Enquanto não puder ou não aprender a limpar a própria bunda, a multidão não irá muito longe. Por Leo Vinicius
Sempre se pode acrescentar algo, certamente, com o passar do tempo e diante de novos fatos. Mas por ora basta uma nota de rodapé [*], já que fiz análises sobre o junho de 2013 em 2005/2006. Por isso aqui me dedico a outras coisas.
O que nunca se fez foram relatos e análises dos banheiros dos Acampamentos da Juventude do Fórum Social Mundial nas suas edições realizadas em Porto Alegre. Um vazio de história que cabe ser preenchido.
Como se sabe, o Fórum Social Mundial (FSM) foi criado pela esquerda institucional para aproveitar o momentum das manifestações altermundistas, ou “antiglobalização”, que ocorriam pelo mundo na virada do milênio. Uma tentativa talvez de capitalizar ou canalizar aquilo que tinha expressão nas ruas. Naquela época, e com o sucesso editorial do livro Império de Antonio Negri e Michael Hardt, falava-se já que a onda de manifestações e movimentos que ocorria – um “movimento de movimentos” – era expressão da multidão, conceito criado por Negri, Hardt e Paolo Virno. Multidão seria uma forma de existência do proletariado, uma pluralidade de singularidades (de movimentos, de identidades, de experiências), sendo vinculada por esses pensadores primordialmente ao que eles chamam de intelectualidade de massa e ao conceito de hegemonia do trabalho imaterial. De fato, o conceito de multidão parecia se ajustar à característica do movimento ser formado por inúmeros movimentos, identidades, experiências, culturas e tradições diferentes, mantendo-se a singularidade de cada um num processo de alianças e convergências.
A primeira edição do FSM ocorreu em Porto Alegre, no verão de 2001. As duas edições subsequentes, 2002 e 2003, também ocorreram na mesma cidade, cada vez com mais participantes. Minha experiência no FSM se limitou a três edições, todas em Porto Alegre: 2002, 2003 e 2005. Dessas, nas duas primeiras, 2002 e 2003, fiquei instalado no Acampamento da Juventude. Só trago lembranças boas do FSM, talvez mais pelos eventos paralelos, sendo do primeiro ano em que fui que guardo as lembranças mais intensas. Sobre elas já escrevi na época, mas não toquei no que também foi uma experiência inesquecível: a primeira vez que abri a porta de um dos inúmeros banheiros químicos do Acampamento.
Posso dizer que o susto era compartilhado por todos os conhecidos. Uma cena de horror, quase uma cena de crime. Não respirar era inevitável. A certeza era de que eu deveria fazer de tudo para não precisar utilizar aqueles banheiros para o “número 2” durante os cinco dias que ficaria em Porto Alegre. Sem dúvida em cada manhã era um estímulo a mais ir à PUC (onde ocorria grande parte dos eventos do Fórum) ou aos eventos paralelos. Ia pensando não apenas na programação, mas nos banheiros limpos que encontraria. E torcendo para quando estivesse lá, surgisse a vontade de usá-los. Coisa que não acontecia.
Acho que foi no penúltimo dia que ela veio e, claro, de acordo com a lei de Murphy, eu estava no Acampamento. Bem, fui cumprir a tarefa. Entrei num dos banheiros químicos. Até hoje não me esqueço dos detalhes dessa experiência. Primeiro, fiquei olhando para o objeto do lado esquerdo, tentando entender se era uma pia ou um mictório entupido. Confesso com toda a sinceridade que até hoje não sei, até porque ficava numa altura nem cá nem lá. A certeza era de que o líquido que enchia o recipiente era urina. Pensei numa técnica para fazer o que tinha ido fazer lá sem encostar em nada, ou o menos possível, e assim sucedeu.
Foi realizando a atividade naquelas condições – na situação real – que pude começar a levantar uma hipótese racional do motivo dos banheiros ficarem naquele estado. Afinal eram utilizados em maior parte por socialistas, gente politizada, que não deveria ver diversão em sujar propositalmente o próprio banheiro que teria que usar. A minha hipótese era de que uma vez sujo, e quanto mais sujo ficasse, mais difícil se tornava realizar com eficiência a tarefa que levava o sujeito ao banheiro (e dentro dos critérios de eficiência está o de manter o banheiro limpo). Trocando em miúdos, quanto mais sujo o banheiro ficava mais a forma de realizar a tarefa de modo a não se sujar aumentava a probabilidade de sujar o banheiro…
Como o trabalhador, que no seu dia-a-dia realiza sua atividade buscando conciliar uma série de objetivos – qualidade do produto, menor esforço, menor tempo, sua própria segurança etc. -, o usuário do banheiro tentaria realizar a tarefa conciliando da melhor forma possível as exigências postas. Assim como na maioria dos acidentes de trabalho, sujar o banheiro poderia ser visto como resultado de não se conseguir alcançar com eficiência todos esses objetivos, por vezes contraditórios.
