Ao se centrar na reorganização do aparato produtivo, Engels não aborda o problema de que a própria composição técnica das forças produtivas já contém um aspecto intrinsecamente classista. Por Pablo Polese

Talvez seja por conta de ter muito claro para si o aspecto de interação recíproca existente entre estrutura econômica e superestrutura política estatal que Engels, em seu livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado, visualizando a necessidade da instituição revolucionária da sociedade comunista, chega a ser talvez um tanto quanto exagerado ao expressar sua confiança na revolução socialista e seu desdobramento automático rumo ao desaparecimento do Estado:

O Estado não tem existido eternamente. Houve sociedades que se organizaram sem ele, e não tiveram a menor noção do Estado ou de seu poder. Ao chegar a certa fase de desenvolvimento econômico, que estava necessariamente ligada à divisão da sociedade em classes, essa divisão tornou o Estado uma necessidade. Estamos agora nos aproximando, com rapidez, de uma fase de desenvolvimento da produção em que a existência dessas classes não apenas deixou de ser uma necessidade, mas até se converteu num obstáculo à produção mesma. As classes vão desaparecer, e de maneira tão inevitável quanto no passado surgiram. Com o desaparecimento das classes, desaparecerá inevitavelmente o Estado. A sociedade, reorganizando de uma forma nova a produção, na base de uma associação livre de produtores iguais, mandará toda a máquina do Estado para o lugar que lhe há de corresponder: o museu de antiguidades, ao lado da roca de fiar e do machado de bronze. (ENGELS, 2010: 218)

Arriscaríamos dizer que essa excessiva segurança de Engels ao falar da abolição e fenecimento do Estado não se deve a um descuido ou algo assim, mas decorre de sua própria noção de inevitabilidade (em longo prazo) da revolução proletária. Evidentemente que tanto no caso da inevitável superação do Estado, quanto no caso da inevitável superação do Capital, a noção de “inevitabilidade” não deixa de vir acompanhada de grandes problemas práticos e também teóricos, seja ou não adicionada a ressalva “a longo prazo”. Ao se expressar de forma bastante sintética, muitas vezes Engels abre margem para interpretações equivocadas, e o trecho pode ser lido como tendo traços de uma concepção teleológica da história, e pior, a falta de realismo pode desorientar teoricamente as lutas da esquerda; afinal, não podemos deixar de notar que o modo como ele fala da abolição do Estado faz parecer que a tarefa é muito mais fácil do que de fato o é. E isso não é sequer desculpável se a intenção fosse mais “panfletária” do que científica. Tomando seu texto Do socialismo utópico ao socialismo científico, publicado em 1880, temos que:

O Estado moderno, qualquer que seja a sua forma, é uma máquina essencialmente capitalista, é o Estado dos capitalistas, o capitalista coletivo ideal. E quanto mais forças produtivas passe à sua propriedade tanto mais se converterá em capitalista coletivo e tanto maior quantidade de cidadãos explorará. Os operários continuam sendo operários assalariados, proletários. A relação capitalista, longe de ser abolida com essas medidas, se aguça. Mas, ao chegar ao cume, esboroa-se. A propriedade do Estado sobre as forças produtivas não é solução do conflito, mas abriga já em seu seio o meio formal, o instrumento para chegar à solução. Essa solução só pode residir em ser reconhecido de um modo efetivo o caráter social das forças produtivas modernas e, portanto, em harmonizar o modo de produção, de apropriação e de troca com o caráter social dos meios de produção. Para isso, não há senão um caminho: que a sociedade, abertamente e sem rodeios, tome posse dessas forças produtivas, que já não admitam outra direção a não ser a sua. (ENGELS, s/d-b: 331)

A seguir Engels afirma que o desdobramento histórico do modo capitalista de produção cria naturalmente a força social que “se não quiser perecer, está obrigada a fazer essa revolução”. Segundo Engels, a tarefa inicial do proletariado é a “conversão dos grandes meios socializados de produção em propriedade do Estado”, o que “por si mesmo” não é a solução do conflito de classes, mas já indicaria o caminho pelo qual deve produzir-se a revolução.

