A repressão e as tentativas de cooptação e desmobilização popular a serviço da expulsão das populações pobres das áreas centrais das grandes cidades são um exemplo cabal das violações de direitos humanos e sociais fundamentais. Por Marcelo Lopes de Souza [*]
Não pretendo, com o título deste artigo, (ser mais um a) banalizar e abusar da fórmula lefebvriana do “direito à cidade”. Na verdade, diante de interpretações cada vez mais “aguadas” dessa expressão – convertida em um simpático slogan, à disposição de interesses tão diferentes quanto os de movimentos sociais emancipatórios, intelectuais de esquerda com e sem aspas, ONGs, instituições governamentais e organismos internacionais –, cabe, isso sim, clamar por um mínimo de clareza político-estratégica, ao mesmo tempo em que cumpre relembrar: para o marxista heterodoxo Henri Lefebvre, o “direito à cidade” não se reduzia a simples conquistas materiais específicas (mais e melhor infraestrutura técnica e social, moradias populares, etc.) no interior da sociedade capitalista. O “direito à cidade” corresponde ao direito de fruição plena e igualitária dos recursos acumulados e concentrados nas cidades, o que só seria possível em outra sociedade. [1]
Complementarmente, vale a pena lembrar as contribuições do neoanarquista Murray Bookchin a propósito do tema da “urbanização sem cidades”: para ele, cada vez mais temos uma urbanização que, aparentemente de maneira paradoxal, se faz acompanhar pela dissolução das cidades em um sentido profundo, sociopolítico. [2] O que se tem, cada vez mais, são entidades espaciais enormes, mas crescentemente desprovidas de verdadeira vida pública. Há, em meio a uma espécie de antítese cada vez mais nítida entre urbanização e “cidadização” (“citification”: neologismo que, em Bookchin, significa a formação de cidades autênticas, com uma vida pública vibrante), uma lição fundamental a ser extraída: sem a superação do capitalismo e de sua espacialidade, o que vulgarmente se vai acomodando por trás da fórmula do “direito à cidade” não passa e não passará jamais de migalhas ou magras conquistas, por mais importantes que possam ser para quem padece, nas favelas, loteamentos irregulares e outros espaços segregados, com a falta de saneamento básico, com riscos ambientais elevados, com doenças e com a ausência de padrões mínimos de conforto.
No entanto, a essencialmente geográfica questão da localização (na sua relação com a acessibilidade [3]) está por trás de atritos que se vêm avolumando nos últimos anos. Há um “direito” específico (não em sentido imediatamente jurídico, mas sim em sentido moral), de ordem “tática”, que deveria ser compreendido nos marcos de uma luta mais ampla, “estratégica”: o direito de a população pobre permanecer nas áreas centrais das nossas cidades. Esse “direito moral”, os esquemas e programas de “regularização fundiária” vêm tentando, para o bem e para o mal, converter em um direito legal assegurado (segurança jurídica da posse). No caso das favelas, avançou-se bastante no terreno legal, desde os anos 80; em se tratando de ocupações de sem-teto, e em especial de ocupações de prédios, porém, quase tudo ainda resta por fazer – inclusive no que se refere ao desafio de, ao “regularizar”, não (re)inscrever, pura e simplesmente, um determinado espaço plenamente no mundo da mercadoria, adicionalmente favorecendo a destruição de formas alternativas de sociabilidade (que florescem em várias ocupações) e a cooptação dos moradores. [4]
As favelas têm sido, há mais de um século, precursoras de uma luta pelo direito de residir nas áreas centrais. Se tomarmos o caso emblemático do Rio de Janeiro, verificaremos que essa luta já se inicia com a virada do século XIX para o século XX, assumindo contornos particularmente dramáticos com a erradicação, na esteira da reforma urbanística do prefeito Pereira Passos (1902-1906), de muitos cortiços e casas de cômodos: precisamente essa erradicação em massa, verdadeira “limpeza étnica” que mostra bem o espírito antipopular do que foi a República Velha, alimentou a suburbanização (a rigor, periferização) e, também, a favelização dos pobres.