Lembro claramente que em 2003 as pessoas buscavam alternativas aos banheiros do Acampamento, caminhando de manhã até o shopping center mais próximo, por exemplo.
Numa noite dos primeiros dias do FSM de 2003, após enfrentar a fila dos chuveiros e ter tomado banho, fui usar um dos banheiros químicos. Naquele momento tive outra experiência inesquecível. Pouco depois de entrar no banheiro ele começa a balançar fortemente. Tive que colocar as mãos nas paredes para me equilibrar. Não tive dúvida de que alguém do lado de fora estava fazendo aquilo propositalmente, embora não soubesse com qual intuito. E por não imaginar qual o intuito, me vinha à cabeça como possibilidade a intenção de virarem o banheiro comigo ali dentro. Sempre imaginamos a pior possibilidade nessas horas, e estar dentro de um banheiro daqueles virado é a própria descrição dos fantasmas que assombram nosso inconsciente. Líquidos pingavam de algum lugar alto e molhavam meus braços e ombros. Não sei até hoje que substância era. Mas, pensando posteriormente, é possível que fosse resto da água que usavam para limpar os banheiros. No ano anterior eu via funcionários de empresas contratadas limpando os banheiros químicos com potentes jatos de água.
Para usar um lugar-comum, aqueles segundos pareceram uma eternidade. Até que pararam de balançar o banheiro. Saí muito irritado e me deparei com dois rapazes, que, se não me engano, riam. Eles estavam atrás de mim esperando para usar o banheiro, e pelo jeito resolveram fazer uma brincadeira quando entrei. Fui na direção deles muito, muito irritado. Até porque havia acabado de tomar banho (e enfrentado a fila para isso), e algum líquido não determinado havia caído sobre meus braços. Olhei em volta para ver se via algum segurança para denunciá-los, mas não vi nenhum. Pedi satisfação aos rapazes. Provavelmente já haviam bebido alguma coisa. No final, vendo minha indignação, até me disseram onde estava a barraca deles, e que eram estudantes de Direito da USP. Bem, mas tudo ficou por isso mesmo.
Na minha última experiência no FSM, em 2005, embora tenha frequentado praticamente apenas o Acampamento da Juventude e eventos que por lá aconteciam, não foi lá que fiquei alojado, e realmente não tenho recordação dos banheiros a não ser os do alojamento em que fiquei, bastante bons por sinal, até porque o número de pessoas usando-os era relativamente pequeno.
Relembrando os banheiros do Acampamento da Juventude do FSM, podemos constatar uma hegemonia do trabalho imaterial ali? Bom lembrar que no conceito de trabalho imaterial, o imaterial é apenas o produto. Sem dúvida devido à imaterialidade do produto tínhamos que prender a respiração, mas havia algo de muito material que só desaparecia se fechássemos os olhos e perdêssemos o tato. Era uma produção material da multidão necessária à própria reprodução de sua vida. Chamaria isso de uma bioprodução. É necessário falar não apenas de uma biopolítica, mas de uma bioeconomia, muito esquecida pelos teóricos da multidão e da hegemonia do trabalho imaterial. Por não possuírem, não constituírem ou auto-organizarem meios de reprodução, a multidão buscava os shopping centers e as respostas heterônomas à sua reprodução. Claro, não quero aqui dizer que as pessoas deviam construir seus banheiros no Acampamento. Apenas o que ocorria ali era um espelho do que ocorria no cotidiano fora dali.
Sem a tomada ou a constituição dos meios de produção que sejam meios de (bio)reprodução, sem o poder de dar a si própria soluções para sua reprodução, a multidão nunca poderá ir além de zonas autônomas temporárias. O trabalho imaterial é hegemônico na produção de valor (de troca), mas não na constituição de um mundo para além do capital.