O proletariado toma em suas mãos o Poder do Estado e principia por converter os meios de produção em propriedade do Estado. Mas, nesse mesmo ato, destrói-se a si próprio como proletariado, destruindo toda diferença e todo antagonismo de classes, e com isso o Estado como tal. A sociedade, que se movera até então entre antagonismos de classe, precisou do Estado, ou seja, de uma organização da classe exploradora correspondente para manter as condições externas de produção e, portanto, particularmente, para manter pela força a classe explorada nas condições de opressão (a escravidão, a servidão ou a vassalagem e o trabalho assalariado), determinadas pelo modo de produção existente. O Estado era o representante oficial de toda a sociedade, sua síntese num corpo social visível; mas o era só como Estado [da classe] [1] que, em sua época, representava toda a sociedade: na antiguidade era o Estado dos cidadãos escravistas, na Idade Média o da nobreza feudal; em nossos tempos, da burguesia. Quando o Estado se converter, finalmente, em representante efetivo de toda a sociedade, tornar-se-á por si mesmo supérfluo. Quando já não existir nenhuma classe social que precise ser submetida; quando desaparecerem, juntamente com a dominação de classe, juntamente com a luta pela existência individual, engendrada pela atual anarquia da produção, os choques e os excessos resultantes dessa luta, nada mais haverá para reprimir, nem haverá necessidade, portanto, dessa força especial de repressão que é o Estado. (ENGELS, s/d-b: 332 – grifo meu)

Ou seja, segundo Engels, a apropriação do poder político por parte do proletariado é o “primeiro ato” da revolução, onde o Estado passa efetivamente a ser “representante de toda a sociedade”, dada a posse dos meios de produção. Já aqui podemos observar dois aspectos problemáticos na abordagem engelsiana: primeiro, há implícita em sua teorização a ideia de que o problema fundamental da sociedade de classes reside no fato da produção ser anarquicamente estruturada. Embora a anarquia da produção seja realmente um fator relevante, discordamos que seja o “problema fundamental” do sistema do capital. De fato, esse ponto a nosso ver “problemático” da abordagem engelsiana não teria grandes implicações políticas, não fosse o fato de que Engels desdobra daí a ideia de que a posse dos meios de produção pelo proletariado resolveria automaticamente o caráter anárquico da produção capitalista na medida em que, segundo Engels, reorganizaria racionalmente a produção a fim de “tornar harmônica” a contradição entre produção social e apropriação privada. O que nos leva ao segundo aspecto problemático da abordagem de Engels:

Ao se centrar na reorganização do aparato produtivo, Engels não aborda o problema de que a própria composição técnica das forças produtivas já contém um aspecto intrinsecamente classista (pressupõe a divisão entre concepção e execução, que a divisão do trabalho seja hierarquicamente estruturada, que os atos de trabalho estejam fragmentados em partes ínfimas, etc.). Ao não tematizar essa questão, a visão engelsiana pressupõe que seja possível “reverter” o sentido fetichista da produção para os fins sociais não-mais-alienados pela simples mudança de posse de tais forças produtivas, o que está inteiramente de acordo com a visão stalinista. Quanto à problemática do caráter alienante da própria estrutura técnica do aparato produtivo capitalista, convido o leitor a pensar os limites inerentes à ocupação/autogestão de fábricas (como, por exemplo, a fábrica brasileira Flaskô) como forma avançada de luta contra o capital, e como essas mesmas experiências ensaiam, muitas vezes, formas criativas de tentativa de rompimento com a alienação inerente às estruturas da maquinaria, etc.

Segundo Engels, esse primeiro ato de tomar posse das forças produtivas e centralizá-las no Estado “é ao mesmo tempo o seu último ato independente como Estado”, pois:

A intervenção da autoridade do Estado nas relações sociais tornar-se-á supérflua num campo após outro da vida social e cessará por si mesma. O governo sobre as pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção dos processos de produção. O Estado não será “abolido”, extingue-se. (ENGELS, s/d-b: 332)

Embora teoricamente correto nas linhas gerais, o fato de Engels não delinear com nitidez o processo envolvido na passagem do “primeiro ato” de tomada de posse até o “ato final” de fenecimento do Estado traz em si graves problemas. O mais sério deles reside no fato de que, embora Engels fale em superfluidade (do aparato estatal) “num campo após outro da vida social”, ainda assim fica a impressão de que a passagem é quase imediata ou automática, e não fruto de um longo, complexo, contraditório e doloroso processo histórico. O subestimar engelsiano das dificuldades da transição socialista pode ser notado na passagem a seguir:

