Por João Valente Aguiar

 

Leia aqui a segunda parte deste artigo

1.

Muita da discussão que tem sido desenvolvida em Portugal, e à esquerda, a propósito do euro e da actual crise económica e financeira esbarra constantemente na temática do Estado, das nações e da soberania. Nada de novo, a não ser o facto de que até há cerca de dois-três anos atrás a abordagem destas questões era um tanto ou quanto sub-reptícia e menos presente nos discursos regulares da esquerda parlamentar. Não que não existisse nacionalismo nesses discursos. Mas as críticas que a esquerda parlamentar desenvolvia eram dirigidas contra os governos e, em termos quantitativos, os discursos em torno da “salvação nacional” eram menos frequentes. Ainda hoje a esquerda portuguesa se foca na crítica aos governos, mas a esta vertente, que o marxismo ortodoxo chamaria de “reformismo”, somou-se o discurso em defesa do “interesse nacional”, o que comporta riscos acrescidos como procurarei apresentar na segunda parte deste artigo. Nesta primeira parte vou focar-me no Estado, deixando a Nação para a próxima. Apesar de um não existir sem o outro, tentarei esboçar os contornos de cada um.

Sobre este assunto podemos começar por duas dimensões. Por um lado, toda a concentração de análises políticas numa pequena parte da estrutura política e administrativa do Estado (o governo) pode perfeitamente deslizar para o refúgio na nação (a sua expressão ideológica). Esse será, como disse, o tópico a desenvolver na próxima parte. Por outro lado, a crítica centrada quase exclusivamente no governo representa a mais linear e simplista formulação cultural e ideológica da teoria política liberal. Ou seja, a política nas sociedades capitalistas seria o resultado consciente da acção individual livre dos agentes políticos governativos. Por conseguinte, diz-nos a maioria da esquerda que bastaria mudar as pessoas e os partidos no governo para que as políticas mudassem radicalmente. Se isto nunca foi verdade num regime democrático, é-o ainda menos em tempos de uma economia capitalista globalmente transnacionalizada. A ignorância chega a ser tal que nem um aspecto básico como a distinção entre governo e Estado é compreendida pela esmagadora maioria das pessoas e das organizações (que se consideram) de esquerda. Por isso importa levantar alguns apontamentos sobre o que é o Estado.

2.

O Estado é, acima de tudo, uma estrutura que se relaciona com a tomada de decisões sobre o conjunto da sociedade dentro de determinadas fronteiras administrativas. Os princípios organizativos da estrutura estatal presidem a uma tomada de decisões no sentido de:
1) Favorecer as condições de reprodução do capitalismo. Por isso as políticas que os governos aplicam (o que é diferente de decidir) não são fruto de incompetência nem estritamente um programa ideológico da facção de um partido, mas o seu objectivo global é o de somar vantagens políticas e/ou económicas para o conjunto dos empresários, gestores e proprietários de capital. Achar que os governos “estão no poder” apenas para usufruto dos seus membros, ou reduzir as ligações dos governos a grupos económicos (por exemplo, o caso Banco Português de Negócios) a uma troca de favores pessoais ou a “amiguismo”, só serve para obscurecer a durabilidade e a reprodução de toda uma mesma estrutura de práticas governativas e do fulcro das políticas económica, fiscal e laboral.

2) Agregar e unificar politicamente as fracções das classes dominantes, ao mesmo tempo que promovem uma “harmonia” social baseada numa aceitação política e ideológica das decisões políticas e económicas favoráveis à ampliação do capitalismo e à sua reprodução junto dos trabalhadores. Portanto, o Estado actua sempre em dois sentidos absolutamente interligados: ao mesmo tempo que organiza politicamente sectores das classes dominantes, o Estado amplia a desorganização política da classe trabalhadora.

Neste processo, a incapacidade da esquerda em: a) determinar as funções essenciais do aparelho de Estado expressas na concertação de interesses das classes dominantes; b) distinguir o Estado dos governos; c) romper com a própria linguagem do Estado sobre o “país” e a “nação” transferindo a luta política para o campo da defesa de quem melhor defende um etéreo interesse nacional — todo este triângulo de acções da maioria da esquerda só pode ser entendido como corolário dessa capacidade do próprio Estado em desorganizar política e ideologicamente a classe trabalhadora e as próprias organizações de esquerda. Por isso é que o Estado é, acima de tudo, um conjunto de princípios estruturais e institucionais altamente independentes da vontade e do desejo individual de qualquer governante. Aliás, o mesmo sucede em todas as estruturas nas sociedades contemporâneas…

3.

Com efeito, não só o Estado tem uma dimensão de classe como, ao mesmo tempo, a sua estrutura interna implica sempre a constituição de uma burocracia política (governo, parlamento, etc.), de uma tecnocracia (gestores e directores dos serviços de finanças, segurança social, ordenamento do território, etc.) e de corpos especializados de repressão para “manter a ordem”.

