Por João Valente Aguiar
Entretanto, no rescaldo da Comuna de Paris, Marx publica A Guerra Civil em França. Também neste importante escrito político a tensão entre a nação e a libertação internacional está presente. E se mantém por resolver.
Passagens como as seguintes demonstram claramente a existência de um vector emancipatório no pensamento político de Marx:
«o primeiro decreto da Comuna, por isso, foi a supressão do exército permanente e a sua substituição pelo povo armado» ( A Guerra Civil em França);
«em vez de continuar a ser o instrumento do governo central, a polícia foi logo despojada dos seus atributos políticos e transformada no instrumento da Comuna, responsável e revogável em qualquer momento. O mesmo aconteceu com os funcionários de todos os outros ramos da administração. Desde os membros da Comuna para baixo, o serviço público tinha de ser feito em troca de salários de operários» (idem).
Todavia, outras passagens mantêm uma perspectiva estatista e até nacionalista:
«As poucas mas importantes funções que ainda restariam a um governo central não seriam suprimidas, como foi intencionalmente dito de maneira deturpada, mas executadas por agentes comunais, e por conseguinte estritamente responsáveis. A unidade da nação não havia de ser quebrada, mas, pelo contrário, organizada pela Constituição comunal e tornada realidade pela destruição do poder de Estado, o qual pretendia ser a encarnação dessa unidade, independente e superior à própria nação, de que não era senão uma excrescência parasitária» (idem);
«O antagonismo da Comuna contra o poder de Estado foi tornado erradamente como uma forma exagerada da antiga luta contra a ultra-centralização» (idem).
A deturpação a que Marx alude na penúltima citação era, na realidade, a dimensão de organização democrática de base dos trabalhadores e, num exercício de quadratura do círculo, ao lado de uma estrutura central estatal (e nacional/francesa) existiria uma organização proletária de base… Dada a curta duração da Comuna e dado o desfecho horripilante que os operários da Comuna sofreram às mãos do exército assassino de Thiers, poucos foram os que verificaram a incongruência estrutural entre a manutenção de um aparelho de Estado central e hierarquizado e uma organização proletária e democrática de base (The Bolsheviks and workers’ control: the state and counter-revolution).
Com efeito, é bizarra a postura de Marx. Ao mesmo tempo que via no poder de base dos trabalhadores a «forma política finalmente encontrada», Marx apresentava a necessidade de não quebrar a «unidade da nação» sob o auspício da manutenção de certos serviços estatais centrais. Marx ainda vai defendendo algum tipo de revogabilidade dos delegados eleitos para o aparelho de Estado. Porém, ele é taxativo na necessidade de reconciliar os organismos de base com o Estado central: «o antagonismo da Comuna contra o poder de Estado foi tornado erradamente como uma forma exagerada da antiga luta contra a ultra centralização».
Mas como conciliar dois princípios de organização social totalmente antagónicos? Se não eram considerados antagónicos por Marx então, do ponto de vista mais conceptual, é possível que afinal Marx nunca tivesse rompido totalmente com a dualidade hegeliana Estado/sociedade civil, que marcou as suas primeiras obras. No final de contas, a rejeição posterior daquele par binário, como passo para a superação do capitalismo, só se teria consumado no plano teórico mais abstracto. No plano político e num nível mais baixo de abstracção teórica, como o caso da avaliação da Comuna de Paris demonstra, o Estado – e todas as categorias e processos a si associados – continuou sempre a ser bússola de orientação das expectativas emancipatórias do marxismo ortodoxo.
Repare o leitor que não estou aqui simplesmente a discutir teoria. Muito pelo contrário, interessa-me discutir e debater as razões pelas quais a teoria económica que abriu todo um novo caminho na descoberta, descrição e explicação dos mecanismos fundamentais que animam a exploração e o funcionamento global do capitalismo, é a mesma teoria que vive lado-a-lado com enunciados políticos que potenciam a penetração do nacionalismo no seio da esquerda. Dito de uma maneira mais directa, porque na obra de Marx coexiste um vector totalmente anticapitalista e antinacionalista expresso na análise da exploração e da mais-valia e um vector eivado de nacionalismo e de estatismo? Se o nacionalismo e o estatismo correspondem a formas políticas e ideológicas pertencentes à constelação de fenómenos que compõem uma formação social capitalista, então a sua coexistência na obra de um dos mais importantes cientistas da história da humanidade dificilmente pode resultar de uma vulgar incoerência lógica ou teorética.
