A história é um tecido contraditório e as suas vias são sinuosas, quando não mesmo labirínticas. Por João Bernardo
Mas quem foi Lucien Laurat?
Esse nome foi um dos muitos usados por Otto Maschl, nascido em 1898, militante do Partido Comunista austríaco e funcionário do Komintern, a Internacional Comunista. Em 1921-1923 foi ele quem se encarregou de facto das relações entre o Partido Comunista francês e o Partido Comunista alemão. De 1924 até 1927 foi professor de Economia em Moscovo, na Universidade Comunista das Minorias Nacionais Ocidentais. Nas polémicas travadas no movimento comunista dessa época ele situou-se na ala considerada de direita e esteve ligado pessoalmente a Brandler e a Thalheimer, dois antigos dirigentes do Partido Comunista alemão que haviam defendido a aproximação à social-democracia e criticado a tentativa de aliança com a extrema-direita radical, que acabaria por levar à catástrofe tanto os comunistas como a totalidade da classe trabalhadora alemã.
Abandonando Moscovo em 1927 e fixando-se no ano seguinte em Paris, Maschl, convertido definitivamente em Lucien Laurat, aderiu ao partido socialista (o nome oficial deste partido era Section Française de l’Internationale Ouvrière, SFIO) no início da década de 1930 e começou a leccionar na escola de quadros da Confédération Générale du Travail, a grande central sindical. No interior destas organizações ele pertencia a uma tendência posicionada à direita, que, embora sem romper com o marxismo, era declaradamente hostil à URSS. Com a aproximação da guerra, Laurat apoiou o secretário-geral da SFIO, Paul Faure, defensor dos acordos assinados com Hitler em Munique, para quem o pacifismo devia prevalecer sobre o antinazismo.
Depois da derrota francesa e da assinatura do armistício, com a maior parte do país ocupada pelas tropas do Terceiro Reich e com um governo fascista sob as ordens dos nazis, Lucien Laurat não aderiu à Resistência nem sequer se afastou da vida pública. Tal como outros membros da mesma corrente política, ele participou durante esse período em alguns jornais colaboracionistas destinados a um público operário, o que mostra que se podia primeiro ser um crítico lúcido do stalinismo e acabar depois sendo subsidiado pelo nacional-socialismo. E se tivesse sido ele o único!
Após a libertação da França Lucien Laurat esteve preso durante algumas semanas e foi excluído da SFIO. Mas eram numerosos os que se tinham comprometido muito mais profundamente na colaboração com o ocupante nazi e naquele meio Laurat contara só entre a arraia-miúda. Alguns anos depois foi reintegrado na SFIO, para abandonar definitivamente o partido quando este começou a procurar a aliança dos comunistas. Lucien Laurat morreu em 1973.
O livro de Laurat que aqui me ocupou, L’Économie Soviétique. Sa Dynamique, son Mécanisme, foi editado em Paris, em 1931, pela editora Valois, e também a este respeito há alguma coisa a dizer. Georges Valois, o proprietário da editora, nascera em 1878 com o nome de Alfred-Georges Gressent, mas foi como Georges Valois que se tornou conhecido. Ele encetara no anarquismo a sua vida política e fora secretário de L’Humanité Nouvelle, em cuja sala de redacção conhecera Sorel, nos últimos anos do século XIX.
Em 1906 Valois aderiu à Action Française, o partido da extrema-direita monárquica que constituiu em França a via obrigatória de passagem para o fascismo propriamente dito. Entre as figuras relevantes da Action Française era ele, pela origem e pelo passado político, quem podia manter relações mais estreitas, ou pelo menos mais sinceras, com o meio operário. Victor Serge descreveu-o cerca de 1910, dando réplica aos jovens anarquistas que lhe perturbavam os comícios e não hesitando em discutir com eles «a sua doutrina sindicalista-monárquica» e em evocar «Nietzsche, Georges Sorel, o “mito social”, as corporações das comunas da Idade Média, o sentimento nacional».