É porque o Estado é de alguns, e porque se organiza verticalmente, que tem de aparentar ser de todos. E enquanto existir a percepção de que o Estado seria de todos e que não seria imanentemente hierárquico, não é só o capitalismo que se mantém intacto, mas é a própria estrutura política do Estado que funciona como a válvula de escape para as dificuldades do dia-a-dia dos trabalhadores. Por conseguinte, o Estado mais não é do que uma empresa de coordenação logística e política das várias fracções das classes dominantes. Tal como hoje em dia o FMI, o BIS, o BCE, a OMC, etc. o são ainda mais à escala transnacional. Aliás, espanta-me os que à esquerda defendem acriticamente o Estado mas que se indignam com estas organizações internacionais, esquecendo que, em boa medida, elas são o desenvolvimento espacial óbvio e inevitável do modo de funcionamento hierárquico, unidireccional e de classe dos próprios Estados nacionais.

Contudo, como o Estado tem a aura de representação do interesse geral, e como correlativamente o Estado pretensamente tem os seus órgãos de poder eleitos, quase todos consideram o Estado como algo muito diferente das grandes empresas ou das instituições transnacionais. Não descarto diferenças, mas elas são fundamentalmente ideológicas e jurídico-políticas e não propriamente estruturais (modo de organização interno) e sociais (papel de coordenação das classes dominantes).

Por conseguinte, serão estas diferenças assim tão importantes para que à esquerda tenhamos de preferir impreterivelmente o Estado às instituições privadas? O Estado e as empresas partilham modos de funcionamento interno cada vez mais similares. Com o neoliberalismo, os critérios de rentabilidade típicos das empresas privadas expandiram-se de tal modo que empresas até há pouco tempo controladas ou com participação do Estado não alteraram o seu funcionamento depois das privatizações. Descontando as mudanças dos accionistas, o modo de funcionamento de uma PT, de uma EDP ou de uma Galp era, no fundamental, exactamente o mesmo que existe hoje. Ou seja, os critérios de rentabilidade económica e os princípios de hierarquização e de concentração do poder de gestão dos processos de trabalho são cada vez mais partilháveis por empresas e pelo Estado. O Estado e as empresas são dois braços de um mesmo corpo, não dois corpos autónomos.

4.

É isto o Estado: um conjunto de princípios duráveis e suprapessoais de organização estrutural e não apenas um governo e muito menos os serviços públicos de saúde e de educação que todos nós defendemos. À boleia da equivalência entre os serviços públicos e o aparelho de Estado é que em Cuba ou na ex-URSS se construíram Estados repressores e altamente hierarquizados, mesmo que ao lado fossem fornecendo serviços públicos. Para esses regimes, os serviços públicos foram (e ainda são no caso cubano) o biombo ideológico utilizado para esconder a existência de um aparelho de Estado burocrático e onde a participação popular é irrelevante e não tem qualquer poder real de decisão. Precisamente o mesmo fenómeno que acontece em qualquer parte do mundo…

Para terminar. Um dos maiores sucessos da teoria política liberal das últimas décadas foi colocar a esquerda a discutir o Estado nos termos da sua própria rede de enunciados ideológicos. Por outras palavras, a teoria política liberal será tanto mais bem-sucedida quanto mais a esquerda discutir o Estado e a política como uma matéria de decisões individuais. Entretanto, o campo institucional dos aparelhos estatais (nacionais ou supranacionais) continua a operar de modo fluido.

Pensar uma alternativa à austeridade só faz sentido partindo da dinamização de um vasto movimento social que, como afirmou o Party Program a propósito de um debate sobre os caminhos e descaminhos da luta contra a austeridade, «o governo só cairá pela rua quando ela se apresentar inequivocamente enquanto ingovernabilidade e que a rua só ganhará esse poder quando se assumir enquanto materialidade colectiva e não enquanto espaço de reivindicação». O que por outras palavras é o mesmo que dizer que um movimento social que congregue mais e mais trabalhadores nas ruas (e, acrescento eu, nos locais de trabalho) deve constituir-se na base de uma expansão de relações solidárias, democráticas e totalmente assentes na auto-organização dos trabalhadores. Por utópico e comichoso que possa ser para a maioria da esquerda que anseia por ocupar pastas no aparelho de Estado, não há transformação social possível, por pequena que seja, sem a intervenção consciente, participada e democrática dos trabalhadores.

Sem este vector, todas as lutas sociais reconstituirão uma nova e revigorada hierarquia de dominação dos trabalhadores a partir das organizações provenientes do próprio meio social e político do conjunto dos assalariados e precários. Sem este vector, serão os princípios de hierarquização e de verticalização unidireccional (de cima para baixo) do poder político que se expandirão ainda mais para o interior de uma classe trabalhadora crescentemente desorganizada.

Os leitores encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas, tanto de Portugal como do Brasil

5 COMENTÁRIOS

  1. Joao,

    Leio esse texto e vejo similaridades gritantes com algumas reivindicações feitas no Brasil. Muito se especula em relação à presença do Estado na tomada de decisões e seus gastos, como a Copa do Mundo e os estádios multimilionários, ou casos de corrupção, enfim, tudo que serve para asseverar a fumaça que encobre a compreenssão do papel e modus operandi do Estado e sua relação com as classes dominantes.