Contudo, as favelas, espaços de resistência tão importantes até poucas décadas atrás – os quais, a partir da mobilização da Favela de Brás de Pina (em 1965), no Rio de Janeiro, desenvolveram uma tenaz luta contra as remoções promovidas durante o Regime Militar, que foi encampada pela antiga Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG) –, foram, aos poucos, tombando vítimas da cooptação, da despolitização e de seus múltiplos agentes: políticos clientelistas, traficantes de drogas, igrejas neopentecostais… A atuação de uma pletora de ONGs (animadas por indivíduos de classe média), a partir sobretudo dos anos 90, longe de reverter o quadro, talvez até o tenha, em parte, agravado, ao se tentar impulsionar uma “inclusão social” às custas da verdadeira mobilização popular e da conscientização crítica.
O fato é que, nas áreas centrais, as favelas foram ocupar terrenos que poderiam ser qualificados de “terras marginais”, historicamente desprezadas pelos mais aquinhoados (encostas de morros, beira de rios e canais). [5] Hoje em dia, o movimento dos sem-teto, que tenta resgatar a bandeira da reforma urbana do “tecnocratismo de esquerda” que a arrebatou na década de 90, [6] ocupa, muitas vezes, terrenos periféricos (como é o caso em São Paulo, em Salvador, em Belo Horizonte e mesmo no Rio de Janeiro), mas também territorializa, outras tantas vezes, prédios “abandonados” e ociosos (a exemplo de São Paulo, Porto Alegre e, principalmente, do Rio de Janeiro).
Já quase não há terrenos vazios em áreas centrais, passíveis de ocupação. As favelas localizadas nos arredores do CBD (Central Business District), isto é, da área econômica central (nos casos em que ainda há uma: essa geometria veio se tornando cada vez mais relativa e complexa com o passar das décadas), são, via de regra, muito antigas e consolidadas. São sobreviventes das ondas de remoções e despejos do passado, em particular daquelas dos anos 60 e 70. Mas, por força de vários fatores (falências fraudulentas, dinâmicas internas ao próprio aparelho de Estado…), há uma quantidade apreciável de domicílios vagos no Brasil, muitos assim deixados especulativos ou em decorrência de processos que, mesmo não sendo sempre intencionais, geram um “passivo social e espacial”. O contraste desse imenso estoque de domicílios vagos com as estimativas referentes ao déficit habitacional brasileiro é esclarecedor acerca da motivação básica para o surgimento e expansão do movimento dos sem-teto no Brasil. [7] No que se refere, especificamente, à luta para permanecer nas áreas centrais, cabe ressaltar que, para os moradores das ocupações − que são, na sua esmagadora maioria, trabalhadores informais, muitos deles ambulantes −, morar nas proximidades do CBD significa residir perto dos locais em que comercializam seus produtos, sem sofrer excessivamente com custos de transporte. Algo fundamental, portanto − isso sem falar na infraestrutura técnica e social, há muito consolidada nas áreas centrais das cidades.
Por outro lado, o capital vê na “revitalização” de áreas centrais, justamente, um riquíssimo veio a ser explorado. Já nos anos 80 David Harvey, desdobrando um insight sobre a importância crescente da produção do espaço (e não somente no espaço) para acumulação capitalista que originalmente remete a Henri Lefebvre, havia discutido a relevância do “circuito secundário” da acumulação de capital. [8] Este circuito é aquele que se vincula não à produção de bens móveis, mas sim à produção de bens imóveis, isto é, do próprio ambiente construído. O capital imobiliário (fração do capital um tanto híbrida, que surge da confluência de outras frações) tem, nas últimas décadas, assumido um significado crescente, na interface com o capital financeiro – às vezes com consequências globalmente catastróficas, como se pode ver pelo papel da bolha das “hipotecas podres” na crise mundial que eclodiu em 2008. Pelo mundo afora, a contribuição da construção civil na formação da taxa de investimento foi-se tornando cada vez mais expressiva, nas últimas décadas. E em todo o mundo – das Docklands, em Londres, a Puerto Madero, em Buenos Aires –, “revitalizar” espaços obsolescentes (presumidamente “mortos”, pelo que se vê com o ostensivo uso ideológico de um termo como “revitalização”) tem sido um dos expedientes principais na criação de novas “frentes pioneiras urbanas” para o capital.
