Por João Valente Aguiar

 

A.

Certamente que o leitor que leu a segunda parte deste artigo poderá ter colocado a seguinte interrogação: “mas Marx e Engels terminaram a redacção do Manifesto Comunista em Janeiro de 1848. Como poderiam ter concebido as coisas de outra forma?”. Essa interrogação tem a sua justificação e irei utilizá-la como forma de tentar aprofundar o meu argumento.

Em primeiro lugar, independentemente dessa objecção temporal, a verdade é que Marx tinha um largo conhecimento histórico das lutas operárias de 1789 e de 1830. Por seu turno, as lutas na Silésia, em 1843, tinham influenciado decisivamente o jovem Marx na tomada de consciência da dinâmica das lutas proletárias de então. Ou seja, Marx já então tinha feito uma avaliação do carácter insuficiente dessas lutas por ainda não se terem emancipado e autonomizado politicamente da influência dos objectivos da burguesia. A questão fica ainda mais intrincada se nos lembrarmos de que Marx e Engels já não tinham mais uma consciência do Estado como espaço de emancipação humana contraposto à religião (como nas obras Sobre a questão judaica ou Crítica à Filosofia do Direito de Hegel), mas que o Estado (e, por conseguinte, a sua figura ideológica da nação) era uma estrutura inerente ao poder da classe dominante. Repare-se que não se trata aqui da tomada do poder político, mas da perspectiva de inserir a construção de uma sociedade pós-capitalista dentro de cada nação e a partir de uma estrutura hierarquizada e classista como o Estado. Relembro que a estrutura conceptual marxiana original tinha como eixo alavancador da transformação social a luta dentro de cada espaço nacional. Por conseguinte, raciocinando com os elementos que os autores constataram nas lutas dos seus dias, então porque Marx e Engels viram em instituições políticas e territoriais capitalistas por excelência os espaços para a consolidação de um futuro poder proletário?

Mas, em segundo lugar, o mais inusitado ainda está para chegar. Marx e Engels reviram pequenos aspectos do texto do Manifesto Comunista e adicionaram um importante prefácio explicativo em 1872. Ora, nesse prefácio, os autores não reviram a perspectiva fundamental que acabei de descrever. E, verdade seja dita, podiam legitimamente ter mantido a mesma postura. Isto se nada tivesse ocorrido entretanto… Todavia, entre Fevereiro de 1848 (data de publicação da primeira edição do Manifesto) e 1872 (data do referido prefácio) ocorreram duas importantíssimas revoluções: a revolução europeia de 1848-49 e a Comuna de Paris de 1871. Em ambas as experiências, as lutas sociais da classe trabalhadora evoluíram enormemente.

É inquestionável que Marx retirou importantes lições dessas experiências, como aliás tive oportunidade de escrever sobre o assunto (Aguiar 2013). Relativamente a 1848, Marx considerou que não bastaria ao proletariado tomar o poder político mas que também teria de o destruir, sob pena de a classe operária poder vir a ser derrotada militarmente pelo exército burguês. Ora, como destruir o Estado capitalista e manter a defesa política da nação e do Estado nacional como via para outra sociedade?

O marxismo foi-se defendendo desta contradição enquanto ela só existia no plano teórico. Com a experiência soviética iniciada em 1917, o Estado socialista (ou a ditadura do proletariado) não era mais do que a replicação de modalidades hierarquizadas e detentoras da totalidade do poder político e económico por uma nova classe de gestores, que governava em nome da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, os princípios da soberania do Estado burguês clássico mantiveram-se intactos, e até aprofundados no seu carácter mais totalitário, no novel Estado socialista. Que a economia fosse dirigida directa e exclusivamente a partir do Estado, nada disso modificava os dados fundamentais da equação das estruturas sociais e políticas do capitalismo: a existência de uma força de trabalho desprovida de qualquer tipo de poder sobre os processos de tomada de decisões ao nível político e económico.