Enquanto não puder ou não aprender a limpar a própria bunda, a multidão não irá muito longe. A democracia será aquela dos shopping centers, dos Mc Donald’s, dos Bob’s. Claro, de vez em quando podemos quebrar suas vidraças…
Nota
[*] Existe uma lição histórica no junho de 2013 no Brasil. Um fenômeno nunca visto antes na história da luta de classes – se alguém tem outra referência nesse sentido, peço que compartilhe. E por nunca ter ocorrido antes, nos falta um conceito para nomeá-lo, que sintetize a sua compreensão. Trata-se da “transformação” de mobilizações de esquerda – originadas no campo da esquerda e com bandeiras de esquerda – em mobilizações hegemonizadas e direcionadas de alguma forma pela direita, apontando até mesmo a uma gênese de massas que alicerçam o fascismo. Tratar-se-ia de “ressignificação”, “aparelhamento”, “recuperação”, “manipulação”, “assimilação”? Creio que nenhuma dessas noções ou conceitos corresponde ao fenômeno que ocorreu. Que mobilizações populares desencadeadas pela esquerda, com bandeiras de esquerda, possam ser reduzidas a uma espécie de estopim por serem transmutadas em seguida em mobilizações massivas direcionadas pela direita, através dos meios de comunicação, é um dado novo da luta de classes e que terá que ser levado em conta de agora em diante. A “mutação” ocorrida agora não é mais uma tática desconhecida. Ela entrou no rol das possibilidades, para a qual os anticapitalistas devem estar preparados para lidar ou neutralizar na medida do possível.
As fotografias são da coleção Shit, de Andres Serrano.
O que eu conclui do texto:
Esquerda e direita produzem merda
A esquerda não sabe lidar direito com a própria merda.
Um demolidor ensaio, magritteano & patafísicoescatocoprológico, sobre o toninegrismo: fatigada variante especulativespetaculista do autonomismo de cátedra.
o nome dessa mutação não seria “manobra de massa”? coisa que já rolou muitas vezes na história?
Victor,
O nome disso é “construir ato pelo facebook”. E é novo na história porque o facebook não existia. Muita gente ficou contente com os números, mas não sabia exatamente quem estava chegando.
Tem outras coisas: a conversinha do “fora os partidos” foi sempre insuflada pelos anarquistas, punks, black blocks e assemelhados. Até o momento em que acabou sendo aceita pela massa classemedista que foi para os atos.
o texto me parece apontar justamente para uma compreensão mais afinada da multidão, não negar a sua existência ou o seu conceito.
excesso de trabalho imaterial dá nisso: nos tornamos escravos de quem nos provê o material. Quantos sabemos usar a internet, e quantos sabemos como a internet funciona? Não é a toa que são os jovens os desempregados da vez, hordas e hordas de gente que acha que ganha um salário digno fazendo bicos ou com empregos dos mais precários. E a verdade é que somos, como bons cognitariados, excelentes em resolver problemas:
podemos desenvolver infinitas técnicas de como cagar sem se sujar numa cabina imunda, fazer posts sobre isso, tirar fotos, debater o tema a fundo. Com o intuito de não ter que limpar vamos longe (e também está a melhor parte, que é: quanto mais suja a cabine menos vontade de cagar ali e consequentemente sujarão cada vez menos para além de um limite: conseguimos ver algo de bom ao nos colocarmos todos em uma situação de merda coletivamente).
Me faz lembrar um comentário que fiz no último texto da série do João Bernardo sobre ecologia: gente cada vez mais interessada em “autoabastecer-se” de tomates, mas que não dá a mínima para saber como a água chega à sua casa para a rega, como a terra que compra chega até o supermercado de seu bairro, como pagam o seu salário: para eles, a liberdade está em se plantar o próprio tomate.
Não seria isso um tipo de espaço seguro, idílico, uma modalidade de autodefesa subjetiva contra a verdadeira multidão das relações sociais?
outras reflexões sobre o asterisco do texto:
não se pode perder de vista os efeitos materiais de Junho, como a redução da passagem do transporte público em centenas de cidades brasileiras. Ou seja, a pauta do transporte público teve efeitos duradouros que não se esvairão tão rápido quanto às emoções da tal “guinada à direita”. Guinada essa que não deixou marcas políticas maiores do que a emoção. Também subjaz a pauta pela desmilitarização da polícia, o que parece ser a grande temática por trás do fenômeno dos Black Blocks, encavalado por Amarildos e afins, polarizando como nunca setores da população contra as forças policiais militares especialmente em SP e RJ: a repressão em Junho deixou esta marca que continua a doer em muita gente.
Cito estes dois pontos para trazer a tona efeitos que parecem perdurar pelo lado da esquerda, enquanto que tenho dificuldade em ver análogos ou contrapontos da direita: até que ponto podemos avaliar a guinada à direita como um verdadeiro acontecimento político, se não apenas um fenômeno passageiro de massas (e de midia), tal qual uma Zombie Walk a nível desproporcional?