No Rio de Janeiro, a disputa entre as ocupações de sem-teto e os interesses ligados à “revitalização” da Zona Portuária e do Centro – a qual gravita ao redor do projeto do “Porto Maravilha”, [9] em que, com o respaldo da política repressiva batizada pela Prefeitura de “Choque de Ordem”, se tenta promover uma “gentrificação” [10] em larga escala – vai ficando mais e mais evidente e tensa. Diversos pesquisadores do Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (NuPeD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) têm desenvolvido estudos que mostram essas tensões. [11]
Em São Paulo tem-se um processo análogo, que gira em torno do projeto da “Nova Luz”, de revitalização da “Cracolândia” e adjacências. [12] E, também analogamente, está-se diante, também em São Paulo, de um “regime urbano” [13] caracterizável como conservador e repressivo, identificado com o “empresarialismo urbano” e não com a reforma urbana (nem mesmo na sua versão “domesticada”, “tecnocrática de esquerda”, levada à caricatura pelo Ministério das Cidades do governo Lula).
Em meio a uma “democracia” representativa ritualmente celebrada por meio de eleições regulares, na qual os direitos políticos formais são básica e aparentemente respeitados, direitos humanos e sociais fundamentais são, entretanto, sistematicamente violados. Atualmente, a repressão e as tentativas de cooptação e desmobilização popular a serviço da expulsão das populações pobres das áreas centrais das grandes cidades são um exemplo cabal dessas violações de direitos. Considerando a disparidade de meios econômicos, propagandísticos e de violência à disposição dos contendores, trata-se de uma luta tremendamente desigual. Mas, contra a força dos argumentos, nem sempre o “argumento” da força prospera indefinidamente. Vale lembrar do lema aprovado pela Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca, no México, em 2007: “Nosotros no podemos con sus armas. Ustedes no pueden con nuestras ideas.”
Agradecimento
Agradeço a Daniela Batista Lima pelo levantamento dos dados atualizados sobre déficit habitacional e domicílios vagos no Brasil que constam da nota 7.
Notas
[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[1] Focalizei essas questões em “Which right to which city? In defence of political-strategic clarity”. Interface: a journal for and about social movements, 2(1), pp. 315-333. Disponibilizado na Internet (http://interface-articles.googlegroups.com/web/3Souza.pdf) em 27/05/2010.
[2] Ver, de Murray Bookchin, Urbanization without Cities. The Rise and the Decline of Citizenship. Montreal e Cheektowaga: Black Rose Books, 1992.
[3] O tema da acessibilidade foi interessantemente trabalhado por Kevin Lynch em seu admirável livro Good City Form (Cambridge [MA], The MIT Press, 1994 [1981]). (Há uma tradução para o português, intitulada A boa forma da cidade, publicada em 2007 pelas Edições 70, de Lisboa.)
[4] Esse é o sentido, portanto, da ressalva que fiz antes: “para o bem e para o mal”. Sem dúvida que a segurança jurídica da posse é uma demanda tradicional e legítima das populações dos espaços segregados que, por sua situação ilegal ou irregular, sofre toda sorte de discriminações, intimidações e violências. A questão é que a regularização fundiária também se presta a uma facilitação da (re)inserção de espaços no circuito formal do mundo da mercadoria. E mais: em se tratando, sobretudo, de ocupações de sem-teto, que muitas vezes têm sido interessantes ambientes de experimentação de formas de organização e socialização alternativas (em certos casos chegando até mesmo à autogestão e formas bastante “horizontais” de organização política), um esquema de regularização fundiária pode, dependendo de sua natureza, desestruturar toda uma vida de relações e prejudicar certas iniciativas e atividades dos moradores. Valores e hábitos cultivados com dificuldade, como assembleias regulares, compartilhamento de responsabilidades, cooperação sistemática, rotatividade de tarefas, etc. podem vir a ser solapados, sendo substituídos completamente ou quase completamente pelo individualismo e pelo privatismo.
[5] A expressão “terras marginais” lembra a teoria da renda da terra, sistematizada por Ricardo e aprimorada por Marx. No entanto, há objeções bastante razoáveis à transposição da reflexão marxiana (ou ricardiana) para o espaço urbano, objeções que, em larga medida, compartilho (ver, por exemplo, a tese de doutorado de Csaba Deák, Rent Theory and the Price of Urban Land. Spatial Organization in a Capitalist Economy, de 1985 [http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/CD/3publ/85r-thry/CD85rent.pdf]). Utilizo aqui aquela expressão, por conseguinte, em um sentido mais livre, sem que o leitor ou a leitora deva pressupor que estou querendo forçar uma analogia.