Mas a experiência de 1848 também foi muitíssimo importante por outro motivo. Pela primeira vez na história, trabalhadores alemães, franceses, polacos, etc. lançaram-se numa onda de lutas contra algumas das estruturas sociais e políticas de então. Muitos daqueles movimentos eram influenciados pela cultura da edificação de um capitalismo liberal e os casos de libertação nacional foram frequentes. Todavia, o factor inovador relativamente a outras manifestações passadas encontrou-se no carácter internacional das lutas operárias. Ou seja, pela primeira vez uma onda internacional de lutas operárias e populares desenvolveu-se num mesmo curto tempo histórico, deixando entrever um caminho de internacionalização das lutas sociais e que se exponenciariam a um grau nunca visto nas ondas de 1916-23 e de 1968-75.

O historiador Eric Hobsbawm descreveu da seguinte maneira a revolução de 1848:

«Houve muitas grandes revoluções na história do mundo moderno, e muitas que foram mais bem-sucedidas do que esta. Nunca houve porém nenhuma que se espalhasse tão rápida e universalmente, alastrando como um incêndio por tantos países, transpondo fronteiras e até oceanos. […] No espaço de algumas semanas caíram todos os governos numa área da Europa equivalente ao espaço geográfico hoje total ou parcialmente abrangido por dez nações: França, Alemanha, Áustria, Itália, Checoslováquia, Hungria, parte da Polónia, Jugoslávia e Roménia. Os efeitos políticos da revolução foram igualmente consideráveis na Bélgica, na Suiça e na Dinamarca. Isto para não falarmos já em repercussões menos importantes numa série de outras nações. 1848 foi além disso a primeira revolução potencialmente ao nível do globo cujos efeitos se fizeram sentir no Brasil (insurreição de Pernambuco em 1848) e, alguns anos mais tarde, na remota Colômbia. Em certa medida foi o paradigma da “revolução mundial” com que os rebeldes passariam a sonhar, e que em raros momentos, tais como nos períodos posteriores a grandes guerras, pensaram identificar. Tais explosões simultâneas em vários países ou continentes são no entanto raríssimas. A revolução de 1848 na Europa foi a única que afectou tanto as regiões desenvolvidas como as regiões atrasadas do continente» (Hobsbawm 1988: 22-23).

É certo que as reivindicações dos vários movimentos revolucionários de 1848 eram distintas entre si e que os temas da construção nacional eram recorrentes e substantivos em vários casos, mas o carácter absolutamente internacional da sua difusão foi um aspecto que poderia não ter passado despercebido. O que não passou despercebido, nem aos conservadores nem aos revolucionários de então, foi o aspecto relativo à instauração completa da ordem burguesa em alguns países, com a consolidação do Estado moderno e do papel que as nações começaram a ter na definição das identidades colectivas e políticas, algo que foi incorporado na visão de várias correntes políticas de então.

Mas por que os revolucionários não valorizaram suficientemente o aspecto específico de internacionalização das lutas para que inscrevessem esse dado no seu corpo conceptual e ideológico? Por que o esquema da soma de nações socialistas não foi beliscado pela prevalência de uma dimensão internacional e irradiadora da revolução? Não houve experiências de real tomada do poder político e, muito menos, da sua manutenção. Porém, a explosão internacional de insurreições não teria sido suficientemente visível e importante para que não obrigasse a um afinamento dos quadros teóricos e políticos sobre esta questão da nação?

Perante a entrada em cena do proletariado em lutas sociais internacionais, Marx e Engels preferiram direccionar a atenção para o carácter programático de algumas daquelas lutas. Dentre outros exemplos, a libertação nacional da Polónia seria doravante uma preocupação constante. O carácter processual de difusão internacional de lutas seria secundarizado pelos fundadores do materialismo histórico.

B.

Antes de terminar esta secção, gostaria de debater brevemente os processos internacionais de lutas. De facto, a internacionalização das lutas não significa que as lutas ocorram no vazio e, portanto, fora de espaços nacionais. São dois os principais atributos que lhes conferem um carácter supranacional.

