Por João Valente Aguiar
Leia aqui a primeira parte deste artigo
1.
Se há identidade colectiva moderna tomada por adquirida e como inerente à vida de cada um, essa identidade é a nacionalidade. A naturalidade com que a esmagadora maioria dos indivíduos acolhe a identidade nacional é o maior sucesso a que uma determinada ideologia pode aspirar. Não por acaso, um dos maiores insultos comuns à integridade de um indivíduo encontra-se na figura pejorativa do “vende-pátrias” ou do “traidor da pátria”.
A familiaridade com que cada um lida com a pátria, a nação e a nacionalidade obscurece que, por detrás do apreço legítimo que qualquer indivíduo pode ter pelo local onde nasceu, vive ou escolheu viver, está a construção de uma entidade política e ideológica muito mais vasta. Essa entidade política nada tem de natural e é uma construção fundamentalmente desenvolvida a partir do século XVIII, como grande parte da historiografia tem demonstrado. Nesse sentido, a nação é uma das mais bem-sucedidas construções políticas dos últimos 200 anos, na medida em que, tanto no plano individual como no plano colectivo, conseguiu uma penetração na consciência dos indivíduos que quase se lhes pegou à pele e lhes surge aos olhos como parte integrante da sua forma de estar e de sentir.
2.
Como disse acima, a nação surge, num momento mais imediato, como um elo de ligação entre a afeição identitária de um indivíduo à cultura onde nasceu ou onde vive, mas expande-se muito para além desse traço individual. De facto, a nação moderna opera desde esse nível mais micro até a um nível muito mais vasto, como seja a comunidade nacional. Portanto, a cidadania moderna e a formação do indivíduo como figura jurídica construíram-se como parte integrante da comunidade de um país. Ou seja, o facto de um indivíduo nascer de um lado ou de outro de uma fronteira leva à atribuição de propriedades e de direitos políticos e sociais que literalmente 50 ou 100 metros ao lado poderão ou poderiam ser outros. Aqui interessa-me chamar a atenção para a noção de fronteira como veículo de identificação de um cidadão a uma determinada comunidade nacional e de como as fronteiras administrativas de um qualquer país operam no plano ideológico mais profundo dos indivíduos.
Assim sendo, enquanto uma sociedade nacional é atravessada e totalmente moldada por antagonismos sociais no plano da produção e da apropriação do valor económico, sendo estes que estão na base da vida concreta e real das pessoas, a comunidade nacional constrói-se por cima e por dentro dos indivíduos, quase como se de uma realidade paralela se tratasse.
Explicitando, a comunidade nacional constrói-se por cima dos indivíduos, na medida em que a sua perspectiva sobre o mundo é orientada a partir dessa entidade etérea chamada “país”. Etérea mas que, por ser sentida e percebida como central na percepção dos indivíduos, acaba por assumir um poder colossal na modelação dos comportamentos colectivos dos trabalhadores. Creio que é a familiaridade, e subsequente naturalização, com que os trabalhadores lidam com a entidade nação que explica o facto de esta ser a principal instância supra-individual que os indivíduos acabam por contemplar na sua visão do mundo. Se o mundo é visto como uma colecção de nações, e sendo a perspectiva nacionalista totalmente oposta a uma postura classista sobre a sociedade, então o antagonismo trabalho/capital acaba por ser percebido pela maioria dos trabalhadores como se se tratasse de uma parte orgânica da nação. E ao qual a nação (e o Estado) deveria(m) criar as condições para o institucionalizar e o enquadrar.
Em simultâneo, a comunidade nacional constrói-se por dentro dos indivíduos, na medida em que relaciona a sua vivência imediata com o contributo útil que cada um ou cada uma dá para o “bem do país”. Esta afinidade electiva entre a acção individual e a nação permite soldar a perspectiva de cada trabalhador com os destinos do país. Dessa maneira a nação é o estádio onde cada trabalhador atomizado na sua vida quotidiana e laboral joga enquanto cidadão contribuinte fiscal e enquanto cidadão socialmente útil para a equipa nacional.