De qualquer forma, esboço aqui no esteio de um senso comum da juventude esquerdóide (na qual estou inserido) alguns apontamentos e possíveis superações:
1) “o que falta é o povo ir às ruas!”
– o povo esteve nas ruas. Abaixou a passagem, uma vitória. E o resto da revolução, não viria quando o povo fosse para as ruas?
2) “o que falta é devolver a violência nas ruas!”
– a violência está devolvida nas ruas. Os professores ainda estão em greve e cada vez mais militantes são presos (os que estão detidos, voltarão tão cedo para às ruas, ou mesmo para a militância? Os estudantes talvez sim, mas e quem tem familia para sustentar?)
Talvez no final o bom de tudo isso é que fica cada vez mais claro que o assunto é bastante complexo. João não vai mais poder simplesmente dizer que o que falta é o povo nas ruas, Maria não vai dizer que o brasileiro é um povo passivo, com ares cínicos e desdenhosos. Quer dizer, talvez sigam dizendo isso, mas no fundo eles vão lembrar desses meses e vão ter que construir uma narrativa própria para o que ocorreu/está ocorrendo. Esta convocação subjetiva já é um avanço num contexto onde tudo parecia estar estático e apático. Talvez isso queira dizer que atualmente entregar um panfleto na mão de um transeunte tenha efeitos diferentes do que há um ano atrás. Talvez.
Então, fica combinado assim: seguimos relendo Machado de Assis [obra completa, 3 volumes, com mais de 1.000 páginas cada] e desfrutando imenso prazer – beamongtween other books… OXENTE!
O “cheiro” (gás) é tão material quanto o sólido. O estado da substância é que é diferente.
A questão não seria como essa multidão numa posição hegemônica da produção de valor conseguiria, com esse poder, determinar através da política, em sentido amplo, uma mudança de direcionamento da produção e dos objetivos da produção em geral?
Victor,
para saber se aconteceu antes na história, seja com que nome se chame, seria bom citar esses exemplos. A partir deles poderíamos discutir o que há de semelhante e diferente em cada um.
Jéssica,
acho que uma das lições de junho foi que a grande imprensa, principalmente a TV, ainda possui um poder gigantesco. Foi por conta dela e não por conta da internet ou facebook que as manifestações se transformaram depois do dia 13, pelo enos em parte, em uma plataforma para a direita e extrema-direita.
Também acho que serviu de alerta para os libertários de que o discurso e prática apartidária não é necessariamente libertária. Porém, quem dera que o discurso libertário fosse assim aceito pelas massas. O repúdio aos partidos não é consequencia de propaganda libertária, mas da prática dos partidos. Como já dizia Bakunin, a propaganda não pode fazer nada além do que despertar ou tornar claras paixões já existentes, mas jamais pode criá-las.
Lucas,
também acho que no final das contas a esquerda, os movimentos de esquerda, é que saíram ganhando. Até pela continuidade de manifestações, que se vê principalmente no Rio, onde se obteve outras conquistas.
Operário gay,
De fato o cheiro é tão material quanto o sólido ou líquido que vemos. Mas isso só mostra que a produção imaterial da multidão feita nos banheiros do Acampamento tendia a zero.
No Rio de Janeiro, que é o grande exemplo de 2013, o depois de junho seguiu pela luta em prol do Amarildo e em prol dos professores. Pautas com lacre anti-coxinha.
Em São Paulo, a falta de uma pauta do mesmo porte impossibilitou que a energia fosse direcionada nesse sentido. Derrotar os coxinhas sem sair da rua. Mas quem teria coragem de chamar uma luta em prol do Daleste ou do Dj Lah(os Amarildos do momento) numa esquerda toda classemedista?
Para se ter um parâmetro, passadas décadas, ainda não se conseguiu criar uma força mínima em SP capaz de fazer um ato contra a ROTA – o grupo de extermínio do Estado. O grupo que chamar um ato em frente ao prédio das Rondas Ostensivas vai entrar para a história.
Eu discordo de você porque eu vejo mais fragilidades internas e erros táticos do que um tal poder da TV. Exemplo é que as coisas foram diferentes no Rio, na Bahia e em outros cantos. Em SP, faltou base popular e tática.
Jéssica,
Meu tempo de análise foi o mês de junho apenas.
Em junho, com o uso dos grandes meios de comunicação, houve uma transformação nas manifestações, inclusive no Rio. Aqui o Passa Palavra apresentou Salvador como a possível única exceção.
Claro, passada essa onda impulsionada pela mídia burguesa, só a esquerda continuou nas ruas.