Por um lado, essas lutas são parte integrante de um processo de transformação internacional. Por exemplo, até ao acordo de Brest-Litovsk de Março de 1918, era generalizada a tese de que a revolução na Rússia não tinha como propósito a edificação de um Estado socialista nacional russo. Pelo contrário, os trabalhadores russos viam o processo revolucionário como uma dinâmica que deveria confluir com outras revoluções a ocidente, unificando assim os processos nacionais de luta num único processo europeu. A sua não concretização prática não apaga o facto de a tendência de desenvolvimento das diversas lutas se operar num plano internacional. Por conseguinte, a concentração de diversos processos de profundas lutas sociais em curtos períodos de tempo parece demonstrar um grau de internacionalização das lutas que está longe de ser negligenciável. Do meu ponto de vista, afigura-se inconsequente querer negar o carácter internacional das ondas revolucionárias de 1848-49, 1916-23, 1968-75 apenas porque não teriam ocorrido processos nacionais identicamente sincronizados. Se se utilizar este critério então também as revoluções nacionais de qualquer tipo também teriam de consumar uma homogeneidade de lutas em todo o território nacional.

Por outro lado, se as lutas sociais só podem colocar em causa o capitalismo se forem internacionais, o inverso também se parece aplicar. Isto é, se se inserirem numa conjuntura histórica específica (1916-23, 1968-75) em que se abra espaço à criação de uma vaga de múltiplos processos com o propósito de, na base, colocar em causa as relações de produção capitalistas. A confluência supranacional de vários processos de luta reside numa rara mas simultânea dinâmica de base capaz de, nos locais de trabalho, transferir colectiva, radical e democraticamente o monopólio das funções de direcção e de coordenação do processo de trabalho para o conjunto dos trabalhadores.

Da junção e da alimentação recíproca dos processos internacionais e dos processos micro à escala da transformação das relações de poder nas empresas, poderá surgir um novo modo de produção. Mas este é um dado adquirido fundamentalmente a partir das duas grandes vagas de lutas sociais do século XX. E, de forma menos desenvolvida, também a partir do rescaldo da Comuna de 1871. Que lições tirou Marx desta experiência?

Bibliografia desta terceira parte:

AGUIAR, João Valente (2013) – Comunismo. In ROSAS, João Cardoso; FERREIRA, Ana Rita (org.) – Ideologias políticas contemporâneas. Lisboa: Almedina; HOBSBAWM, Eric (1988) – A era do capital (1848-1873). Lisboa: Presença

A série Marx e nação. Um abraço pela frente e uma facada por trás é formada pelos seguintes artigos:

1) O nacionalismo
2) O espaço nacional no centro da constituição do proletariado em classe
3) A onda internacional ignorada
4) A Comuna de Paris: um Estado por cima dos operários?
5) Marx e os gestores
6) As duas esquerdas dos gestores

8 COMENTÁRIOS

  1. João Valente, meu caro, e demais leitores e colaboradores deste site,

    Gostaria de, em primeiro lugar, lhe parabenizar pelos importantes argumentos e considerações apresentadas até aqui nessa série de artigos. Espero que você possa acreditar nisso, mas essa é de verdade uma felicitação sincera.

    Dito isso, desejo também expor o meu anseio pelas partes finais da série – que serão publicada em breve, assim presumo. Essa vontade de conferir o que está exposto nesses últimos artigos fundamenta-se principalmente no fato de que uma das principais lições que as vagas das lutas sociais nos permitiram vislumbrar é a sensacional resiliência criativa e transformadora do próprio capitalismo – justamente nesses momentos em que foi colocado radicalmente em questão.

    Eis, portanto, a importância de se vislumbrar como o desenvolvimento da classe dos gestores participou dessa capacidade espiral de desenvolvimento do capitalismo. Seus últimos artigos irão abordar essa questão – que é mais do que fundamental. Afinal de contas, todos os dias trabalhamos e reproduzimos esse modo de produção social – por mais consciência de classe que possamos ter. E é por esse motivo, com a justa administração dos gestores em aliança com a burguesia, que o sistema se reproduz economicamente.