3.
O efeito ideológico da nação é tão profundo na classe trabalhadora que mesmo o surgimento de incontáveis lutas sociais reivindicativas ao longo dos últimos 200 anos acabou canalizado para o “desenvolvimento do país”, a construção de “um país melhor e mais justo” ou a inserção do operariado como o que de “mais genuíno e de melhor um país pode ter”. Se as origens mais directas da nação e da classe se situam em planos sociais e institucionais distintos, é bom lembrar que a sua articulação no plano político se tem saldado em inúmeras vitórias para o lado da nação. E também para os capitalistas.
De facto, a agregação de lutas sociais a desígnios nacionais de “salvação da pátria”, de “renascimento nacional” ou de “resgate da soberania do país” nunca resultaram em processos de tomada e controlo efectivo, participado e democrático dos trabalhadores sobre a esfera da produção da vida social e política.
Do meu ponto de vista, isso significa um conjunto de três aspectos.
1) A nação, a pátria ou o país são, do ponto de vista político e das consequências reais para os trabalhadores, muito mais do que a visão lírica do apreço por um lugar e por uma vivência. De facto, a nação, que aos olhos de cada indivíduo é uma realidade familiar e óbvia, aos olhos do Estado e das classes dominantes é o material que cobre os trabalhadores com uma mesma manta ideológica.
2) Se a nação actua de modo tão harmonioso no plano individual e no plano social mais vasto, então a nação actua como o campo de possíveis mais imediato e mais natural para cada um. Concretizando, o sucesso prático do capitalismo em colocar centenas de milhões de trabalhadores a executar as suas tarefas de produção de mais-valia para os capitalistas depende em boa parte do sucesso ideológico de uma absorção incontestada da comunhão de cada trabalhador com o “seu” país. Por seu turno, as empresas transnacionais actuam em todas as escalas territoriais existentes, do nível mais local ao mais global, ao passo que os trabalhadores ficam amarrados ideologicamente a uma nação. Apelar para a soberania nacional como pretensa oposição ao capitalismo só servirá para reforçar a exploração económica e a alienação política e ideológica dos trabalhadores no seio de cada nação.
3) Se o plano da visão política dos trabalhadores se expressa preferencialmente no quadro nacional, isso não significa que exista uma identificação entre a nação e a formação de um espaço anticapitalista. Pelo contrário, a nação é uma comunidade estritamente político-ideológica que mascara as dinâmicas mais duráveis do capitalismo ao agregar ideologicamente trabalhadores e patrões de um mesmo território político-administrativo. De facto, o sentimento de pertença nacional a uma comunidade política pretensamente administrada pelo contributo laboral e eleitoral de todos, e onde o povo de uma nação supostamente tomaria os destinos nas suas mãos, constitui o campo comum dos nacionalismos.
4.
Posso agora retomar o que mencionei anteriormente no início do ponto 2 sobre o conceito de fronteira. E este é fundamental para se compreender todo o alcance político da nação, pois é um dos elementos que permite refutar a pretensa oposição entre patriotismo e nacionalismo.
Para grande parte da esquerda só os fascistas seriam nacionalistas. Assim é porque para a esquerda o patriotismo é equivalente a uma afeição com a pátria e com o país. O patriotismo relacionar-se-ia também com o exercício da soberania do Estado democrático no território nacional, ao passo que para o nacionalismo ficaria confinado o exercício da soberania em moldes repressivos e autoritários. No seguimento, o patriotismo postularia a amizade entre todos os povos, ao passo que o nacionalismo denotaria um carácter imperialista e agressivo. Consciente ou inconscientemente, a esquerda acaba por abraçar acriticamente o lado mais ingénuo e mais facial das ideologias nacionalistas. Com esta postura a esquerda esquece ou omite totalmente os mecanismos mais profundos com que o nacionalismo contribui para reproduzir a dominação capitalista.