Entretanto Sorel encetara também a sua evolução em direcção ao fascismo, que haveria de arrastar tantos discípulos seus, sobretudo em Itália, onde os sindicalistas-revolucionários constituíram, juntamente com os futuristas e as antigas tropas de elite da guerra mundial, as três componentes originárias do movimento de Mussolini. Na convergência destes percursos, foi fundado em 1911 o Cercle Proudhon, Associação Proudhon, sob a tutela de Sorel e beneficiando do apoio prudente e um pouco distante de Charles Maurras, o chefe inamovível da Action Française. Estas eram as figuras tutelares, mas na prática o Cercle Proudhon era animado por Édouard Berth, um dos principais discípulos franceses de Sorel, e, do lado da Action Française, por Georges Valois. Na exacta ocasião em que Sorel se desiludia das possibilidades do sindicalismo revolucionário em França e em que Maurras receava o descontentamento que os ensaios de demagogia operária prosseguidos por Léon Daudet e por alguns outros membros da Action Française estavam a provocar entre os adeptos mais conservadores da organização, o Cercle Proudhon representou uma tentativa de criar um meio termo onde ambos os lados pudessem colaborar sem se comprometer demasiado. É sugestivo que para isto se tivesse evocado a memória de Proudhon, uma das figuras mais ambíguas do movimento operário, inspirador tanto de um ânimo libertário como de valores reaccionários. «[…] sem os judeus», escreveria trinta anos mais tarde o fascista Lucien Rebatet, um dos hitlerianos de Paris, «teríamos feito entre nós, e com o mínimo de estragos, essa revolução do socialismo autoritário que se tornou a necessidade do nosso século e de que os velhos doutrinadores franceses, como Proudhon, têm a honra de ter sido os precursores». Uma tese semelhante foi defendida por outro notável romancista fascista, Pierre Drieu la Rochelle. Aliás, desde a sua fundação a Action Française considerara Proudhon como um dos seus mestres, e Lukács mencionou o apreço que o conhecido jurista nazi Carl Schmitt tinha por Proudhon. O Cercle Proudhon pretendia-se simultaneamente revolucionário e contra-revolucionário, tal como o fascismo viria a proclamar-se alguns anos mais tarde. Durante algum tempo esta Associação serviu de lugar de encontro e debate para os sindicalistas antiliberais e os nacionalistas preocupados com a questão social, juntando uma ou duas dezenas de pessoas.
A experiência do Cercle Proudhon mostra que o quadro da Action Française se estava a tornar demasiado estreito para acolher a ampla digressão de Georges Valois entre o «mito social» e o «sentimento nacional», que Serge evocou a respeito dos seus comícios. Em Outubro de 1925 Valois rompeu com Maurras e, no mês seguinte, foi um dos primeiros a criar fora da Itália um movimento mussoliniano, cujo nome traduzia à letra o do modelo originário – Faisceau. Com a amplitude de espectro característica do fascismo genuíno, o Faisceau começou por atrair descontentes de ambos os lados, tanto gente que se havia afastado da Action Française como alguns dissidentes do Partido Comunista. Mas em breve esta convergência ficou frustrada na prática, e a organização extinguiu-se no início de 1928 devido aos desacordos internos e à falta de sustentação dos financiadores. Entretanto Valois tinha-se já distanciado da orientação proposta pelo Duce. «Ou nos enganamos muito», escrevera ele nos primeiros dias de 1928, «ou sob a pressão das forças financeiras estrangeiras o fascismo italiano está a evoluir no sentido reaccionário».
Depois de ter percorrido todas as etapas que podiam levar de uma certa extrema-esquerda até à direita mais extrema, Valois tornou-se, sobretudo a partir de 1930, um crítico acerbo do regime italiano e dos outros tipos de fascismo. Ele procurou encontrar então um novo lugar na esquerda. Não o conseguiu através de uma sua efémera criação, o Partido Republicano Sindicalista, e também não eram os comunistas quem o acolheria, pois, embora fizesse a apologia dos planos quinquenais, ele criticava ao stalinismo a incapacidade de conjugar a elaboração das directivas económicas com a actividade de base dos trabalhadores. Foi exactamente nesta altura que ele publicou a obra de Lucien Laurat L’Économie Soviétique. Sa Dynamique, son Mécanisme. Também não era a ala moderada do socialismo que podia atrair Valois, pois decerto se afigurava sórdida a alguém que classificara o plano de acção elaborado pela CGT em 1934 como um «plano operário em que a classe operária não desempenha qualquer papel». Patrocinado por Marceau Pivert, a principal figura da tendência esquerdista do socialismo francês, Valois pediu a integração na SFIO em 1935, mas viu-se recusado pela direcção do partido. Na mesma ocasião o Comité de Vigilância Antifascista rejeitou igualmente a sua candidatura.
Georges Valois ficou suspenso no ar, nesta tentativa de perfazer em sentido inverso o seu caminho anterior, e assim o foi encontrar a ocupação alemã da França. Preso pela polícia do governo colaboracionista francês, mais tarde preso pelos nazis, ele morreu num campo de concentração, tal como sucedeu a um bom número de partidários, ou antigos partidários, do fascismo populista.
Espero que esta série de artigos tenha deixado nos leitores uma viva sensação de desconforto. Foi para isso que a escrevi. A história é um tecido contraditório e as suas vias são sinuosas, quando não mesmo labirínticas. É que a nossa prática, a de todos nós, aqui, hoje, é igualmente contraditória e fragmentada. Lançamo-nos nas lutas sem garantia, porque mergulhamos no futuro conhecendo apenas − quando conhecemos! − o passado. Quem pretenda ter uma imagem gloriosa e impoluta dos heróis da sua predilecção, aconselho-o a não ler nada. E quem não queira correr riscos, é melhor não fazer nada. Ou então, o que vem a dar no mesmo, fazer o que se faz em todas as capelas e em todos os grupúsculos, gritar diante do espelho.