    Saudações.

  2. João,
    Dois apontamentos. Um breve, acerca da vaga revolucionária que percorreu a Europa em 1848. Não sei por que motivo, a não ser pela obscuridade do país, são sempre esquecidas a Maria da Fonte e a Patuleia. Ora, se na perspectiva republicana e positivista estas duas revoluções podem afigurar-se retrógradas ou mesmo arcaicas, se recordarmos a génese do fascismo encontramos nelas uma premonitória junção de radicalismo plebeu e aristocratismo antiburguês, o que as torna mais modernas do que parecem.
    O segundo apontamento, que extrapola este teu artigo, diz respeito ao tratado de Brest-Litovsk, que mencionas de passagem. Na época foi-lhe dada toda a importância, pelo menos entre os revolucionários russos, e ele foi o grande divisor de águas. Internamente, originou no partido bolchevista uma divisão muito profunda, que iria repercutir-se nas rupturas de esquerda posteriores e justificar que Lenin desse ordem à Tcheka para actuar dentro do partido.
    Além disso — o que é convenientemente esquecido — data de então a conversão de uma democracia operária numa ditadura de um só partido, já que foi a assinatura do tratado de Brest-Litovsk, em 3 de Março de 1918, que levou o Partido dos Socialistas-Revolucionários de Esquerda a abandonar o governo em que participava junto com os bolchevistas e a ser ilegalizado e dizimado pela repressão.
    Conjuntamente com estas transformações de importância decisiva, outras não menos notáveis ocorreram no plano externo. Antes de mais, convém recordar que haviam sido os opositores ao tratado, e não Lenin e Trotsky, quem vira acertadamente a conjuntura. Em Janeiro de 1918 ocorrera um movimento de greves em Berlim e noutras cidades alemãs, tal como nas duas capitais do Império Austro-Húngaro, Viena e Budapeste, acompanhado pela criação de conselhos e por manifestações contra a guerra, mas Lenin contara decerto que esta agitação se transformasse por si mesma numa revolução, e quando tal não sucedeu perdeu as esperanças numa extensão a curto prazo do processo insurreccional. Ora, a verdade é que o militarismo alemão e austro-húngaro chegara aos últimos alentos. A derradeira ofensiva dos generais alemães na frente ocidental, iniciada poucos dias após a ratificação da paz de Brest-Litovsk, não lhes deixou qualquer capacidade de iniciativa a Leste, impossibilitando-os de ocuparem mais territórios russos do que aqueles que haviam conseguido mediante o tratado. Os bolchevistas subestimaram a energia do proletariado alemão e austro-húngaro e sobrestimaram a força do imperialismo germânico, cedendo-lhe quando parece que podiam ter resistido.
    Mas o problema foi mais geral.
    Em França o processo revolucionário de 1916 e 1917, que atingiu tanto o exército como os sindicatos, continua muito mal estudado, e não sei se o facto de os documentos permanecerem sob a alçada do estado-maior é causa ou efeito do desinteresse dos historiadores.
    Em Itália, fala-se muito de Gramsci e da sua tentativa de conjugar o modelo leninista de partido com as organizações de base. Quero dizer que se fala muito no Brasil, porque na Europa a memória de Gramsci permanece confinada aos meios universitários especializados, enquanto aqui ele é uma das figuras históricas mais evocadas pela esquerda. Mas é evocado alheadamente ao facto de se encontrar na ponta final de um processo revolucionário que quase levou à desintegração das frentes de batalha.
    Na Alemanha o processo é conhecido e existem boas obras sobre o assunto, nomeadamente a de Pierre Broué, mas observo a este respeito uma lacuna e um silêncio. A lacuna é dos anarquistas, sempre prontos a mencionar as escassas experiências históricas em que tiveram uma participação relevante e que, neste caso, pouco referem a sua acção, nomeadamente na Baviera. O silêncio é o que envolve a posição de Trotsky, ao considerar que a revolução alemã alterara o equilíbrio geopolítico em detrimento do Estado soviético. Este é um dos argumentos centrais da obra de Trotsky Terrorismo e Comunismo. Caído no esquecimento, este livro foi reeditado em França em 1963 na colecção 10/18. Disseram-me naqueles anos que a iniciativa se devera aos situacionistas, para comprometerem os trotskistas. Não sei se é verdade; mas, se foi, ninguém parece ter-se incomodado muito com as enormidades que o mestre da revolução permanente escreveu naquela obra.
    Outra coisa que convém recordar a este respeito é que as relações militar-industriais mantidas durante a república de Weimar entre o estado-maior alemão e o governo soviético podem considerar-se como uma sequela do tratado de Brest Litovsk, e não deve subestimar-se a importância dessas relações para o reforço da extrema-direita alemã.
    Finalmente, e porque este comentário já vai longo demais, se a assinatura do tratado de Brest-Litovsk significou o alheamento do Estado soviético relativamente ao processo revolucionário em curso no Ocidente, significou também que no Oriente, especialmente na Pérsia e na Turquia, o partido bolchevista descurou a mobilização do proletariado e passou a interessar-se pelas revoluções nacionais e pelos equilíbrios geopolíticos. Nesta perspectiva, as decisões sobre a questão colonial no 2º Congresso do Komintern parecem-me um elemento simétrico ao tratado de Brest-Litovsk.
    Se estes apontamentos tiverem razão de ser, então não foi só Marx, mas também os seus continuadores mais notáveis, a voltarem costas a uma onda revolucionária internacional, o que torna a questão ainda mais grave e indica que o problema tem raízes mais profundas.