Ao apossar-se a sociedade dos meios de produção cessa a produção de mercadorias e, com ela, o domínio do produto sobre os produtores. A anarquia reinante no seio da produção social cede o lugar a uma organização planejada e consciente. Cessa a luta pela existência individual e, assim, em certo sentido, o homem sai definitivamente do reino animal e se sobrepõe às condições animais de existência, para submeter-se a condições de vida verdadeiramente humanas. As condições que cercam o homem e até agora o dominam colocam-se, a partir desse instante, sob seu domínio e seu comando e o homem, ao tornar-se dono e senhor de suas próprias relações sociais, converte-se pela primeira vez em senhor consciente e efetivo da natureza. As leis de sua própria atividade social, que até agora se erguiam frente ao homem como leis naturais, como poderes estranhos que o submetiam a seu império, são agora aplicadas por ele com pleno conhecimento de causa e, portanto, submetidas ao seu poderio. A própria existência social do homem, que até aqui era enfrentada como algo imposto pela natureza e a história, é de agora em diante obra livre sua. Os poderes objetivos e estranhos que até aqui vinham imperando na história colocam-se sob o controle do próprio homem. Só a partir de então, ele começa a traçar a sua história com plena consciência do que faz. E só daí em diante as causas sociais postas em ação por ele começam a produzir predominantemente, e cada vez em maior medida, os efeitos desejados. É o salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade. (ENGELS, s/d-b: 334)

Assim, Engels não trata em maiores detalhes não só do caráter do Estado transicional, como também dos outros aspectos do período de transição. Se o motivo disso reside numa limitação teórica de Engels ou, como dito acima, decorre de um apreço político pela propaganda da revolução, são questões secundárias. O fato é que ele opera um salto na argumentação: do modo capitalista, onde a produção é anárquica e há classes em luta, etc., para o reino da liberdade, onde os poderes objetivos do Homem “colocam-se sob o controle do próprio Homem” e este “começa a traçar a sua história com plena consciência do que faz”. Note que o uso da palavra “começo” é específica para a passagem à sociedade comunista, plenamente livre, mas a forma como Engels desenvolve a argumentação leva a crer que ele se refere a um momento histórico não muito distante da inicial tomada de posse dos meios de produção e sua centralização num Estado proletário. Mais uma vez, o facebook acusa que Stálin curtiu isso.

Com esse salto carente de mediações adequadas, o trato de Engels se torna inapropriado para a correta apreciação da questão da abolição do Estado. Seu trabalho simplifica muito a questão, se tornando não esclarecedor, mas, antes, desorientador da compreensão dos desafios e problemas a serem enfrentados e resolvidos na transição para além do capital. E não se trata de um escapismo da parte de Engels; ele sabia muito bem que esse salto não poderia se dar rapidamente e sem problemas, como podemos notar nas passagens em que ele usa o gerúndio para indicar o caráter processual da extinção do Estado, e também na passagem já mencionada em que ele afirma que a intervenção da autoridade estatal nas relações sociais “tornar-se-á supérflua num campo após outro da vida social” até que “cessará por si mesma”. O mesmo caráter processual da extinção do Estado fica explicitado (mas tampouco é desenvolvido) nas linhas finais de seu livro, quando ele faz uma síntese conclusiva:

Revolução proletária, solução das contradições: o proletariado toma o poder político e, por meio dele, converte em propriedade pública os meios sociais de produção, que escapam das mãos da burguesia. Com esse ato redime os meios de produção da condição de capital, que tinham até então, e dá a seu caráter social plena liberdade para impor-se. A partir de agora já é possível uma produção social segundo um plano previamente elaborado. O desenvolvimento da produção transforma num anacronismo a sobrevivência de classes sociais diversas. À medida que desaparece a anarquia da produção social, vai diluindo-se também a autoridade política do Estado. Os homens, donos por fim de sua própria existência social, tornam-se senhores da natureza, senhores de si mesmos, homens livres. (ENGELS, s/d-b: 336)

Ora, uma coisa é converter em “propriedade pública” os “meios sociais de produção” de forma centralizada num Estado proletário, e outra radicalmente diferente é convertê-los em propriedade “pública” através da livre associação dos produtores organizados em órgãos de poder popular e controle operário. Engels não só deixa essa diferença sem tratamento como ainda não deixa suficientemente clara e explicitada a existência ou não de diferentes “momentos” nesse processo.