Bibliografia e referências
Os dados biográficos de Lucien Laurat encontram-se em J.-L. Panné, «Laurat Lucien», em Jean Maitron e Claude Pennetier (orgs.) Dictionnaire Biographique du Mouvement Ouvrier Français, 4ª Parte: 1914-1939. De la Première à la Seconde Guerre Mondiale, vol. XXXIII, Paris: Les Éditions Ouvrières, 1988, págs. 337-338.
Acerca de Georges Valois ver sobretudo Yves Guchet, Georges Valois. L’Action Française, le Faisceau, la République Syndicale, Paris: L’Harmattan, 2001 e, do mesmo autor, «Georges Valois ou l’Illusion Fasciste», Revue Française de Science Politique, XV, 1965, págs. 1111 e segs. O leitor interessado em mais detalhes acerca da vida e das ideias de Valois pode consultar igualmente: Pascal Ory, Les Collaborateurs, 1940-1945, Paris: Seuil, 1976, pág. 269; Enzo Santarelli, Storia del Fascismo, Roma: Editori Riuniti, 1981, vol. I, pág. 491 n. 1; Zeev Sternhell, La Droite Révolutionnaire, 1885-1914. Les Origines Françaises du Fascisme, Paris: Seuil, 1978, págs. 365, 384, 399; Zeev Sternhell, Mario Sznajder e Maia Asheri, The Birth of Fascist Ideology. From Cultural Rebellion to Political Revolution, Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 1994, págs. 93-94, 96; Eugen Weber, Varieties of Fascism. Doctrines of Revolution in the Twentieth Century, Princeton: D. van Nostrand, 1964, págs. 132-133.
A passagem de Victor Serge acerca dos comícios de Georges Valois encontra-se nas Mémoires d’un Révolutionnaire, 1905-1941, em Jean Rière e Jil Silberstein (orgs.) Victor Serge. Mémoires d’un Révolutionnaire et autres Écrits Politiques. 1908-1947, Paris: Robert Laffont, 2001, pág. 526.
Acerca do Cercle Proudhon pode ler-se: Yves Guchet, Georges Valois. L’Action Française, le Faisceau, la République Syndicale, op. cit., págs. 99-102; Daniel Guérin, Sur le Fascisme, Paris: François Maspero, 1969, vol. II: Fascisme et Grand Capital, págs. 161-162; Zeev Sternhell, La Droite Révolutionnaire, 1885-1914. Les Origines Françaises du Fascisme, op. cit., págs. 372, 384, 391-392; Zeev Sternhell et al., The Birth of Fascist Ideology. From Cultural Rebellion to Political Revolution, op. cit., págs. 87-88, 124-127; Eugen Weber, Varieties of Fascism. Doctrines of Revolution in the Twentieth Century, op. cit., págs. 131-132.
A passagem de Lucien Rebatet em homenagem a Proudhon encontra-se no seu romance Les Décombres, Paris: Denoël, 1942, pág. 565. A opinião de Drieu la Rochelle acerca de Proudhon lê-se em Paul Sérant, Le Romantisme Fasciste. Étude sur l’Oeuvre Politique de quelques Écrivains Français, Paris: Fasquelle, 1959, pág. 69. São Zeev Sternhell et al. em The Birth of Fascist Ideology. From Cultural Rebellion to Political Revolution, op. cit., pág. 124 quem afirma que Proudhon fora um dos santos patronos da Action Française desde a fundação deste partido de extrema-direita. Acerca de Carl Schmitt e Proudhon ver Georg Lukács, The Destruction of Reason, Londres: The Merlin Press, 1980, pág. 653.
A frase de crítica de Valois ao regime de Mussolini encontra-se citada em Yves Guchet, Georges Valois. L’Action Française, le Faisceau, la République Syndicale, op. cit., pág. 256. A crítica de Valois ao plano de 1934 da CGT lê-se em id., ibid., pág. 9.
Há uma entrevista que Walter Benjamin fez com Georges Valois, chamada “para a Ditadura” [G.S., IV, pp. 489]. Lá há um comentário de Georges Sorel, que Walter Benjamin na juventude gostava (como aparece no texto “para uma crítica da violência”, de inspiração soreliana), mas que começa a identificar certa matriz com esta tendência.
Ele identifica as questões de posicionamentos pró-facista que no caso francês vinham à esquerda. Estou traduzindo, mas meu alemão está pífio ultimamente.
Por que alguém da extrema esquerda acaba virando fascista? Há um contexto que explique?
Só posso dizer que achei fantástico esses 4 textos, pena que não tenha leitura para contribuir na discussão.
Vou dar um pitaco na questão levantada pela Maria.
Hoje temos uma visão histórica do fascismo. Como o João Bernardo apontou, conhecemos o passado.
Sabe-se lá quantos extremo-esquerdistas hoje não estão virando, ou já não viraram, outra coisa que só no futuro terá nome e nos horrorizará?
Ótimo artigo!