É evidente que existe no plano teórico uma dissonância entre a teoria da exploração económica e aspectos estruturantes da sua teoria política. O que aqui me importa é tentar ver de que forma o estatismo e o nacionalismo encontram-se presentes em obras de referência de Marx e de Engels. Nada do que digo aqui é novo, apenas considero que a ampliação da análise das obras dos dois autores dá conta da tensão entre os vectores emancipatório e estatista/nacionalista que percorre algumas das suas mais significativas obras políticas. Por outro lado, o nacionalismo está presente nessas obras de modo mais sub-reptício, o que permite confundir as coordenadas entre o nacionalismo e o internacionalismo e entre o estatismo e a apropriação colectiva dos meios de produção pelos trabalhadores.
Mas se essa tensão está presente, isso não significa que ela tivesse necessariamente de se desenvolver no sentido de dar primazia cada vez mais absoluta ao vector estatista. Contudo, não existem respostas definitivas sobre as razões porque essa tensão se desenvolveu historicamente ao longo de todo o século XX no sentido do estatismo e do nacionalismo, e porque as múltiplas esquerdas de raiz marxista se desenvolveram nesse sentido. Explicitando, as incongruências teóricas não se registam apenas nesse plano. Tratando-se do cientista e do político que mais influência teve no desenrolar das lutas sociais dos últimos 150 anos, as suas pistas analíticas detêm sempre um carácter prático e político. Só no diálogo e confronto entre os dois planos – prático e teórico – podem teses teóricas e políticas mutuamente conflituantes encontrar uma possível explicitação.
Nesse sentido, façamos uma abordagem marxista a Marx. Se a análise marxista das classes sociais estiver no fundamental correcta, então uma possível via de explicação poderá advir desse mesmo terreno. Isto é, se existe uma conexão entre a produção das ideias, das imagens e das representações simbólico-ideológicas e a dinâmica conflitual das classes sociais, então talvez se possa pensar a tensão na obra de Marx a partir do estado de fusão entre as lutas operárias e os interesses da classe dos gestores (Bernardo 1979: 7-39; 57-62). Se João Bernardo estiver correcto na análise que faz da “colagem” da invisibilidade da acção política e organizacional dos gestores às lutas operárias do século XIX, então surge como relativamente perceptível que a estrutura bidimensional de classes que Marx e Engels apresentaram redundava na omissão das práticas e da existência dos gestores naquele tempo. A base teórica classista de colocar os trabalhadores de um lado e os capitalistas proprietários do outro estaria correcta, mas só parcialmente, na medida em que não existiria apenas uma classe capitalista mas duas: 1) os capitalistas proprietários jurídicos dos meios de produção e 2) os gestores responsáveis pela direcção e controlo do processo de trabalho e das várias cinturas em redor da produção propriamente dita: Estado, instituições de concertação a nível internacional, direcções de organizações políticas e sindicais burocráticas. Ora, se uma das duas classes dominantes não está presente no modelo marxiano original, isso significa que essa omissão no plano das classes poderá ter sido coincidente com a incorporação de elementos político-ideológicos provenientes dos interesses dos gestores.
