Por Fagner Enrique

 

Estas considerações são resultantes de uma análise individual que faço do processo. São, portanto, minhas, não correspondendo à posição oficial do coletivo de que faço parte (o Tarifa Zero Goiânia; doravante TZ). Estando isso claro, sigamos em frente.

1. Os “camaradas” da recém-nascida Frente Independente Popular (doravante FIP-GO [1]), a nova frente de Goiânia, poderiam ter se desligado da Frente de Luta pelo Transporte Público (doravante FLTP) quando bem entendessem, e o fizeram. Não há problemas quanto a isso. Indivíduos e grupos sempre foram e são, no interior da FLTP, livres para ir e vir.

2. O processo de criação da nova frente por parte do MEPR, da UV e das pessoas ditas “independentes”, contudo, foi marcado por grandes convulsões, ocorridas em debates no Facebook [2]  caracterizados por: a) ásperas críticas às justificativas elencadas pelos militantes da FIP-GO para o desligamento da FLTP e a criação de uma nova frente (voltarei a elas adiante); b) violentos debates teóricos, envolvendo temas como “centralismo”, “stalinismo”, “horizontalidade”, “autogestão” etc.; c) inúmeras denúncias e trocas de acusações (vindas de ambos os lados, embora, a meu ver, as denúncias e acusações feitas pelos militantes da FIP-GO a alguns militantes da FLTP – sobretudo aos militantes do TZ – tenham sido e continuem sendo totalmente desprovidas de plausibilidade, sobre o que argumentarei adiante); e d) ataques pessoais e atos de deslealdade, dos mais vis (estes últimos perpetrados por mais de um militante da FIP-GO, os quais revelaram os nomes de pessoas que utilizam pseudônimos nas redes sociais, colocando-se não oficialmente – ou oficialmente, sabe-se lá – a serviço dos órgãos de repressão). A questão é: por quê?

3. Logo após o anúncio da criação da FIP-GO – e a criação de um perfil no Facebook para a nova frente – o perfil da FLTP saiu do ar. Sabotagem? Provavelmente. Depois de discussões e mais discussões, desgastantes, do nada: volta ao ar o perfil da FLTP, com uma mensagem na capa do perfil dizendo “site temporariamente fora do ar” e com uma foto de perfil com o logotipo do Anonymous (daqueles que se encontra facilmente numa pesquisa no Google Imagens) [3]. Um ataque de hackers! Será? Improvável. As pessoas que controlavam as publicações no perfil da FLTP e que dispunham da senha de administrador do perfil saíram da FLTP e foram para a FIP-GO (interessante…). Por outro lado, o Anonymous geralmente toma como alvo governos e corporações, tendo em vista divulgar informações sigilosas (as coisas estão ficando mais claras?). Além do mais, é curioso que, simultaneamente ao ocorrido, um dos militantes do MEPR tenha argumentado que a acusação de sabotagem era infundada, já que o site do MEPR havia sido recentemente retirado do ar por “hackers albaneses” (!). Pouco depois, novamente: o mesmo militante denuncia que o site do MEPR está fora do ar. Hackers albaneses, novamente (questionaram alguns)? Ou simplesmente uma manobra, levantaram outros [4]?

4. A retirada do ar do perfil da FLTP, a meu ver, foi – e continua a ser – um ato de sabotagem. Sabotagem, porque a FLTP utiliza o Facebook para convidar e informar seus seguidores [5]  a respeito de novos atos e reuniões (uma observação: a FLTP não organiza seus atos através do Facebook, ela não é um “movimento de Facebook”, pois tudo é debatido e deliberado em reuniões, com lutadores sociais reais, e, além do mais, os atos são também preparados por um trabalho de base prévio; mas, quer gostemos ou não, um dos meios de divulgação de informações mais utilizado atualmente é o Facebook). Apesar de a página ter voltado ao ar, as pessoas que continuam a militar na FLTP não têm mais acesso à página e não podem criar novos conteúdos. Ela permanece, portanto, inativa. E os militantes da FLTP permanecem à espera da boa vontade dos responsáveis pelo ocorrido para retomar o controle do perfil. O ocorrido com o perfil da FLTP só pode estar associada a uma estratégia de fortalecimento da FIP-GO via sabotagem da FLTP. Sabotagem, aliás, que um dos militantes da UV tentou justificar – num dos debates ocorridos no Facebook –, alegando que a página “já não surtia mais efeito”, ao passo que a página da FIP-GO “está apenas crescendo” [6]  (e eis que tudo se revela). Mas para quê sabotar a FLTP? Vejamos.