A respeito dessa problemática, já no Manifesto Comunista de 1848 encontramos uma passagem esclarecedora:

Desaparecidas no curso do desenvolvimento as diferenças de classe e concentrada toda a produção nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perde seu caráter político. Em sentido próprio, o poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão da outra. (MARX & ENGELS, 1998: 31)

Ou seja, não é nas mãos do Estado proletário, mas sim nas mãos dos indivíduos associados que o poder público perde seu caráter “político”, sendo “política” sinônimo de enfrentamento de particularidades (classes, estamentos, castas, etc.). O próprio Engels nos ensina que na ordem burguesa o núcleo do poder político reside no Estado, e de forma consequente ele desdobra daí a obrigatoriedade de sua extinção numa sociedade emancipada. Seria por isso que ele deu tanta atenção à tomada do poder político estatal, acentuando demasiadamente as possibilidades emancipatórias de um Estado em mãos proletárias?

Consumada a extinção do Estado, restaria ainda acabar com as contradições da “sociedade civil”, a fim de acabar de vez com toda forma de poder político, que, como todo poder político, se fundamenta no controle econômico. Dessa forma, juntamente com o Estado deve pulverizar-se também a base material que dá vida às contradições da sociedade civil (bürgerliche Gesellschaft). É o que podemos ler em Miséria da filosofia, de Marx: O proletariado

substituirá, no curso do seu desenvolvimento, a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e seu antagonismo, e não haverá mais poder político propriamente dito, já que o poder político é o resumo oficial do antagonismo na sociedade civil. (MARX, 1985: 160 – grifos nossos)

Posto isso, caberia a pergunta: sabendo do caráter “superestrutural” do Estado frente à “sociedade civil”, Engels considerava que a tomada do poder político e a subsequente apropriação das forças produtivas de forma centrada no Estado proletário seriam suficientes para levar a cabo a superação dos fundamentos materiais das lutas de classes? Se pensarmos que ele afirma em Do Socialismo utópico ao socialismo científico que o fundamento dos antagonismos de classe reside na contradição entre produção social e apropriação privada, e que esta contradição poderia e deveria ser “posta em harmonia” com a tomada do poder pelo proletariado, talvez a resposta seja um “Sim” muito problemático.

Em síntese, o tratamento de Engels acerca do Estado proletário ou Estado da transição se resume esquematicamente ao seguinte: o Estado proletário se torna automaticamente representante de toda a sociedade quando esta toma posse dos meios de produção previamente centralizados no Estado. Com isso, a sociedade torna-se capaz de superar o caráter anárquico da produção, cujo fundamento reside na contradição entre produção social e apropriação privada, e, portanto, supera o que Engels vê como o principal fundamento da exploração de classe. Superado isso, o Estado torna-se de imediato supérfluo em sua função primária de garantir a opressão de uma classe sobre outra, deixa de ser um “Estado como tal”. Com os poderes estatais em mãos, o proletariado se torna capaz de regular e organizar a produção social sem necessidade de que o Estado o faça em nome da sociedade toda e, com essa reapropriação de suas forças sociais antes usurpadas pelo Estado, este automaticamente “se extinguirá”.

Ao não tratar detalhadamente das questões envolvidas no processo de extinção do Estado, Engels nos deixa uma série de lacunas teóricas importantíssimas que, não tematizadas corretamente, tornam sua análise desorientadora da prática revolucionária. Como bem coloca Rafael Silva (estudioso do papel do Estado na transição), acentuando os aspectos negativos da concepção engelsiana da transição:

Engels identifica a base de “toda diferença e de todo antagonismo de classe” como sendo a propriedade privada dos meios de produção, de tal modo que a apropriação dos meios de produção pelo Estado proletário é tomada como condição suficiente para a supressão de “toda diferença e de todo antagonismo de classe”. Ao mesmo tempo, as forças produtivas são entendidas como “neutras” no bojo do “modelo” engelsiano de transição ao comunismo. Com efeito, Engels fala da necessidade de reconhecer “o caráter social das forças produtivas modernas” e, consequentemente, de “harmonizar” o modo de apropriação com “o caráter social dos meios de produção”. Trata-se de uma concepção economicista. […] Disso resulta a redução das relações de produção às relações de propriedade no sentido puramente jurídico-formal, de tal forma que a transformação socialista é identificada com a mera transferência da titularidade dos meios de produção da burguesia privada para o Estado. [Além disso, nas passagens] de Engels sobre a “extinção” do Estado, não encontramos nenhuma menção à necessidade de revolucionamentos orgânicos do modo de produção, de transformações profundas da forma do processo de trabalho, de suprimir a divisão estrutural-hierárquica do trabalho, mas somente a insistência na necessidade da tomada de posse dos meios de produção pelo Estado proletário “em nome de toda a sociedade” como medida que, por si só, garante a supressão das relações de produção capitalistas e a ulterior supressão do Estado. (SILVA, 2007: 45)

Assim, pensamos que a análise de Engels peca mais pelas omissões do que pelo tratamento incorreto de determinados temas, ainda que precisemos reconhecer que algumas dessas omissões são bastante danosas a uma estratégia de transição (a experiência soviética pós-revolucionária que o diga). Apenas para citar um exemplo, poderíamos pensar aqui o quanto a abordagem engelsiana do Estado proletário como sinônimo de “organização planejada e consciente” dos meios de produção que supera o “domínio do produto sobre os produtores” está em absoluta conformidade à forma como o Partido Bolchevique russo erigiu o centralizado Estado soviético.

Na parte 3 veremos como deslizes desse tipo não ocorrem na abordagem de Marx.

Nota

[1] “Da classe” não consta na tradução brasileira. Trata-se de um grave problema da tradução para o português, que, se não for corrigido, torna o raciocínio de Engels ininteligível.

Referências

ENGELS, F. (s/d). Carta a August Bebel (18-28/03/1875). In: Marx & Engels, Obras escolhidas, vol.2. SP: Alfa-Ômega.
____. (s/d-2). Do socialismo utópico ao socialismo científico. In: MARX & ENGELS, F. Obras escolhidas. Vol.2. São Paulo: Alfa-Ômega.
____. (2010). A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 2a ed. SP: Expressão popular.
MARX, K. (1985). A miséria da filosofia. São Paulo: Global.
MARX, K. & ENGELS, F. (1998). Manifesto Comunista de 1848. SP: Boitempo.
SILVA, R. (2007). Dilemas da transição: um estudo crítico da obra de Lênin de 1917-1923. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Unicamp-SP.

Esta série inclui os seguintes artigos:

1) superação do Estado, o problema
2) Engels e a posse dos meios de produção previamente centralizados no Estado
3) a ditadura do proletariado como “Estado” transicional
4) o grande segredo da Comuna de Paris
5) socialismo passo a passo
6) Marx, a negatividade da política e o aspecto multidimensional e de longo prazo da transição
7) os limites do legado político de Marx
8) superar o Estado, só pela autogestão

14 COMENTÁRIOS

  1. Pablo Polese,

    Uma pista de análise que pode ser interessante. Num dos Livros de O Capital organizados por Engels, não me recordo se no segundo ou no terceiro — neste momento estou longe das minhas estantes — numa passagem bastante crítica de Saint-Simon, Engels introduziu uma nota explicando que esta era uma das questões em que Marx e ele estavam em desacordo e que, se não fosse a morte do amigo (na verdade, ex-amigo), ele esperava convencê-lo do carácter socialista das ideias de Saint-Simon. Ora, Saint-Simon foi o primeiro grande teórico do poder empresarial, da soberania dos gestores, e um apologista da centralização económica e administrativa. Talvez este desacordo entre os dois fundadores do comunismo moderno não fosse meramente de detalhe. Mas digo talvez, porque também não creio que se deva atribuir a Engels tudo aquilo de que não gostamos no marxismo.

  2. Caro João,
    Busquei a nota no meu exemplar e por sorte a encontrei. Trata-se da nota 24 do capítulo 36 do Livro 3.
    Obrigado pela sugestão. Eu já tinha interesse em estudar o Fourier, agora teu comentário despertou meu interesse tbm para o Saint-Simon.