  3. João Bernardo,

    A Maria da Fonte e a Patuleia são de 1846 e 1847 mas o carácter que descreves é esse mesmo. De facto, é um exemplo histórico muito vivo de antecipação do fascismo.

    Sobre a onda de 1848. O que aqui me interessou debater foi o facto de que as revoltas operárias (e não só) de então, para lá de diferentes conotações programáticas, terem actuado num mesmo movimento internacional. Ora, as análises do Marx e do Engels dirigiram-se muito mais para o carácter programático de algumas delas do que propriamente para a sua forma internacional. Isso significou uma escolha com amplas repercussões políticas.

    Por um lado, os casos polaco (polonês para os brasileiros) e irlandês tornar-se-iam exemplos de lutas políticas com tanta (ou mais) importância para o Marx e o Engels, do que as lutas operárias propriamente ditas. Para os leitores interessados, deixo o dossier que o Marxists Internet Archive compilou e organizou sobre os casos polaco (http://marxists.org/archive/marx/works/subject/poland/index.htm) e irlandês (http://marxists.org/archive/marx/works/subject/ireland/index.htm). Descontando o caso específico francês, onde realmente decorreram algumas das mais importantes lutas operárias do tempo (as jornadas de Paris em Junho de 1848 e a Comuna de 1871), a Irlanda foi, provavelmente, o caso nacional mais recorrente na discussão política do Marx e do Engels.

    Por outro lado, o Marx e o Engels dedicaram o estudo de parte da onda de 1848 à análise das razões daquelas revoluções terem sido revoluções burguesas incompletas/insuficientes, etc. Ora, este será o grande argumento inaugurado pelo Marx e pelo Engels para literalmente colarem a acção da classe trabalhadora à iniciativa dos gestores. A explosão das lutas de libertação no século XX, e as orientações do Comintern para os países asiáticos e da América Latina não são muito diferentes deste vector enunciado pelo Marx.