Por conseguinte, sabemos que:
1) Marx analisou a economia capitalista de um lado e a estrutura política estatal do outro, reproduzindo com isso as teorias liberais e hegeliana que colocavam o Estado (e a comunidade nacional) como contraponto ao mercado entendido como uma miríade de actividades empresariais privadas;
2) Marx focou de sobremaneira os seus estudos económicos no caso britânico do laissez-faire e não outros casos de ascensão do capitalismo durante a sua própria vida, como os distintos casos alemão bismarckiano ou japonês do pós-restauração Meiji. A mesma metodologia é utilizada por muitos intelectuais marxistas dos nossos dias quando procuram estabelecer uma equivalência da actual crise económica na zona euro com a globalidade da economia mundial e com uma putativa crise final do capitalismo. No caminho esquecem-se que o capitalismo continua a expandir-se a um ritmo apreciável nas chamadas economias emergentes;
3) o espaço preferencial onde os gestores começaram por operar se encontrava no Estado e menos nas empresas. Este aspecto talvez ajude a iluminar o campo da acção dos primeiros gestores no seio das organizações operárias e no seio do aparelho de Estado. Marx e Engels veriam esta circulação de gestores entre as duas esferas como resultado do “cretinismo parlamentar” e da formação de uma “aristocracia operária”. Limitada a crítica às organizações operárias à sua dimensão impressionista e descritiva, os processos estruturais de fundo manter-se-iam incólumes. Reduzidos os problemas do movimento operário da segunda metade do século XIX a meras decorrências de traições e de apego pessoal ao poder, Marx e Engels foram incapazes de apreender o que ali estava em causa: a utilização das lutas operárias (entretanto derrotadas pela perda de dinamismo na base) como forma de regeneração dos quadros dirigentes estatais e empresariais;
Portanto, tomando conhecimento destas três dinâmicas, talvez se possa retomar e avançar com a proposta polémica mas prudente de que o marxismo original condensou a coexistência dos interesses do proletariado enquanto classe anticapitalista e com potencialidades de desenvolver lutas internacionais, com os interesses dos gestores em franca ascensão no aparelho de Estado.
Se, no plano intelectual e político, a coexistência conflitual e contraditória entre o nacionalismo e o internacionalismo era o dado mais presente na obra de Marx, doravante o marxismo expresso na II Internacional e no leninismo desenvolveria o vector estatista e nacionalista a um tal grau que, nos dias de hoje, quase não existe organização de esquerda, de qualquer filiação política, que não defenda pontos de vista inseridos nessa plataforma. Assim, talvez seja igualmente possível explicar a permanência e mesmo ampliação de teses nacionalistas em grande parte da esquerda. Precisamente por isso ela se foi constituindo como um dos múltiplos veículos de fornecimento de quadros para a classe dos gestores, nomeadamente no que diz respeito à relação entre as instâncias parlamentar, governativa e municipal do Estado e as organizações da esquerda.
Antecipo, entretanto, alguns breves desenvolvimentos apresentados na parte 6 deste artigo. Quando a defesa da auto-organização dos produtores e do internacionalismo é relegada para uma posição ultraminoritária à esquerda, percebe-se que a grande maioria da esquerda se tenha tornado historicamente num campo de regeneração dos gestores. Foi-o de modo mais marcante e central nos regimes de capitalismo de Estado e no quadro fordista das democracias liberais. Mas não será a saudade desses tempos ainda vivos na memória de muitos que justificará o apego, cada vez mais idealista e moralista, da esquerda à nação, à economia planificada e ao Estado?
Estaria a ser igualmente idealista se dissesse que foi o pensamento de Marx que definiu em absoluto a orientação nacionalista e estatista de grande parte da esquerda subsequente. As ambiguidades e os contra-sensos teóricos apenas lavram quando encontram terreno fértil para tal. As organizações políticas, sindicais e sociais de esquerda subtraíram e subtraem o marxismo ao vector nacionalista quando se transformam em instâncias de formação de novos (candidatos a) gestores. E assim a esquerda não apenas transforma o marxismo num moralismo justiceiro nacionalista e estatista. Ao direccionar as ambiguidades originais da obra de Marx num único sentido, essa esquerda contribui para lançar o esquecimento sobre as potencialidades anticapitalistas das análises marxianas da exploração económica.
Mas estarão os estudos de Marx sobre a exploração a salvo da presença de ambiguidades profundíssimas, no que toca à replicação de dinâmicas classistas sobre a classe trabalhadora?
Bibliografia desta quarta parte
BERNARDO, João (1979) – O inimigo oculto. Ensaio sobre a luta de classes. Manifesto Anti-Ecológico. Porto: Afrontamento
A série Marx e a nação. Um abraço pela frente e uma facada por trás é formada pelos seguintes artigos:
1) O nacionalismo
2) O espaço nacional no centro da constituição do proletariado em classe
3) A onda internacional ignorada
4) A Comuna de Paris: um Estado por cima dos operários?
5) Marx e os gestores
6) As duas esquerdas dos gestores
Nenhuma palavra do PP sobre as manifestações no dia do leilão de libra, nenhum relato. Ou o PP está demasiado ocupado com temas “mais essenciais”, ou os principais colunistas e escritores encontram-se ocupados na Akademia, sem tempo de olhar para o lado de fora.