5. A FLTP vinha sendo marcada – pouco antes do rompimento que levou à criação da FIP-GO – por ataques infundados e recorrentes do MEPR a determinados militantes do TZ que participam da FLTP e às suas posições [7]. Ora, o MEPR – que já explicitou as razões do seu afastamento da FLTP [8], embora desprovidas de qualquer fundamentação concreta – foi o principal articulador da criação da nova frente, estimulando a UV e os ditos “independentes” a comporem com ele a FIP-GO. A meu ver, MEPR e cia. sabotaram a FLTP por guardarem certos ressentimentos, sobretudo em relação a militantes do TZ que continuam a militar também na FLTP. Vamos examinar tudo isso mais de perto.

a) Uma das polêmicas que vinham tendo lugar recentemente na FLTP é a questão da “ampliação das pautas (de reivindicações)” do movimento. O MEPR vinha acusando frequentemente os militantes do TZ de “aparelharem” a FLTP, impondo-lhe uma “pauta exclusiva”: a do transporte público. A FIP-GO acaba de repetir a mesma crítica (na nota já referida anteriormente; cf. o link disponível na nota 1 deste artigo). Trata-se de uma crítica totalmente desprovida de fundamento, pois discussões referentes à “ampliação das pautas” sempre estiveram abertas e não foram poucas as novas pautas propostas: 1) o combate à criminalização dos movimentos sociais, através de atos em solidariedade aos presos nas manifestações convocadas pela FLTP (inclusive aos presos que não são militantes da FLTP, pegos na rua arbitrariamente pela polícia), atos dos quais não participou o MEPR (seu dirigente chegou inclusive a declarar em reunião, com todas as letras, que estes atos não eram uma prioridade para o MEPR!); 2) a luta contra a precarização do transporte coletivo em Goiânia, causada, desde o não aumento da tarifa do transporte coletivo, por uma série de represálias das empresas que exploram o serviço (cortes de linhas, atraso e parcelamento dos salários dos motoristas, diminuição da frota de ônibus em circulação, entre outras); 3) a luta pela extensão do passe livre estudantil a toda a Região Metropolitana de Goiânia (doravante RMG) [9]; 4) o combate à privatização dos serviços de fornecimento de água e de saneamento básico nas cidades do entorno de Goiânia (atualmente prestados pela SANEAGO). A FLTP, portanto, sempre esteve aberta a novas pautas. E elas foram propostas. O MEPR – que, pelo que eu saiba, já não vinha participando ativamente da construção da luta em torno de todas as pautas acima referidas – retirou-se da FLTP por não conseguir lhe impor uma de suas pautas, a qual foi devidamente ouvida, debatida e deliberada numa reunião que contou com a presença de militantes do MEPR: o apoio da FLTP a uma das chapas em disputa pelo Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Goiás (doravante DCE-UFG), chapa da qual fazia parte o MEPR. Na reunião seguinte àquela na qual a FLTP deliberou pelo não apoio a todas as chapas concorrentes – dado que a FLTP é um movimento de luta social e não político-eleitoral, argumentaram alguns, eu inclusive –, dois militantes do MEPR utilizaram o momento inicial dos informes para dar um “chilique” (com vozes sendo alteradas e dedos sendo apontados a caras alheias), após o qual um deles (o patrão, o chefe) anunciou que o MEPR não participaria do próximo ato da FLTP (o outro, o subalterno, entretanto, esteve presente nesse ato e com uma bandeira do MEPR em mãos, claro). Em suma: a FLTP sempre esteve aberta a novas pautas e o MEPR a abandonou porque fez uma proposta numa reunião e a votação não pesou em seu favor. Ademais, há que se problematizar se o apoio da FLTP à chapa da qual fazia parte o MEPR teria influído em seu favor nas eleições. A meu ver, não.