[6] Vide, sobre esse assunto, o meu livro A prisão e a ágora. Reflexões sobre a democratização do planejamento e da gestão das cidades (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2006).
[7] Segundo estimativas da Fundação João Pinheiro (Déficit habitacional no Brasil – Municípios selecionados e microrregiões geográficas, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 2005, 2.ª ed.), o déficit habitacional brasileiro já montava, em 2000, a 7,2 milhões de domicílios. Contudo, segundo relatório de julho de 2010 do Ministério das Cidades, baseado em levantamentos da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional no Brasil estimado para 2008 teria baixado para cerca de 5,6 milhões de domicílios, dos quais 83% estariam localizados nas áreas urbanas (http://www.cidades.gov.br/noticias/deficit-habitacional-brasileiro-e-de-5-6-milhoes/). (Para 2007, a Fundação João Pinheiro, em estudo com data de junho de 2009, havia estimado o déficit habitacional em aproximadamente 6,3 milhões de domicílios, dos quais 82,6% localizados nas áreas urbanas [http://www.fjp.gov.br/index.php/servicos/81-servicos-cei/70-deficit-habitacional-no-brasil].) Os números da Fundação João Pinheiro sobre o déficit habitacional brasileiro me parecem conservadores; mas, seja lá como for, a ordem de grandeza dos números referentes ao estoque de domicílios é a mesma, embora os valores sejam um pouco mais elevados. Segundo dados divulgados pelo Ministério das Cidades, os domicílios vagos em condições de serem ocupados e em construção, em todo o Brasil, correspondiam, em 2008, a 7,2 milhões de imóveis, dos quais 5,2 localizados em áreas urbanas (vide “link” supracitado); e conforme a Fundação João Pinheiro, em todo o Brasil seriam cerca de 7,3 milhões de imóveis não ocupados, dos quais aproximadamente 5,4 milhões localizados em áreas urbanas; desse total, 6,2 milhões estariam em condições de serem ocupados – o restante estaria em construção ou em ruínas, este último caso correspondendo a uma minoria de cerca de 300 mil unidades (vide “link” supracitado).
[8] Ver, de Harvey, “The urban process under capitalism: A framework for Analysis” (incluído em The Urbanization of Capital, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1985). De Lefebvre, vale a pena começar por A revolução urbana (a edição que consultei é espanhola: La revolución urbana, Madrid, Alianza Editorial, 1983 [1970], 4.ª ed.; há uma edição brasileira, publicada em Belo Horizonte pela Editora UFMG, em 1999) e prosseguir com A produção do espaço (La production de l’espace, Paris, Anthropos, 1981 [1974]).
[9] O “site” oficial do projeto é: http://www.portomaravilhario.com.br/
[10] “Gentrificação” é um horrível termo técnico, aportuguesamento canhestro do inglês “gentrification”, ou nobilitação, enobrecimento. Na literatura especializada, trata-se do processo, menos ou mais violento, menos ou mais gradual, de substituição da população pobre por atividades econômicas de alto status (shopping centres, prédios de escritórios, etc.) e residências para as camadas mais privilegiadas.
[11] De maneira às vezes mais direta, às vezes mais indireta, é o caso da tese de doutorado de Tatiana Tramontani Ramos (em andamento) e das dissertações de mestrado de Eduardo Tomazine Teixeira (defendida em 2009), Matheus da Silveira Grandi (defendida em 2010), Rafael Gonçalves de Almeida (em andamento), Marianna Fernandes Moreira (em andamento) e Amanda Cavaliere Lima (em andamento).
[12] O “site” oficial do projeto é: http://www.novaluzsp.com.br/
[13] O conceito de “regime urbano” (urban regime) foi proposto por Clarence Stone (“Urban regimes and the capacity to govern: A political economy approach”, Journal of Urban Affairs, 15[1], 1993, pp. 1-28) para caracterizar as combinações de formas institucionais e interesses econômicos (especialmente interesses e pressões de classe) que se expressam na qualidade de estilos de gestão específicos: uns mais abertos à pressão dos trabalhadores e permeáveis à participação popular (com ou sem aspas), outros mais repressivos e refratários a uma agenda “progressista”, e por aí vai. Mesmo que a classificação de Stone não deva ser transposta irrefletidamente para uma realidade bem diferente da estadunidense, como a brasileira, a ideia do conceito é útil em si mesma.
Ilustrações: esculturas de George Segal.