Eita, mas a idéia é manter um site de reflexão e debate ou um twitter com os furos do dia?
Karl Marx escreveu um texto chamado “O Capital – Crítica da Economia Política” que, no conjunto dos seus vários manuscritos e volumes, contém mais de 4 mil páginas. Entretanto, ainda teve tempo de ajudar a fundar e a organizar a Associação Internacional dos Trabalhadores e a Liga dos Comunistas. O teoricismo só existe na cabeça dos preguiçosos que pensam poder substituir o debate político pelo voluntarismo.
Não esperamos, nem queremos, que o PP seja um retuíte do dia. Mas o debate sobre o pré-sal tornou-se relevante, não é uma quinquilharia qualquer. Tanto é assim que a direita e os neoliberais de toda cor, tomaram conta do assunto. No mínimo a esquerda anticapitalista poderia estar denunciando a segunda onda da que os tucanos começaram, e o que o PT finaliza com chave de ouro, para a banca.
E nós com isso, não é mesmo Lucas?
Só para auxiliar aos que não tem tido o tempo para a “reflexão”, segue aluns links sobre o tema:
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8955:manchete161013&catid=34:manchete
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8959%3Asubmanchete171013&catid=72%3Aimagens-rolantes&
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8958%3Amanchete171013&catid=72%3Aimagens-rolantes&
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8965%3Asubmanchete181013&catid=72%3Aimagens-rolantes&
Inclui farto material sobre a Ação Popular contra o leilao.Boa leitura , a quem se interessar pelos “temas menores”.
João, a presunção de Marx da necessidade de 2 fases no desenvolvimento da sociedade comunista,sendo a 1ª a negação do sistema da propriedade e a 2ª o comunismo gerado a partir de si mesmo, teria que papel para vc na manipulação ideológica das tensões que vc bem aponta no sistema teórico de Marx? Na práctica parece-me jogar as possibilidades de uma emancipação efetiva da humanidade para as calendas e assim resolvendo as ambiguidades no sentido do estatismo e do nacionalismo. Seria esta a principal função do campo ideológico das teorias que pensam a necessidade de fases de transição para a emancipação dos trabalhadores?
Saudações
Tiqqun,
você poderia contribuir para este debate postando aqui no PP algum texto seu sobre o tema, já que tudo indica que você esteve debruçado sobre este tema há mais tempo que os demais.
Sobre o tema do nacionalismo económico na época da transnacionalização do capital — que está subjacente à questão evocada pelo leitor que assina «tiqqun» — o Passa Palavra publicou abundantemente, e sem esperar pelo tal leilão, artigos assinados pelo colectivo, outros da autoria de João Valente Aguiar, outros meus e se não me engano mais ainda.
Rui Matias,
de facto, a questão por si colocada das fases de transição também é patente ao nível da ambiguidade de que eu tenho falado nestes artigos. Ou seja, apesar de ser inegável que existem aspectos de Marx que se propõem romper com o Estado e com a exploração, também me parece inegável que Marx quer manter a centralização do Estado e a existência de uma autoridade separada do controlo dos trabalhadores. Para se chegar ao primeiro vector (a ruptura com o Estado e sua futura abolição), nada como defender o seu reforço. Numa rede social alguém comentou este meu artigo dizendo que não estava de acordo comigo porque o Marx defendia a destruição do Estado. Em termos de princípio, isso é inegável. Contudo, de um ponto de vista concreto, a tensão entre um vector dissolvente do Estado (para uma sociedade longínqua) e a defesa de um reforço do Estado (no imediato) só podem demonstrar que o projecto é estatista. Ainda por cima, a experiência que, ao tempo, foi uma tentativa directa e imediata de extinção do Estado central pela auto-organização dos e pelos trabalhadores, Marx viu-a como insuficiente do ponto de vista da centralização do Estado…
O mais bizarro no marxismo ortodoxo é que perante as experiências autónomas e desenvolvidas pelos trabalhadores, e quando estas fracassam, o marxismo ortodoxo defende que o que falhou foi a falta de mais Estado, mais centralização de decisões, maior aparato burocrático e militar. Só isso explica que em vez de dizer que o que falta para que as experiências autónomas vençam é sempre mais e mais auto-organização, o marxismo ortodoxo defende precisamente os princípios de organização social opostos. E assim ficaríamos eternamente num capitalismo de Estado, a que chamam de socialismo, enviando a possibilidade do comunismo para as calendas gregas.