b) Outra polêmica é a da forma de organização adotada pela FLTP: horizontal, com rotatividade de tarefas, com a supremacia da plenária sobre as comissões, com as deliberações obedecendo ao critério da maioria simples. Pois bem, o MEPR – que propôs em algumas ocasiões formas centralistas e burocráticas de organização e de tomada de decisões (um de seus militantes, por exemplo, propôs em certa ocasião que a “mesa” tivesse a prerrogativa de encaminhar certas deliberações em detrimento da plenária) – tem acusado o TZ de impor à FLTP essa forma de organização (“o velho e inútil exercício de elucubração intelectual pequeno-burguesa de sempre” [10]). Segundo o MEPR, essa forma de organização serve tão somente para entravar a luta e fazer o movimento se limitar a marcar sucessivas reuniões. O curioso é que houve um momento de reestruturação da FLTP – chamado à época pelos seus militantes de “Assembleia-Geral” [11] –, logo após a revogação do aumento da tarifa do transporte coletivo, no qual se debateu a forma de organização a ser adotada dali em diante pela FLTP; mais curioso ainda foi o fato de as propostas “horizontais” terem tido maioria absoluta dos votos em todas as deliberações. Ademais, ficou deliberado na Assembleia-Geral que a FLTP poderia se reestruturar – isto é, realizar uma nova Assembleia-Geral – a qualquer momento. O MEPR, contudo, consciente de que seria praticamente impossível impor sua concepção de organização centralista à FLTP, dado que nela militam pessoas de orientação libertária, decidiu “chutar o balde” e criar uma nova frente: a sua. Todavia, trata-se – e sempre se tratou – de um princípio muito simples: propostas que não convencem a maioria são rejeitadas. Mas o MEPR não consegue ser minoria, não consegue se adaptar a essa condição. Afinal, o bolchevismo, no qual ele se inspira, não é o movimento por excelência das maiorias [12]?

6. Tendo tudo isso em mente, defendo como hipótese que: a nova frente, a FIP-GO, foi pensada e organizada enquanto um agregado de grupos – minoritários no interior da FLTP e internamente autoritários e burocráticos – e de indivíduos ideologicamente afins, os quais se sentiam desconfortáveis e insatisfeitos em ter que dividir espaços de debate e deliberação com grupos e indivíduos antiautoritários e antiburocráticos, libertários. Creio que se pode verificá-lo analisando a orientação ideológica dos grupos que compõem a FIP-GO: uma orientação “marxista-leninista” ou, como eu colocaria, “stalinista/maoísta”. Tais grupos/indivíduos sentem-se agora à vontade, entre seus pares. A minoria converteu-se em maioria e é isso o que mais importa: demandas sociais concretas como a luta contra a privatização da SANEAGO ou contra a precarização dos serviços de transporte ou pelo passe livre estudantil? Deixa disso! Trata-se de demandas “reformistas” [13]! Já a conquista (e, aí sim, o aparelhamento) de grêmios escolares, centros acadêmicos e diretórios centrais de estudantes [14], isso sim é revolucionário! Coloca-se aí toda a sociedade capitalista de ponta-cabeça! A sabotagem do perfil da FLTP foi um dos momentos desse processo de afastamento com ressentimento.

7. Aliás, houve uma outra sabotagem, menos recente: o MEPR, como já colocado anteriormente, mesmo antes de se afastar oficialmente da FLTP, já vinha não participando dos atos que vinham sendo por ela organizados e das reuniões que os organizavam. Tratou-se de uma estratégia de esvaziar o movimento, deixando de comparecer às reuniões e aos atos, para acusar os que ficaram de o burocratizarem.

8. Sei que algumas pessoas vão me acusar de ter feito aqui colocações que não são “construtivas” para a luta e que só servem para “desmobilizar”. Pois bem: o objetivo deste artigo nunca foi ser “construtivo”. Portanto, não faz sentido afirmar que ele não contribui “construtivamente” para a luta. Pelo contrário, ele é – em sua essência – justamente o oposto: com ele pretendo desconstruir a falsa versão da história construída e reproduzida por aqueles que já desconstruíram a luta, deliberadamente, na prática. A luta conjunta (leia-se bem), com os grupos e indivíduos que compõem agora a FIP-GO, já foi desconstruída há muito tempo: não há mais possibilidade de debate “construtivo” com essas pessoas (se é que houve algum dia), pois elas se negaram a isso recorrentemente e com uma insistência digna de espanto. Essas pessoas não estão dispostas a “construir” conosco coisa alguma, pelas razões que eu já enumerei. A evidente sabotagem demonstra o quanto os pseudocamaradas que abandonaram a FLTP estão dispostos ao diálogo e ao trabalho “construtivo”. Não fomos nós – os que ficaram – quem os mandou sair. Saíram porque quiseram e saíram divulgando informações falsas e sabotando um movimento que era deles e nosso – nem havia, como há agora, eles e nós. Temos que ser, isto sim, “construtivos” com as pessoas que: a) reconhecem que a questão do transporte público ainda não se esgotou em Goiânia [15]; b) reconhecem que existem outras questões sociais urgentes que exigem a devida atenção (ao contrário da conquista e do aparelhamento de grêmios escolares, CAs e DCEs); c) não são autoritárias e não pretendem, deliberadamente, burocratizar um movimento de luta social. Essas pessoas existem e estão dispostas à luta.

