc.), de construção ou fechamento de novas instalações logísticas etc. Por isto mesmo esta análise tem sido feita com regularidade pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) pelo menos desde a década de 1970. Em respeito ao tempo de quem lê e também por uma questão de espaço, não se pode entrar em todos os detalhes apresentados por estas pesquisas, mas a apresentação da hierarquia da rede urbana brasileira exposta pelo IBGE na pesquisa Região de Influência das Cidades 2007 é suficiente para reforçar a impressão construída a partir da análise do PIB:

a) Metrópole: são os doze principais centros urbanos do país, subdivididos em grande metrópole nacional (São Paulo), metrópoles nacionais (Rio de Janeiro e Brasília) e metrópoles (Manaus, Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Curitiba, Goiânia e Porto Alegre);

b) Capital regional: são setenta centros urbanos com área de influência de âmbito regional, divididos nos estratos A (11 cidades, com medianas de 955 mil habitantes e 487 relacionamentos, composto pelas restantes capitais estaduais e Campinas), B (20 cidades, com medianas de 435 mil habitantes e 406 relacionamentos) e (39 cidades, com medianas de 250 mil habitantes e 162 relacionamentos);

c) Centro sub-regional: são 169 centros urbanos com atividades de gestão menos complexas, têm área de atuação mais reduzida, seus relacionamentos com centros externos à sua própria rede dão-se, em geral, apenas com as três metrópoles nacionais, divididos nos estratos A (85 cidades, com medianas de 95 mil habitantes e 112 relacionamentos) e (79 cidades, com medianas de 71 mil habitantes e 71 relacionamentos);

d) Centro de zona: são 556 cidades de menor porte e atuação restrita à sua área imediata, com funções elementares de gestão, divididos nos estratos A(192 cidades, com medianas de 45 mil habitantes e 49 relacionamentos) e (364 cidades, com medianas de 23 mil habitantes e 16 relacionamentos);

e) Centro local: as demais 4.473 cidades cuja centralidade e atuação não extrapolam os limites municipais, com população geralmente inferior a 10 mil habitantes.

Hierarquia das cidades brasileiras em 2007. Notem a concentração das ligações nas cidades de maior porte.

A simples apresentação da hierarquia da rede urbana brasileira, sem entrar nos complexos detalhes da pesquisa, confirma a leitura feita a partir da participação no PIB nacional: as cidades menores são pontos do território com plena autonomia jurídico-formal, mas com pequena autonomia real sobre as decisões mais importantes para o desenvolvimento da economia local e para a qualidade de vida de sua população.

Esta menor e menos significante inserção na divisão territorial do trabalho significa, para os capitalistas locais, menos dinheiro para investir, seja a partir dos cofres públicos, seja a partir da iniciativa privada; e menor, portanto, a capacidade destes capitalistas e gestores de, empurrados pelas lutas dos trabalhadores e movimentos sociais locais, sair dos círculos viciosos de hiperexploração e repressão associados aos regimes de mais-valia absoluta. Enquanto nas cidades maiores ainda é possível aos trabalhadores e movimentos sociais, apesar de tudo, acumular conquistas, exigir mais, ampliar pautas de reivindicações etc., nas pequenas e médias cidades brasileiras estas possibilidades são travadas pela absoluta impossibilidade dos capitalistas e gestores de ceder o que quer que seja. E é esta mesma incapacidade de ceder que os faz aferrar-se mais obstinadamente aos privilégios políticos, econômicos e sociais que detém. As condições de luta dos trabalhadores nestas cidades são, portanto, muito mais duras que aquelas vividas nas grandes cidades e metrópoles.

Conjunto habitacional construído com recursos do programa Minha Casa, Minha Vida em Várzea Grande (PI), município com 4.336 habitantes.

Por outro lado, esta inserção subalterna na rede urbana explica – em parte – porque em inúmeras cidades pequenas e médias são os movimentos sociais os verdadeiros promotores do desenvolvimento econômico. Numa situação de estagnação da produção econômica local (não são poucas as cidades pequenas cuja economia depende majoritariamente da soma dos recursos de aposentados e funcionários públicos municipais, dos fundos constitucionais de participação responsáveis pela distribuição das receitas tributárias e das transferências de renda aos mais pobres vindas do governo federal), os movimentos sociais são os responsáveis por alcançar, através de programas federais e estaduais, os recursos necessários para começar ou dar outro rumo à produção agrícola, ou ainda por trazer empresas do setor imobiliário interessadas em participar de programas habitacionais federais e estaduais, dinamizando o setor onde talvez ele sequer existisse além das formas artesanais tradicionais.

As afirmações até o momento, mesmo as mais fundamentadas, podem parecer simplistas. Tudo isto é, entretanto, síntese de incontáveis processos locais, e também uma generalização construída a partir da vivência empírica. É a tentativa de inserir problemas locais num contexto geral, e daí tentar encontrar algum sentido na algazarra das particularidades. Mas leitores saudavelmente céticos podem se perguntar: “é assim mesmo que a coisa funciona?” Uma tentativa de resposta surge a partir da experiência de lutas em dois municípios baianos: Camamu e Camaçari.

Notas

[1] Menor município brasileiro em população, Borá é, por isto mesmo, constante motivo de chacota na imprensa. As gritantes diferenças entre a vida nesta cidade e aquela vivida pelos produtores de mídia encastelados nas grandes cidades – e aqueles que imaginam ser seu público urbano – fazem da vida em Borá algo pitoresco, bom para chamar audiência nos programas de variedades. Para se ter uma ideia, até 2009 Borá tinha 22 ruas, todas asfaltadas, e 101 carros misturando-se às carroças. A delegacia, inaugurada em 1994, registrava, quando muito, vinte ocorrências por ano, e último homicídio registrado até 2009 havia acontecido sete anos antes, em 2002. Uma vez que as parteiras de Borá não conseguiram reproduzir sua tradição e o posto médico mais próximo é em Paraguaçu Paulista, a 18km, não se registra um só boraense no cartório local desde quase trinta anos atrás. Os dois times de futebol da cidade (Borá Futebol Clube e Borá Esporte Clube, ambos amadores) jogavam num campo sem arquibancada. A população tinha internet banda larga gratuita fornecida pela prefeitura, e uma horta comunitária fornecia gratuitamente verduras a todas as casas. Dos quinze estabelecimentos comerciais, três eram bares; o único restaurante vendia dez refeições diárias em tempos de movimento bom; e o cartório só abria quando alguém precisava. As duas vagas de estacionamento da rodoviária nunca haviam sido usadas, e não havia linhas diárias de ônibus para o município. O que para os urbanoides parece o paraíso na Terra pode ser, na verdade, do tempo que nunca passa, boa especialmente para quem quer passar breves períodos de descanso. Enquanto isso, e quem sabe felizmente, Serra da Saudade (MG), segundo menor município brasileiro (815 habitantes – dez a mais que Borá), permanece um ilustre desconhecido.

[2] “Origem e tendências da rede urbana brasileira: algumas notas”. Em: Trajetórias geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 93.

[3] A rede urbana. São Paulo: Ática, 1989, pp. 48-49.

[4] “O estudo da rede urbana: uma proposição metodológica”. Em: Estudos sobre a rede urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 26.

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