    Por conseguinte, creio que a desvalorização ou secundarização da vertente internacional daquelas lutas diz muito da postura do Marx ao longo de toda a sua vida. No século XX, as únicas conjunturas onde foi possível aos trabalhadores colocarem em causa aspectos centrais do capitalismo ocorreram precisamente numa onda internacional, num curto e determinado período de tempo. Ora, quando o Marx despreza a dimensão internacional logo em 1848, isso significa muito simplesmente que doravante os processos de luta que levariam ao socialismo só seriam internacionais na medida em que se fossem adicionando estados nacionais socialistas. O que 1848 antecipa e que as duas ondas que refiro no texto confirmam (as datas não são fixas e existem excepções fora desses períodos), é que o que quer que se chame socialismo só é possível em conjunturas específicas e que se manifestam de uma forma internacional. Porque essas ondas não venceram o capitalismo isso só demonstra o quanto a unificação de diferentes processos nacionais foi, ainda assim, insuficiente. Quando a esquerda hoje considera que é no espaço nacional que é possível superar o capitalismo, ela está a caminhar no sentido totalmente oposto ao veiculado nas lutas sociais dos trabalhadores. Só a expansão transnacional das lutas pode fazer avançar novas relações sociais, e não o contrário.

    E daqui chegamos à esquerda marxista e que tu muito bem abordas. Não me parece despiciendo o facto de eles terem exacerbado o vector nacionalista que já estava presente no Marx. Se, de facto, o Marx já contemplava o nacionalismo no seu pensamento político, ainda por cima em obras clássicas como o Manifesto Comunista, e se, como defendo nos próximos artigos, o marxismo forneceu elementos para a constituição de uma esquerda dos gestores, então parece-me relativamente natural que essa mesma esquerda concretizasse e ampliasse o que no Marx já estava presente. O exemplo que dás do Trotsky e da revolução alemã é disso elucidativo. Se ele e o Lénine seguiam a linha mais ortodoxa do Marx; e se eles se constituíram como os gestores que se vieram a constituir no regime soviético, então eles não poderiam nunca adoptar, na prática política, a tese de que o socialismo (fosse ele qual fosse) só seria possível numa vertente internacional. Em suma, a tese que eles aplicaram na prática desde Brest-Litovsk repercute o vector do Marx da constituição do proletariado (e da construção do socialismo) num espaço nacional (a tal tese do Manifesto de o proletariado ter de tornar a nação como sua).

    A isto acrescento o seguinte. Quem ler o esboço do decreto bolchevique sobre o controlo operário (http://www.marxists.org/archive/lenin/works/1917/oct/26.htm), escrito pelo Lénine logo nos primeiros dias a seguir à tomada do poder pelos bolchevistas, repara facilmente na discrepância entre o primeiro ponto e os três ou quatro finais, em que o Estado e os sindicatos têm uma evidente prevalência sobre a organização de base dos trabalhadores. Do meu ponto de vista, o Lénine não poderia ter tal visão de hetero-organização das lutas vinda do nada. Ou seja, toda a prática bolchevista de enquadramento, esvaziamento e aniquilamento dos organismos conselhistas é indissociável do seu projecto político prévio à própria revolução de 1917. E, nesse ponto, o facto de Lénine sempre se ter vangloriado, e com bastante razão, de ter sido o mais fiel seguidor do Marx não me parece ser apenas uma operação de filiação doutrinária e propagandística, de modo a marcar a diferença relativamente à social-democracia alemã que também reivindicava um legado marxista. Neste ponto em específico, ambas são continuadoras do legado do Marx mas de modo desfasado. Enquanto a social-democracia se constituiria no contributo do Marx para a formação de uma ala esquerda dos gestores dentro dos chamados regimes democráticos, o leninismo constituir-se-ia na esquerda dos gestores responsável por transfigurar e recuperar directamente de lutas sociais anticapitalistas com um impacto revolucionário.