Da insurreição que vem:
“A injunção planetária a mobilizar-se ao menor pretexto – o cancro, o «terrorismo», um terramoto, os sem- abrigo – resume a determinação das potências reinantes em manter o reino do trabalho para lá do seu desaparecimento físico.
Organizar-se para lá do e contra o trabalho, desertar colectivamente do regime da mobilização, manifestar a existência de uma vitalidade e de uma disciplina na própria desmobilização é um crime que uma civilização com a corda na gargante não está nem perto de nos perdoar; é, na realidade, a única forma de lhe sobreviver.”
De Vaneigem:
” O espetáculo ideológico se mantém em dia trazendo constantamente à tona antagonismos artificiais e inofensivos: você é contra ou a favor a Briggitte Bardot, os Beatles, os velhos, a CUT, as mini-saias, a pop-art, a guerra termo-nuclear, pegar carona?”
Confesso, sem maiores ganas de precisar exatamente todos os motivos e explicações a respeito do que agora afirmarei, que as sempre presentes evocações de passagens dos situacionistas (e de grupos contemporâneos que tais, como o que assina o manifesto “Da Insurreição que vem”, Comitê Invisível e outros agrupamentos) nada acrescentam ao entendimento concreto dos complexos mecanismos de funcionamento do capitalismo – em sua interminável capacidade de expansão, incorporação das resistências e resolução dos conflitos.
Noves fora, parecem palavras jogadas ao vento, palavras de ordem de um desastre iminente. Com efeito, a derrota do capitalismo não é como vento – não chegará de repente de forma natural, sem nossa participação coletiva. Catástrofes demais são previstas – e mesmo sabendo do débito (e um pouco da culpa) que Guy Debord e Raoul Vaneigem devem pagar por essa perspectiva um pouco ultimatista de análise política e social, acho que a conta anda cara demais (e os dois também apresentaram argumentos e reflexões mais interessantes do que os seus seguidores que andam a soltar citações e manifestos por aí).
Peço desculpas se fui mais dos que aqui comentou e fugiu do interessantíssimo e fundamental assunto abordado pelo texto de João Valente Aguiar. No entanto, essa observação sobre o situacionistas está pendurada em minha garganta.
E, por fim, rapidamente sobre o texto. A pretensa oposição entre Estado e sociedade civil é muito comum entre os cientistas sociais e humanos que se dizem marxistas. Existem exemplares dessa fauna, inclusive, que defenderam (principalmente no final dos anos 1970 e início dos 1970) a sociedade civil (representada pelos movimentos sociais, organizações de bairro, clubes de mães) como a virtude frente ao Estado repressor da ditadura militar brasileira. O argumento pode até estar certo em sentido geral – já que realmente foram as organizações autônomas ao Estado e aos empresários e gestores sindicais que fomentaram a luta contra o regime ditatorial do Brasil -, mas a falta de precisão teórica em perceber que a sociedade civil era um conceito que agrupava também os capitalistas pode ter facilitado na prática o estabelecimento do clima geral de união entre empresários nacionais, gestores e organizações autônomas dos trabalhadores. Todos juntos pela democracia, contra o Estado e a ditadura, que seria somente militar – não sendo considerada civil e militar, como foi de fato o caso. É uma hipótese, ou sugestão, de reflexão em voz alta. Não que a teoria determinasse unilateralmente a realidade, mas refletia e participava de uma perspectiva concreta de alianças e interesses em jogo naquele momento da história do Brasil.
Nota final: alguns cientistas humanos e sociais brasileiros foram (e são) muito influentes em muitos movimentos sociais, sindicatos e na formação do Partido dos Trabalhadores. E, claro, já foram (e são) dirigentes e gestores dessas organizações políticas e sociais. Sociedade civil como virtude? Uma certa fração de um dito marxismo ligado aos movimentos de base (será?) dá as mãos ao marxismo ortodoxo.