De facto, é interessante verificar que os que se consideram patriotas nunca reflectem na base do que tenho vindo a debater. Igualmente interessante é o facto de os patriotas não verem que a formulação de uma identidade nacional não se faz apenas para dentro e apenas como um sentimento de pertença. Na verdade, a identidade nacional constrói-se sempre e simultaneamente como separador relativamente às outras nacionalidades. E aqui tanto podem ser crianças, homens, mulheres, operários que nada disso importa, pois estão noutro território, têm outra língua.
Na realidade, não existe um muro que impeça a nação pacífica de se tornar agressiva no plano interno e externo. A criação de fronteiras nacionais delimita um cá e um lá. Logo, o nacionalismo (e o que chamam de patriotismo) cria uma agregação dos nacionais numa comunidade estritamente ideológica, chegando a internalizar a própria luta da classe trabalhadora a um componente de reforço da coesão social e nacional. Em vez de uma postura de ruptura sistémica (os conflitos sociais entre a classe trabalhadora e os capitalistas), os patriotas preferem aplicar um raciocínio cíclico de recuperação das lutas sociais para reforço do próprio aparelho de Estado, dos partidos, dos sindicatos e dos movimentos que actuam dentro do seu quadro político.
Mas esta postura também cria uma cisão entre o nós nacional e o outro internacional. Isso implica que a territorialização das lutas cria a dicotomia entre o cá e o lá. Esta dicotomia expressa-se em diversos planos. Um deles é a prioridade política conferida aos cidadãos nacionais, desprezando cada vez mais não apenas a necessária solidariedade com os trabalhadores imigrantes, mas também que só a solidariedade e as lutas num plano internacional poderão alterar o que quer que seja. Um outro plano dessa dicotomia expressa-se no esquecimento de que a violência bélica entre nações é o desdobramento extremo e quantitativo desta tendência de separação irredutível entre o nacional e o estrangeiro. Estando presente esta separação e este modo de raciocinar, a partir daqui ninguém pode garantir que a soberania de cada nação não se estenda perfeitamente no plano prático do confronto com outros países.
5.
Esta postura que acabei de descrever só pode ser justificada no plano ideológico, pois na prática as dinâmicas que activam os comportamentos em sociedade decorrem dos conflitos sociais e políticos entre as classes. O mesmo é dizer que numa economia de expansão como é o capitalismo, é constante o reajuste das condições de inserção da força de trabalho a novos condicionalismos e inovações nos processos produtivos.
Do ponto de vista político, isso significa que as articulações económicas dentro de um Estado e no plano internacional não são estáticas e o que ontem era pacífico, amanhã poderá não o ser. A este propósito, temos o recente caso concreto dos ataques com que militantes e activistas da esquerda têm brindado a Alemanha e, em casos mais extremos, os próprios trabalhadores alemães como tive oportunidade de criticar no início deste artigo.
Com a crise económica, o bicho-papão de um IV Reich e da histeria de colocar portugueses contra alemães surgiu com uma força tremenda nos últimos dois anos no cenário político português. Deitando fora a pouca dimensão de classe que ainda persistia exiguamente nos seus discursos, a maioria das organizações e dos militantes de esquerda em Portugal passou a colocar as causas da crise económica na gula parasitária da Alemanha. Ora, como é que uma nação explora outra? Sabendo que a nação é a entidade cultural que recobre um Estado (ou uma aspiração a um Estado), como pode uma entidade cultural e ideológica actuar no espaço económico enquanto agente de extorsão da mais-valia?
Mesmo que a esquerda clame que se trata de uma luta entre Estados, a interrogação mantém os seus fundamentos. Como argumentei na primeira parte deste artigo, se os Estados não se distinguem económica e politicamente dos princípios fundamentais do modo de funcionamento das empresas, então por que o Estado alemão seria mais condenável para os trabalhadores do que o Estado português? Se, em termos da luta anticapitalista, dá no mesmo ser-se explorado economicamente pela Bayer ou pela Sonae, em que é que isso difere no que respeita aos estados nacionais?