    Por conseguinte, parece-me relativamente explicável a filiação do leninismo e do comportamento dos leninistas de todo o tipo no nacionalismo inaugurado pelo Marx. O que talvez falta explicar é porque os gestores não se cingem nunca ao âmbito tecnocrático mais comum, mas, pelo contrário, necessitam sempre de criar fracções próprias junto da classe trabalhadora. Ou seja, para além dos tecnocratas orientados pelos princípios capitalistas clássicos da racionalidade e do cálculo, os gestores incorporam também elementos que até aparentam ser anti-sistémicos, mas que na realidade se constituem como tábuas de salvação do capitalismo. Para ir mais longe, os gestores até integram na sua classe elementos que podem, em casos extremos, conceber a edificação de uma sociedade metacapitalista, como tu analisaste nos Labirintos do fascismo, a propósito do caso nazi. Ou seja, gestores que balizam a sua intervenção por princípios ideológicos (no caso nazi, rácicos) e não por princípios socioeconómicos. Porque o nervo central dos gestores capitalistas também agrega sectores aparentemente díspares, esse sim parece-me um mistério social por explicar mais aprofundadamente.

    Como nota final, para quem estiver interessado pode encontrar, em inglês, o livro Terrorismo e comunismo do Trotsky aqui: http://ia700202.us.archive.org/7/items/cu31924030320810/cu31924030320810.pdf
    Recomendo a leitura das páginas 98 a 176.

    Um abraço

  4. Pieter Cornelis,

    obrigado pelo seu comentário.

    «sensacional resiliência criativa e transformadora do próprio capitalismo – justamente nesses momentos em que foi colocado radicalmente em questão».

    Essa é a questão que o João Bernardo melhor explicou e que tem tudo a ver com a interrogação no meu comentário anterior: ” Porque o nervo central dos gestores capitalistas também agrega sectores aparentemente díspares, esse sim parece-me um mistério social por explicar mais aprofundadamente”. Quer dizer, parece-me hoje relativamente garantido que isso decorre da capacidade de o capitalismo utilizar as lutas sociais de modo a relançar novos ciclos de acumulação. Creio que o fordismo e o toyotismo nunca seriam o que foram (e o que são no caso toyotista) sem a prévia ocorrência de grandes lutas sociais que, ao serem recuperadas institucionalmente pelos gestores e pela esquerda dos gestores, introduziram novos elementos para a modernização do próprio capitalismo. Se calhar o facto mais espantoso da nossa actual conjuntura é que toda a gente à esquerda diz que o capitalismo está ligado à máquina, mas entretanto ocorrem dois outros fenómenos que demonstram o inverso: 1) o capitalismo continua a ampliar-se nos chamados países emergentes e mesmo nalgumas das economias mais avançadas, os EUA e a Alemanha, continuam a crescer. No caso americano com dificuldades e debilidades, mas quem é que, no capitalismo, cresce sem ao mesmo tempo desenvolver novos problemas e novas contradições que levaram a novos rearranjos no futuro?; 2) se os trabalhadores não conseguem hoje a criação de movimentos transnacionais de luta isso significa que a coesão das instituições capitalistas não está em causa. Para um sistema ligado à máquina, como uma historiadora da moda em Portugal gosta de repetir incessantemente, o facto de a economia mundial capitalista continuar a crescer; o facto de as áreas de criação de novos negócios se expandir a novas áreas (então a capacidade de exploração do trabalho intelectual não parece esgotar-se tão cedo); e o facto de os capitalistas manterem intacta a ordem institucional, para moribundo o capitalismo não se tem saído mal. Creio que as ilusões perante o real estado do capitalismo só serve para se continuar a repetir os mesmos erros do passado e para repetir as mesmas loas patéticas e rituais aos grandes dirigentes da classe operária. Repito o repto que fiz no comentário anterior, e que o João Bernardo em boa hora lembrou no seu comentário, e sugiro às pessoas que leiam o livro “Terrorismo e comunismo” do Trotsky. Verão como a desfaçatez de se defender o escravismo como forma de pretensamente construir o socialismo nem hoje, passados mais de 90 anos, tiveram efeito nalguns milhares de pessoas que continuam a atribuir a líderes plenipotenciários propriedades que roçam a fé religiosa. E onde o irracionalismo irrompe, não será a luta social a avançar. Pelo menos por ali isso não ocorrerá.

    Saudações!

  5. João,

    o Terrorismo e Comunismo do Trotsky foi publicado no Brasil em 1968 pela editora Saga. Tenho uma cópia em casa, se quiser posso digitalizá-la.