    Mesmo sabendo que essa mitificação é inerente ao capitalismo, me assombra haver tamanha confusão, tamanha demanda por diminuição do papel do Estado, sendo que políticas desenvolvimentistas são até hoje um instrumento eficiente de contenção de revoltas sociais em virtude da expansão do capital.O Estado nasceu, cresceu e até hoje se faz presente por esse concatenamento de interesses dominantes, e como efeito a manutenção do status quo em todos os sentido.

  2. Ótimo texto. Gostaria de tirar algumas dúvidas.

    Quando o autor fala
    ‘Os princípios organizativos da estrutura estatal presidem a uma tomada de decisões no sentido de:
    1) Favorecer as condições de reprodução do capitalismo. Por isso as políticas que os governos aplicam (o que é diferente de decidir) não são fruto de incompetência nem estritamente um programa ideológico da facção de um partido, mas o seu objectivo global é o de somar vantagens políticas e/ou económicas para o conjunto dos empresários, gestores e proprietários de capital. Achar que os governos “estão no poder” apenas para usufruto dos seus membros, ou reduzir as ligações dos governos a grupos económicos (por exemplo, o caso Banco Português de Negócios) a uma troca de favores pessoais ou a “amiguismo”, só serve para obscurecer a durabilidade e a reprodução de toda uma mesma estrutura de práticas governativas e do fulcro das políticas económica, fiscal e laboral.’

    não estaria reproduzindo um tipo de pensamento tipicamente estruturalista? Na linha indicada no texto, o que poderíamos dizer sobre a experiência de Allende n Chile?

    Se for possível, gostaria que o autor apresentasse mais elementos para comprovar a tese que destaquei nesse comentário.

    Obrigado.

  3. Breno,

    Depende do que você entende por estruturalista. Se se referir ao estudo das regularidades e a um primado das instituições sobre o fenoménico e sobre a espuma dos dias, claro que é estruturalista. Tal como todo o pensamento social mais inovador.

    Sobre a citação em questão. Parece-me óbvio que os governos não determinam as políticas de alto a baixo, especialmente nos países em que o Estado nacional é apenas uma parcela da soberania transnacional das empresas e de organismos supranacionais. Mesmo que hipoteticamente vivêssemos num mundo em que os Estados nacionais fossem a única modalidade política de soberania, o problema mantinha-se. Ou seja, há na esquerda europeia uma lamentação lacrimosa pelo retorno ao Estado nacional, como se alguma vez o poder tivesse estado nos governos e nos parlamentos. Como se a classe dominante fosse sinónimo de um governo ou de um partido. Pelo contrário, as decisões e os interesses fundamentais dos capitalistas são sempre anteriores relativamente aos governos. É isso que lhes permite ficar tranquilos com a rotatividade entre quem vai para os governos.

    Sobre o Allende e sobre as várias tentativas de governos de esquerda. Bom, a verdade é que o Allende não foi propriamente anti-capitalista, apenas procurou passar a bússola de controlo da soberania das empresas para o Estado num contexto em que a soberania das empresas se tornou hegemónica a nível internacional, mais ainda no caso ocidental. A mobilização popular no caso chileno foi sempre no sentido de fortalecer o poder de mando de sectores que tentavam construir um capitalismo de Estado (e que foram aproveitados pelo Pinochet como a nacionalização do cobre) e muito menos de expandir organismos de base. Se a contenda, se o antagonismo de classes se tivesse operado entre uma classe trabalhadora auto-organizada e uma anterior classe dominante de certeza que os traços da revolta não teriam tido lugar no ataque ao Palácio de Moncada. Claro que houve uma bárbara repressão logo a seguir mas a viragem da experiência da Unidade Popular para o novo regime de Pinochet foi esse episódio golpista. Portanto, dentro do centro do poder político e não nas empresas ou nas ruas. Isso comprova que o processo transferiu-se fundamentalmente para o seio do Estado.

  4. Okay,
    Não havia entendido o excerto.

    De qualquer forma, na linha do texto, a disputa do Estado via eleições (ano eleitoral aqui no Brasil) seria inútil, a não ser que o objetivo fosse fortalecer o capitalismo, visto que

    ‘Os princípios organizativos da estrutura estatal presidem a uma tomada de decisões no sentido de: 1) Favorecer as condições de reprodução do capitalismo.’

    Essa leitura rompe com a posição programática de um parte considerável da esquerda por cá, que utiliza os exemplos de Allende e de Chavez como modelos a serem ‘repetidos’.

    abs

  5. Breno,

    a disputa eleitoral pode não ser totalmente irrelevante. Por exemplo, a chegada de Lula ao poder representou um momento de alavancagem de uma renovação dos gestores brasileiros. Ou seja, as eleições permitiram a ascensão de candidatos a gestores que reforçaram os mecanismos da mais-valia relativa.

    Mas é como eu disse no comentário anterior. As eleições seleccionam que fracção dos gestores vão governar, não que uma nova sociedade vá surgir a partir dali. O que não é o mesmo dizer que a democracia liberal é irrelevante para os trabalhadores. É sempre melhor lutar dentro de um regime democrático do que em ditadura…

    abraços

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