Por NEPAC-Unicamp [*]

São Paulo, madrugada do dia 6 para o dia 7 de novembro de 2011. Organizações do movimento de moradia realizam dez ocupações simultâneas de imóveis vazios no centro de São Paulo, em denúncia à ausência de política habitacional que contemple famílias de baixa renda na capital, e à discrepância entre o alarmante déficit habitacional e os prédios vazios na região central. Menos de uma semana depois, uma das ocupações sofre reintegração de posse. Cerca de um mês depois, outra. Em fevereiro de 2012, uma terceira. Ouvimos de uma liderança: “Estão caindo, uma a uma [as ocupações]”.

São José dos Campos, 22 de janeiro deste ano de 2012. Assistimos ao que vem sendo considerada por alguns como a maior reintegração de posse da história do estado de São Paulo. O evento em questão ocorreu no terreno conhecido como Pinheirinho [1], que começou a ser ocupado por famílias de baixa renda no ano de 2003. Em uma megaoperação, que contou com um efetivo de 2 mil homens segundo informações do próprio comando da Polícia Militar, mais de 6 mil pessoas foram brutalmente desalojadas de suas residências e conduzidas para um “acampamento” montado pela Prefeitura Municipal. A operação terminou com um saldo de vários moradores feridos, cerca de 30 presos, sete pessoas desaparecidas e há denúncias (não confirmadas oficialmente) de que houve mortos na ação policial [2]. A julgar pela truculência da tropa de choque, que pôde ser testemunhada por milhares de pessoas através de vídeos divulgados na internet [3], não seria nenhuma surpresa se, de fato, vier a ser confirmada a existência de vítimas fatais na desocupação do Pinheirinho.

Estes eventos simbolizam uma das maiores contradições da sociedade brasileira na atualidade. As decisões judiciais que determinaram os referidos processos de reintegração de posse conferem um ar de legalidade às ações policiais contra os ocupantes daqueles imóveis/terrenos: recorre-se à defesa do Direito e da legalidade para justificar as ações repressivas da polícia e a devolução do bem ao seu proprietário. Contudo, a legislação urbana em vigor no Brasil contradiz este argumento e demonstra que, nesses casos, quem está agindo “fora da lei” é o próprio Estado, por mais paradoxal que isso possa parecer. Vejamos as razões disso.

A Constituição Federal de 1988, em seu Capítulo sobre a Política Urbana (Arts. 182 e 183), assim como o Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/2001), garante a todos os brasileiros o direito de morar dignamente, afirmando que o direito de propriedade só tem validade jurídica quando esta cumpre com sua função social. Com efeito, este arcabouço legislativo não foi uma dádiva, mas resulta de um processo histórico de lutas e embates sociais conduzidos pelas organizações dos movimentos populares urbanos há pelo menos quatro décadas. Tais movimentos surgiram com o objetivo de questionar o excludente e perverso modelo de crescimento urbano no Brasil, cujo ritmo foi historicamente ditado pelos interesses empresariais imobiliários. A concepção liberal que prevaleceu na conduta dos agentes públicos e privados envolvidos com a produção da cidade, na qual o direito de propriedade não encontra nenhum tipo de restrição, estimulou em grande medida a prática da especulação imobiliária, que consiste basicamente na retenção de terrenos e imóveis em razão da expectativa de sua valorização futura. Esse modelo de crescimento urbano baseado na lei do mercado produziu uma situação caótica do ponto de vista socioespacial: enquanto um enorme contingente populacional se aglomerava nas periferias das cidades, inúmeros terrenos e imóveis vazios e/ou ociosos conformavam a paisagem urbana – muitos deles, inclusive, nas áreas centrais. Os movimentos sociais urbanos brasileiros, articulados a outros segmentos do campo das esquerdas (sindicatos, intelectuais, ONGs, partidos), foram capazes de representar um contraponto a esse modelo e lutar pela criação de instrumentos jurídicos destinados a reverter essa lógica perversa de expansão urbana.

Essa ampla mobilização e articulação social resultou na conformação de um projeto político consolidado na ideia de “Reforma Urbana”, cuja proposta central consiste na desconcentração da estrutura fundiária e na democratização da gestão da cidade. Uma grande vitória desse movimento foi a inclusão do já mencionado Capítulo sobre a Política Urbana na Constituição “Cidadã” de 1988, que consagrou o princípio da função social da cidade e da propriedade. Este princípio jurídico assegura que os interesses econômicos do proprietário (de valorização do terreno) não podem se sobrepor ao direito humano de moradia. Na prática, esse dispositivo torna a especulação imobiliária ilegal, pois subordina o interesse individual do proprietário ao interesse da coletividade, o que veio a ser definitivamente regulamentado no ano de 2001 com a aprovação do Estatuto da Cidade. Isso significa que, a rigor, as decisões judiciais que autorizaram as reintegrações de posse do Pinheirinho e de vários prédios ocupados no centro de São Paulo recentemente foram tomadas com base em uma concepção jurídica incoerente com a legislação atual. E sabemos, claro, que isso não acontece por acaso.