Só o objectivo de colocar as lutas sociais ao serviço de um projecto político de renovação das elites dominantes pode explicar a exponenciação estatista e nacionalista que a esquerda tem levado a cabo. Precisamente quando o actual contexto deriva totalmente de mecanismos económicos típicos do capitalismo (austeridade como face da destruição de valor; programa de reajustamento assente no ataque a direitos, empregos e remunerações dos trabalhadores; articulação entre crédito e actividade económica, etc.) e, portanto, num contexto em que a identificação do carácter explorador do capitalismo é mais visível, a esquerda decide concentrar as suas baterias nos temas da soberania nacional e da luta contra a destruição do Estado-Nação. Creio que nada poderia ser mais elucidativo dos comportamentos políticos da esquerda do que esta aposta na colocação das causas da crise económica no plano do confronto entre nações.
Em vez de procurar apresentar aos trabalhadores os mecanismos económicos fundamentais que estão na base das dificuldades actuais da sua condição de vida, a esquerda prefere lançar a bandeira da recuperação da soberania nacional… Como se uma comunidade territorial e cultural estivesse em causa num contexto de crise económica… E, pior, como se houvesse algum interesse para a luta dos trabalhadores contra o capitalismo que essa mesma comunidade nacional sobrevivesse… Como se o que aflige actualmente a vida da maioria dos trabalhadores fosse causa de uma luta entre países, e não de mecanismos típicos da economia capitalista. Muitos dos que raciocinam neste quadro nem sequer se lembram de que existem trabalhadores nos países do norte da Europa. Trabalhadores que partilham a mesma condição de exploração económica e que são alvo de medidas de austeridade e de precariedade laboral que em nada diferem das que sofrem os trabalhadores no sul da Europa. Quando a esquerda bate na tecla da soberania portuguesa, grega e italiana contra a pretensa ingerência dos países mais poderosos da União Europeia, não é contra os capitalistas que está a lutar. Nem sequer contra as medidas políticas definidas contra os trabalhadores. De facto, quando a esquerda actua dessa forma é a divisão internacional dos trabalhadores que está a propagar. E é igualmente a união dos trabalhadores com sectores capitalistas de um país que essa esquerda está a promover.
6.
Se existe qualquer tipo de possibilidade de superação do capitalismo, ela só tem lugar dentro de uma única instituição: as relações de trabalho que colocam trabalhadores de um lado e capitalistas do outro. A relação de exploração económica implica o monopólio das funções de gestão e de direcção do processo de trabalho por parte dos capitalistas, o que por sua vez lhes permite a apropriação da riqueza produzida pelos trabalhadores. Fora deste plano, crescem exponencialmente as possibilidades das lutas sociais deslizarem para a renovação dos mecanismos económicos do capitalismo e para a renovação de novas elites de gestores provenientes de organizações políticas, sociais e sindicais. Não é por acaso que essa esquerda que nunca aborda os mecanismos da exploração económica é a mesma que potencialmente pode renovar os quadros de dominação política dos trabalhadores. E, como abordei na primeira parte deste artigo, também não é inesperado que a esquerda, quando aborda aspectos como o Estado ou as privatizações, seja sempre sob o prisma jurídico, deixando de lado os princípios de organização das instituições políticas e económicas do capitalismo.
Não se trata de um campeonato de purismos ou de dar lições a quem quer que seja. Pelo contrário, de um modo racionalmente empenhado, seria importante que quem se considera de esquerda se interrogasse sobre os caminhos nacionalistas que a esquerda está a trilhar. Como já foi dito no Passa Palavra por variadíssimas vezes, o nacionalismo não é um carro alegórico pejado de cores e emblemas nacionais. É toda uma estrutura rígida dirigida para uma acção que, no plano ideológico, substitui o antagonismo de classe por um quadro nacional de análise e de proposta política.
Caro João Valente Aguiar
Parabéns pelo artigo. Uma pergunta: considera o desenvolvimento capitalista essencial ao socialismo?
Caro Paulo,
obrigado pelo seu comentário.