  3. Uma Carta de Engels a Philipp Van Patten, de 18 de abril de 1883, tira qualquer dúvida quanto à posição de Engels sobre a utilização do aparato estatal como meio para a revolução. Entretanto, diz Engels na referida Carta que tal ideia era idêntica à ideia de Marx. Então, ou Engels não entendeu o giro da inflexão de Marx – depois da Comuna de Paris – sobre os órgãos da transição, ou eu é que estou interpretando Marx de modo equivocado. Segue um trecho da Carta, disponível em https://www.marxists.org/archive/marx/works/1883/letters/83_04_18.htm

    […] Minha resposta à sua consulta sobre a posição de Karl Marx em relação aos anarquistas, em geral, e Johann Most, em particular, há de ser clara e breve:

    Desde 1845 Marx e eu defendemos a ideia de que UMA das conseqüências finais da futura Revolução Proletária será a dissolução gradual (die allmähliche Auflösung) e, finalmente, o desaparecimento, da organização política designada com o nome de Estado. Trata-se de uma organização cujo principal objetivo foi sempre assegurar mediante o poder das armas a opressão econômica da maioria trabalhadora por uma minoria possuidora das riquezas. Com o desaparecimento dessa minoria rica desaparecerá também a necessidade de um poder armado de opressão, ou poder do Estado. Ao mesmo tempo, de qualquer forma, para atingir esse objetivo e também os mais amplamente importantes da revolução social vindoura, a classe trabalhadora precisará se apossar, de início, do poder político organizado do Estado e, por meio dele, esmagar a resistência da classe capitalista, organizando a sociedade de maneira inovadora. Isso já havia sido pontuado em 1847, no Manifesto do Partido Comunista, Capítulo II, Conclusão.

    Os anarquistas colocam as coisas de cabeça para baixo.
    Declaram que a Revolução Proletária deveria COMEÇAR por abolir a organização política do Estado. Porém, a única organização que o proletariado triunfante encontra pré-construída é precisamente o Estado. Este Estado pode precisar passar por consideráveis transformações, antes que possa cumprir suas novas funções. Porém, destruí-lo logo no início da transição significaria destruir o único organismo mediante o qual o proletariado vitorioso pode fazer validar seu poder há pouco conquistado, extirpando seus adversários capitalistas e consolidando a revolução econômica da sociedade sem a qual toda vitória terminaria em derrota e em um massacre da classe trabalhadora, similar àquele ocorrido depois da Comuna de Paris. […]”

    Ora, a leitura dessa carta, que eu desconhecia quando escrevi a série, me põe a pensar duas coisas:

    Primeiro, que em sua análise da Comuna de Paris, Marx apontou que a Comuna, extremo oposto ao Estado, era a “forma política finalmente descoberta” por meio da qual a classe trabalhadora pode iniciar a transição. Sendo assim, Marx não concordava com a assertiva de Engels de que o proletariado precisaria usar o Estado por ser o Estado O ÚNICO órgão de transição disponível (“a única organização que o proletariado triunfante encontra pré-construída”). Ademais, as experiências do século XX apontaram a capacidade da classe trabalhadora construir inúmeros órgãos alternativos de controle operário e autogestão.

    Segundo, a assertiva de Engels sobre a necessidade do uso Estado para reprimir a classe capitalista certamente está em conformidade com a interpretação de Lenin e do Partido Bolchevique. Mas o próprio Marx concordaria com isso, por conta do massacre da Comuna? Não foi ele mesmo quem disse em suas glosas de 1874 que “o órgão de opressão não pode ser usado para a libertação”? E mais importante que saber se Marx concordaria ou não: para a transição socialista no século XXI, mantém-se a necessidade do uso do Estado ou a classe já ensaiou construir órgãos de poder popular que dispensam o uso do aparato estatal capitalista contra os capitalistas? Ou seja, faz falta a Ditadura do Proletariado enquanto órgão estatal de transição socialista, ou a classe já conta em seu acervo histórico com órgãos alternativos que dispensam o uso do órgão opressor para a libertação?