A desigualdade social existente numa sociedade capitalista como a em que vivemos cria uma tensão permanente entre o Direito e o dinheiro, entre a democracia e o mercado. O poder econômico transmuta-se em poder político e, portanto, em maior capacidade de influenciar as decisões tomadas no âmbito do aparelho de Estado. Além disso, a própria cultura jurídica predominante em nossa e em muitas outras sociedades dificulta a aplicação de dispositivos jurídicos e institucionais que interfiram no direito de propriedade. Como explica o eminente jurista Miguel Baldez, a negação do direito de moradia equivale a negar o direito fundamental à própria vida, mas vê-se que a ampla maioria do Poder Judiciário está profunda e historicamente comprometida com os preceitos clássicos do pensamento liberal [4], que garantem precedência inconteste ao direito de propriedade.

Para evitar leituras simplistas e conclusões precipitadas, recordemos que a atuação do Estado não ocorre apenas nesta perspectiva. Em seu interior, existem conflitos que evidenciam os diferentes projetos políticos e ideológicos existentes na sociedade. Em artigo recente sobre o massacre do Pinheirinho, o qual qualificou como “uma das maiores agressões aos Direitos Humanos da história recente em nosso país”, outro distinto jurista brasileiro, Jorge Luiz Souto Maior, traz exemplos de decisões judiciais que evitaram despejos e reintegrações de posse com base no princípio jurídico da função social da propriedade em detrimento do direito individual do proprietário [5]. Inúmeros casos de decisões similares a estas podem ser encontradas na coletânea “Questões agrárias: julgados comentados e pareceres” [6], organizada por diversos juristas que também interpretam a lei na perspectiva do Estado de Direito Social, cuja obrigação consiste exatamente em garantir a aplicação concreta dos direitos sociais constitucionalmente estabelecidos, como é o caso do direito à moradia no Brasil.

Em tempo: não se trata de reduzir tudo a uma questão jurídica. Afinal, sabemos que este debate gira fundamentalmente em torno do terreno político-ideológico. Mas o argumento esboçado neste texto tem por objetivo ressaltar que a luta pela cidadania e pelo avanço da democracia em nossa sociedade passa inclusive pela dimensão jurídico-legal. Ademais, olhar a questão a partir desta perspectiva significa valorizar as conquistas históricas do Movimento pela Reforma Urbana no Brasil, e compreender, sobretudo, quais são os instrumentos disponíveis no presente contexto histórico que permitem conduzir as lutas sociais no plano imediato. Se rigorosamente implementada, nossa legislação urbana tocaria de forma profunda no coração do circuito de acumulação patrimonialista – um dos mais rentáveis e politicamente consolidados no Brasil –, o que afetaria diretamente os interesses econômico-financeiros de grupos poderosos que detêm sólidas relações com o sistema político institucional do país.

Mas a implementação dos direitos sociais, em qualquer sociedade que seja, não é uma questão jurídica, mas sim política; a sua aplicação efetiva depende, sobretudo, da capacidade de mobilização e pressão das classes populares. Por isso, a existência de um arcabouço jurídico e institucional avançado é um fator necessário, mas não suficiente para a concretização de um processo mais radical de transformação social e aprofundamento democrático. As atrocidades que vem sendo cometidas por setores do Estado brasileiro para com a população que, de forma legítima, ocupa terrenos e imóveis ociosos para garantir o seu direito constitucional à moradia e seu direito fundamental à vida demonstram que ainda há um longo caminho a ser percorrido. O massacre do Pinheirinho e as incessantes reintegrações de posse em São Paulo (e também em várias outras cidades do país) conformam essa grande contradição da sociedade brasileira atual: se, por uma questão legal, o direito de propriedade só é legítimo quando esta cumpre com sua função social, os verdadeiros defensores da lei são os “invasores”, e seu transgressor, o próprio Estado.

Notas
[*] O Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (NEPAC) foi criado em 2008 e é coordenado pela Prof.ª Dr.ª Luciana Tatagiba, do Departamento de Ciência Política da UNICAMP. Maiores informações sobre o Núcleo podem ser acessadas no Diretório de Grupos de pesquisa do CNPQ.
[1] O pesquisador Inácio Dias de Andrade pesquisou sobre o Pinheirinho e escreveu o seguinte artigo após a desocupação, cuja leitura recomendamos.
[2] http://g1.globo.com/videos/sao-paulo/v/desocupacao-no-bairro-pinheirinho-termina-com-30-presos-em-sao-jose-dos-campos/1780705/
[3] http://www.youtube.com/watch?v=NBjjtc9BXXY; http://www.youtube.com/watch?v=wpmeaNLfgbY
[4] Miguel Lanzellotti Baldez, “A luta pela terra urbana”. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz e CARDOSO, Adauto Lucio (Orgs.) Reforma urbana e gestão democrática. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
[5] Jorge Luiz Souto Maior, “Direito de propriedade deve atender à função social”.
[6] Questões agrárias: julgados comentados e pareceres. São Paulo: Método, 2002.

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