9. Por fim, chego à conclusão que se segue: a criação da nova frente só demonstra que a aliança de classes sociais antagônicas não é feita para durar, além de ser algo que não é sequer desejável. Temos diante de nós duas frentes: a) uma de estudantes e trabalhadores que pretendem não só levar adiante a luta em prol de demandas sociais concretas do proletariado mas também organizar essa luta democraticamente (e essas pessoas não são apenas os militantes do TZ, pois a maior parte dos militantes da FLTP, muitos dos quais não pertencem ao TZ, concorda com uma tal forma de organização); e b) uma de gestores, de tecnocratas, “de esquerda”, os quais pretendem fazer da luta social um meio de alcançar fins políticos determinados: sua estratégia é a de participar de determinadas jornadas de luta social para fins de auto capitalização político-eleitoral. Aliás, foram os gestores “de esquerda” que se recusaram a continuar na frente original. O pior é que essas pessoas, ao que parece, julgam estar rompendo com uma esquerda “reformista”.

Notas

[1] A FIP-GO é atualmente composta pelo Movimento Estudantil Popular Revolucionário (doravante MEPR), pela Unidade Vermelha (doravante UV) e por indivíduos autodenominados “independentes”. A nota de afastamento da FLTP, divulgada pelos militantes da FIP-GO, pode ser conferida no perfil da nova frente no Facebook (aqui).
[2] Os debates ocorreram num grupo fechado do Facebook (aqui).
[3] Aqui.
[4] Depois das críticas, a postagem foi retirada. Aí eu postei a seguinte mensagem: “Um cara pôs uma postagem aqui dizendo que o site do MEPR tinha saído do ar (hackers albaneses atacando novamente?)… Depois de um debate em que eu disse que isso era bem conveniente – já que o MEPR está sendo acusado de retirar o perfil da FLTP do ar – e em que eu deixei a entender que isso poderia ser uma estratégia do MEPR para ‘tirar o seu da reta’, o que esse cara fez? Deletou a postagem! (Depois de falar para eu ‘me colocar no meu lugar’ e de me chamar de desrespeitoso e antiético) Pois é, né…”. Nenhum comentário à minha postagem até agora (no mesmo link da nota 2, acima).
[5] As pessoas que “curtiram” o perfil e que recebem as notificações das atualizações do perfil.
[6] Tenho um print salvo no meu computador que comprova a existência deste argumento tão revelador.
[7] Nem todos os militantes do TZ participam ativamente da FLTP e os que o fazem – dado que o TZ não se organiza de acordo com o centralismo – manifestaram discordâncias publicamente em diversas ocasiões, defendendo e deliberando em favor de propostas diferentes.
[8] Numa nota (aqui), a qual teve sua devida resposta (aqui).
[9] Tanto a luta contra a precarização do transporte coletivo quanto a luta pela extensão do passe livre estudantil a todas as cidades que compõem a RMG começaram a ser travadas sob a bandeira da “intervenção pública nas empresas de transporte”. Trata-se da proposta de um dos militantes do TZ: forçar (por meio de atos radicalizados, se necessário, o que já era esperado) o poder concedente a realizar uma intervenção pública nas concessionárias, tomando para si a gestão do transporte coletivo na RMG e tendo em vista cumprir as cláusulas referentes à qualidade do transporte coletivo inscritas na concessão. Essa proposta foi debatida e aprovada em reunião pela FLTP. A FLTP, entretanto, não se prendeu a essa bandeira – a qual está, inclusive, levantando diversos questionamentos – e está aberta a novas propostas.
[10] Cf., acima, o primeiro link da nota n 8.
[11] Aliás, foi numa das “sessões” dessa assembleia que um militante do MEPR levantou a proposta de concessão de certas prerrogativas à “mesa”.
[12] O que é sempre bom problematizar, já que, segundo um reputado historiador (senão segundo outros mais), Lenin e seus correligionários se apropriaram do termo maioria, embora nem sempre tenham sido majoritários na socialdemocracia russa (Cf. Daniel Aarão Reis Filho, Uma revolução perdida: a história do socialismo soviético, São Paulo: 2007. pp. 39-43 e 47-87).
[13] A proposta da “tarifa zero” ganha aí um plus: não é só “reformismo” mas “anarco-reformismo” (no mesmo lugar; cf., acima, o primeiro link da nota n 8)!
[14]  O MEPR fez o que pôde para impedir a participação de grêmios estudantis por ele aparelhados na mobilização para os dois últimos atos da FLTP, depois de a FLTP ter-se negado a apoiar sua disputa político-eleitoral.
[15]  O aumento da tarifa foi revogado somente temporariamente e as represálias das companhias de transporte continuam. Além do mais, a questão do transporte está no cerne mesmo da greve autônoma dos professores das escolas municipais de Goiânia que ocuparam a Câmara Municipal da cidade.

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