  4. “Marx não concordava com a assertiva de Engels de que o proletariado precisaria usar o Estado por ser o Estado O ÚNICO órgão de transição disponível (‘a única organização que o proletariado triunfante encontra pré-construída’).” Acho que você entendeu equivocadamente o que Engels quis dizer Pablo. Em nenhum momento ele disse ser o Estado o único órgão de transição disponível, mas sim a única organização política com força suficiente para assegurar, “de inicio”, o poder nas mãos do proletariado, sob pena de a contrarrevolução da classe capitalista nacional e internacional conseguir esmagar de maneira relativamente rápida a revolução. Além do mais, Engels faz a seguinte e pertinente ressalva “Este Estado pode precisar passar por consideráveis transformações, antes que possa cumprir suas novas funções.”. Ou seja, dependendo de onde e, portanto, em qual Estado está ocorrendo o processo revolucionário, este deverá necessariamente passar por várias modificações para que possa conseguir sustentar e assegurar o poder nas mãos do proletariado até que a revolução triunfe internacionalmente. Mas isso só de inicio, como bem frisado por Engels. Ou seja, o lapso temporal dever ser curto, sendo o destino da revolução (“degenerar-se”) hipotecada à revolução internacional.

  5. A ideia básica, então, é essa: o Estado capitalista, apossado e transformado em Estado socialista ou “Ditadura do proletariado”, é a única organização política com força suficiente pra assegurar o poder nas mãos do proletariado, sob pena da contra-revolução triunfar.
    Quer dizer que o proletariado pode até ter força pra criar órgãos de poder popular, sovietes, conselhos operários etc., capazes de oferecer uma alternativa ao controle do capital sobre o sociometabolismo, mas embora tais órgãos tenham essa força e consigam levar a classe organizada à tomada do poder estatal, tal força é (sempre?) insuficiente pra manter a revolução quando a contra-revolução vier? Algo como: “até aqui vocês tem poder de criar seus órgãos alternativos ao capital, mas a partir daqui (tomada do poder político) vocês precisam usar os órgãos forjados pelo capital contra o capital”.
    A meu ver esse ponto de vista supervaloriza a força restauradora da contra-revolução, subvaloriza a capacidade da classe trabalhadora de criar seus órgãos de defesa alternativos aos órgãos capitalistas, e por último mas o mais importante de tudo: essa visão legitima o uso e fortalecimento do órgão político do capital, o Estado, enquanto órgão de transição. Mas o Estado não deve crescer e sim definhar. Se não definhar, não há revolução. E não é usando o Estado como mediação revolucionária que ele vai definhar “no longo prazo”, pela boa vontade dos dirigentes e o beneplácito da revolução internacional. Já não bastam as experiências de transição interrompida que tivemos ao longo do século XX, as quais cometeram justamente esse erro de reforçar o Estado, e estrangular a revolução ao transformar os órgãos de poder popular em órgãos estatais? Não basta a URSS usando a Internacional Comunista para desarticular e destruir as tentativas de revolução em outros países, com o intuito de fortalecer o Estado soviético? Pensar que se pode usar o Estado e confiar que o Partido dirigente do Estado irá assegurar o definhamento do Estado no longo prazo é pura inocência; é subestimar a força das mediações alienadas do capital, as quais estão enraizadas no sociometabolismo e forçam o Estado a se autopreservar e a se autoreproduzir enquanto Estado, independentemente das boas intenções dos dirigentes. O modo de assegurar a revolução e o definhamento do Estado é fortalecendo os órgãos de poder popular externos ao Estado, e não o próprio Estado “proletário”.

  6. Pablo e Diego,
    A frase chave para este debate parece-me ser a de que «a única organização que o proletariado triunfante encontra pré-construída é precisamente o Estado». Se Engels tivesse escrito isto antes de 1871 seria uma coisa. Mas outra coisa muito diferente foi escrevê-lo em 1883, depois da experiência da Comuna e da constituição de cooperativas, para mais em plena vigência do Estado de Bismarck e precisamente quando ele instituía a primeira versão do que depois haveria de se chamar Welfare State. Nessa data existiam já experiências históricas reveladoras de que o proletariado durante a sua luta era também construtor de instituições. Ora, talvez o debate se possa clarificar um pouco se introduzirmos a figura de Blanqui, que era o mais célebre dos defensores da utilização ditatorial do Estado na fase pós-revolucionária, a ditadura pedagógica de um pequeno e seleccionado grupo de vanguarda. Marx e Engels, ou Bakunin, eram personagens obscuros perante a enorme popularidade de que Blanqui gozava nos meios populares revolucionários. Aliás, teria sido ele o principal dirigente da Comuna se não estivesse preso nessa ocasião (Blanqui passou em prisões mais de metade da sua vida adulta) e os comunardos tentaram tudo para o libertar, mas o lugar onde ele estava detido era um segredo de Estado muito bem guardado. Assim, o que Marx e Engels pensaram, juntos ou cada um por seu lado, acerca do problema do Estado na desejada fase de transição para o socialismo poderá talvez ser avaliado pela evolução das suas opiniões acerca de Blanqui.