  6. Muito obrigado pela excelente resposta João Valente e, de fato, saber por qual motivo “o nervo central dos gestores capitalistas também agrega sectores aparentemente díspares” é, com certeza, uma das principais tarefas de “um mistério social” que precisamos compreender para o desenvolvimento racional e mais lúcido das lutas sociais.

    Agrego, ainda, que o comentário de João Bernardo foi de grande valia e ensinamento. E, pedindo licença é claro, gostaria de dizer ao Manolo que muito me interessa a digitalização de tal escrito – quando e se for possível, evidentemente.

    No mais, impressionante como discussões tão importantes e desafiadoras como esta não provocam milhares de polêmicas e debates que geralmente causam outros temas, mais em moda em “uma grande parte do que, por razões complexas, continua a chamar-se esquerda” – como bem disse João Bernardo recentemente. Mais do que triste, é algo que deveria nos chamar atenção e despertar profunda preocupação.

  7. Pieter Cornelis,

    «impressionante como discussões tão importantes e desafiadoras como esta não provocam milhares de polêmicas e debates que geralmente causam outros temas, mais em moda em “uma grande parte do que, por razões complexas, continua a chamar-se esquerda” – como bem disse João Bernardo recentemente. Mais do que triste, é algo que deveria nos chamar atenção e despertar profunda preocupação».

    Concordo ponto por ponto com todo o seu comentário. Acrescento apenas o seguinte.

    Todo o meu balanço sobre a merda que é a esquerda nacionalista e miserabilista dos gestores está condensado na sexta parte do artigo “Marx e a nação”. Esse é o ponto da situação sobre a esquerda dos dias de hoje: uma esquerda que, junto com o capitalismo hoje dominante, terá de ser totalmente rejeitada por uma futura vaga de lutas sociais dos trabalhadores.

    Poderão surgir sempre novas formas de hetero-organizar a autonomia dessas lutas. Mas se daqui a um, dez ou cem anos os trabalhadores forem capazes de se organizar colectivamente, sem chefes, sem iluminados e conseguirem rejeitar que todo este lodo estrutural da esquerda nacionalista e estatista empeste as lutas, já terá valido imensamente a pena. Sem querer fazer futurologia, se tal viesse a suceder, essa seria a maior conquista da classe trabalhadora desde que descobriu na Comuna, em 1916-21 e em 1968-75 que pode gerir o processo de produção sem a cisão entre as funções de direcção e de produção da vida social. Essa seria a conquista de uma autonomia assinalável para a classe trabalhadora: seria a luta a partir da qual os erros do passado já estariam política e teoricamente assimilados. A partir de então, o que já não seria pouco, só teriam de se preocupar com os erros e as naturais asneiras do (seu) presente.

    Até que isso aconteça a esquerda nacionalista e miserabilista dos gestores só servirá para que a parte politicamente mais rebelde da classe trabalhadora seja levada a sucessivos becos sem saída e a inúmeras experiências cheias de cadafalsos, fomes e teleologias.

  8. “Mas se daqui a um, dez ou cem anos os trabalhadores forem capazes de se organizar colectivamente, sem chefes, sem iluminados e conseguirem rejeitar que todo este lodo estrutural da esquerda nacionalista e estatista empeste as lutas, já terá valido imensamente a pena.”

    – O primeiro passo é rejeitar esta conversa, esta tentativa de trazer uma espécie de sentimento de culpa à maior inclinação constante e portanto talvez normal que cada trabalhador e cada pessoa sente pelo seu país. Então, direi apenas que não é pecado dar precedência ao próprio país. Os trabalhadores poderão ficar informados que do pessoal do Passa Palavra e afins não há que contar para a defesa do interesse nacional e que, portanto, no dia em que este pessoal representasse os trabalhadores portugueses em reuniões internacionais os portugueses poderiam estar certos de uma recusa militante em defender o interesse nacional, ou melhor, que tal ideia sequer exista.

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