Sobre a sua pergunta. Creio que perante as experiências do século XX, o socialismo passou a ser visto predominantemente como um modelo capitalista de Estado. Mas se assumirmos o socialismo como algo genérico e sinónimo de uma sociedade que rompa radicalmente com o capitalismo e se alicerce em novos princípios de sociedade geridos pelos trabalhadores, então é possível relacionar esta última visão anticapitalista de socialismo com o capitalismo? Dito de uma maneira muito lata, se o socialismo pode ser radicalmente anticapitalista, creio que o socialismo só se pode desenvolver a partir de uma determinada configuração do capitalismo. Ou seja, quanto mais transnacionalizado o capitalismo, mais possível e viável será uma sua alternativa. Pelo contrário, num mundo de capitalismos mais nacionalistas e proteccionistas, as dificuldades para uma organização dos trabalhadores exponenciam-se.
Contudo, quando eu aqui relaciono as características de maior ou menor modernização do capitalismo com as possibilidades de surgirem alternativas não o faço tomando como princípio aquele princípio mecânico de que bastaria o desenvolvimento das forças produtivas para suplantar o capitalismo. Pelo contrário, um capitalismo mais moderno é melhor para os trabalhadores porque lhes dá maiores possibilidades de se organizarem internacionalmente. Não é melhor porque se aproxima de um putativo óptimo produtivo onde depois bastaria nacionalizar a economia para se (pretensamente) construir uma nova sociedade.
Para terminar. Quando eu falo no texto que uma esquerda nem para modernizar o capitalismo serve, refiro-me a isto na sequência de vários artigos que eu tenho escrito sobre o facto de grande parte da esquerda portuguesa não defender qualquer vector emancipatório para os trabalhadores. Bem pelo contrário. A esmagadora maioria da esquerda portuguesa tem como objectivo e programa político um capitalismo ainda mais miserável do que já vivemos. Sobre este assunto creio que vale a pena ler o seguinte artigo do João Bernardo: http://passapalavra.info/2011/03/37649
Caro João Valente Aguiar
Obrigado pela resposta. Aproveito a oportunidade para compartilhar algumas dúvidas, de ordem teórico-prática, que vão para além do caso português: Se o socialismo só se pode desenvolver a partir de determinada configuração do capitalismo, posso presumir que o desenvolvimento de um país (tomado em sentido amplo, isto é, econômico e social) se coloca como uma necessidade? O desenvolvimento econômico e social, no mundo de hoje (em que há grande assimetria de poder nas relações internacionais, em que vige o toyotismo no mundo empresarial e uma pungente fragmentação do trabalho), não demanda a intervenção do Estado? Logo, para que possa ocorrer ou avançar, isso não seria possível apenas nos quadrantes de um país? Ou no contexto atual é possível rumar para um socialismo da abundância sem políticas públicas, sem a adoção de mecanismo de distribuição de renda, sem investimento estatal em educação, saúde etc.? É possível enfim hoje, numa época em que o mundo do trabalho não consegue sequer se articular no interior de um país, pensar um desenvolvimento econômico-social fora dos quadrantes de um país, fora da esfera nacional, em âmbito internacional? Se não for abuso, gostaria de conhecer sua visão sobre essas questões, ainda que de forma inacabada, pois creio que quaisquer considerações de sua parte contribuirão para que eu possa melhor refletir sobre elas.
Abraço,
Paulo
Caro Paulo,
desculpe o atraso na resposta.
1) «Se o socialismo só se pode desenvolver a partir de determinada configuração do capitalismo, posso presumir que o desenvolvimento de um país (tomado em sentido amplo, isto é, econômico e social) se coloca como uma necessidade?»
O socialismo tomado genericamente como uma alternativa ao capitalismo assente em relações solidárias desenvolve-se a partir de determinadas premissas. Mas não são essas premissas capitalistas estruturais (toyotismo, transnacionalização do capital, etc.) que desaguarão necessariamente nesse socialismo. Só as lutas sociais transformam o capitalismo e só as lutas sociais dos trabalhadores podem transformar o capitalismo noutro modo de produção. Dito isto, os traços mais modernizadores do capitalismo relacionam-se intimamente com a sua transnacionalização crescente. Não se trata de protagonizar um salto mecânico entre uma transnacionalização capitalista para uma de tipo socialista. Mas a transnacionalização capitalista não apenas é sempre preferível aos nacionalismos, desde motivos ideológicos, até à importante questão das condições de vida dos trabalhadores, aspecto que a maioria da esquerda nacionalista não quer saber para nada. Mas como estava a dizer, a tendência expansionista do capitalismo é sempre preferível às tendências irracionalistas do decrescimento, mas também permite melhores condições para que as lutas dos trabalhadores possam desenvolver-se num plano mais articulado e internacional. Naturalmente não é essa transnacionalização que o permite automaticamente. É apenas um palco menos nocivo do que o nacionalismo.
2) «no contexto atual é possível rumar para um socialismo da abundância sem políticas públicas, sem a adoção de mecanismo de distribuição de renda, sem investimento estatal em educação, saúde etc.?»
É bom lembrar que os serviços públicos de educação, saúde e de previdência tiveram origem em instituições comunitárias criadas pela classe trabalhadora. O estado no quadro do fordismo apropriou-se não apenas das reivindicações dos trabalhadores mas sobretudo dessas modalidades de organização. Para mim, é de longe preferível que esses serviços sejam públicos e de acesso gratuito e universal do que serem privados. Para os trabalhadores que não trabalham nesses sectores é imensamente importante que o acesso se mantenha gratuito e com qualidade. Mas esta característica é imanente ao Estado? Eu creio que não. Se o Estado actua em todos os outros planos (justiça, polícia, impostos, empresas estatais, etc.) de modo totalmente distinto (e repressivo) porque actuaria de modo solidário na saúde e na educação? De facto, o acesso a serviços estatais de saúde e de educação mantém-se mas cada vez de modo mais residual na Europa, etc. Porém, mesmo que o acesso possa manter-se público e gratuito, importa lembrar que aqui estamos ainda no plano do consumo (acesso a bens e serviços que ajudam a compensar os rendimentos dos trabalhadores que não operam nesses sectores). Se passarmos para as relações de trabalho dentro da saúde e da educação fornecidas pelo Estado, então a minha conclusão é que essas são claramente aproximadas às de qualquer empresa. Pelo menos nos casos europeus que conheço, o seu modo de funcionamento interno (princípios hierárquicos, contratação de trabalhadores, organigrama, políticas de rentabilidade e de controlo de custos, etc.) é praticamente o mesmo ao que acontece nas empresas privadas. Portanto, no limite, um determinado Estado poderá continuar a fornecer serviços de saúde e de educação a baixo custo e, na sua estrutura interna, manter características empresariais.
Em suma, se é óbvio que é imensamente benéfico que os trabalhadores tenham acesso gratuito e universal a serviços públicos importa lembrar que a destruição desse acesso começa noutro local: na crescente partilha de princípios empresariais no seio da estrutura do Estado.
3) «É possível enfim hoje, numa época em que o mundo do trabalho não consegue sequer se articular no interior de um país, pensar um desenvolvimento econômico-social fora dos quadrantes de um país, fora da esfera nacional, em âmbito internacional?»
Eu colocaria a questão ao contrário. Ou as lutas dos trabalhadores se expressam no plano internacional ou não haverá saída para o actual estado de fragmentação da classe trabalhadora. Creio que essa linha etapista sempre acaba por encerrar a luta dentro de um país e, acima de tudo, em regenerar um novo tipo de capitalismo nacional com novos gestores.
Abraço
Caro João Valente
Obrigado pela ótima resposta.
Abraço,
Paulo
Sou a favor de direito a voto dos projetos através de escolha livre e utilizando a urna eletrônica permanentemente instalada nas zonas eleitorais, transparência a todos os projetos apresentados por quem foram eleitos com direito a voto, chega de deixar na mão deles o monopólio de decisão que muitas vezes não fazem parte de nossos desejos e necessidades.