  7. Metendo-me no debate acrescento apenas que o que aqui tem sido discutido foi aplicado ipsis verbis no processo 1917-18 na Rússia Soviética. Deixo aqui dois excertos de um texto que escrevi sobre o assunto:

    «Segundo Lénine, como o desenvolvimento da dinâmica de base seria incipiente, haveria que reforçar o Estado para educar os trabalhadores: disciplina para educar as massas: “dedicai-vos à autodisciplina, submetei-vos a todo o custo, para que haja uma ordem exemplar, para que os operários (…) aprendam a lutar” (idem: 509). De facto, é bizarro que no momento em que mais era necessário promover a expansão do controlo e da gestão operária pela base, os bolcheviques tivessem multiplicado acções e comunicados tendo como meta direccionar o processo no sentido contrário. A estatização da economia não é supletiva da auto-organização da base mas é o aríete que permite utilizar as palavras de ordem socialistas e autonomistas para criar instituições controladas por uma nova classe exploradora.»

    «Num contexto em que existiam milhares e milhares de comités de fábrica e onde participavam nas assembleias de base centenas de milhares de operários, a posição dos bolcheviques foi nítida. No lugar de ajudar a estender essa democracia de base, o objectivo político foi sempre de caracterizar o controlo operário como provisório e a subordinar-se à tarefa de erigir uma nova estrutura estatal.

    Foi neste contexto político de afrontamento aos organismos de base – subreptício nos discursos e violento na prática – que o novo governo proibirá a convocação de um congresso nacional de comités de fábrica (Brinton 1975: 19) e sob o pretexto das empresas de importância nacional e da manutenção de uma disciplina de ferro – a tal “rigorosa ordem e disciplina” de que falava Lénine – o controlo operário nos caminhos-de-ferro foi proibido em Março de 1918».

    Ora, hoje a generalidade da esquerda continua a partilhar como princípio político este oxímoro de aspirar ao reforço do aparelho de Estado e manter organismos de base… Ou seja, a “eterna” solução que a maioria da esquerda europeia apresenta para as dificuldades de coordenação entre as unidades produtivas tem sido sistematicamente atirada para o Estado… Mesmo a esquerda que se diz basista e dos movimentos sociais europeus – e que utiliza massivamente as redes sociais e essas coisas – chora sempre por um Estado sem corrupção… O recorrente paradoxo de quererem “democracia directa” e um Estado mais forte (já que um combate à corrupção eficaz é sinal de um Estado central coeso). No fundo, iniciativas folclóricas na base para que no centro o poder se expanda.

  8. Costuma desconsiderar diálogos retirados de outros diálogos.
    A arte da retórica esta na argumentação não na exposição de textos enlatados.

  9. Oxe, Heráclito! deixe de besteira! Se hoje em dia os modernos te conhecem (e olhe lá) apenas por citações em citações.

    Além de que, para quem quer falar em argumentação as tuas duas linhas deixam muito a desejar.

  10. O negócio é separar o miolo do filé mignon. E enlatar se preciso for, a fim de garantir a degustação e os pitacos de aspirantes a cozinheiros de temperos elegantes.

  11. João Valente,
    Excelente teu comentário, que me havia passado despercebido. Me recordou um trecho do livro “Anarquismo e Comunismo” de Evgueni Preobrazhenski em que ele, tratando dos fundamentos econômicos da transição – e logo depois de dizer que socialização É nacionalização – diz que faz-se necessário um controle ainda mais rígido da força de trabalho. Fiquei a pensar a quem se referia o “ainda mais”. Um controle dos trabalhadores, pelo Estado “proletário”, “ainda mais rígido” do que no Capitalismo? Pouco atraente, no mínimo. Mas os bolcheviques julgavam que sua posição de vanguarda da classe significava legitimidade para dirigir a transição, de modo a justificar que estaria tudo bem explorar a classe, “pelo bem da classe” e “pelo bem” da estratégia transicional de longo prazo. O livro é de 21…

  12. Olá,

    João B. quais escritos de Marx e Engels onde posso encontrar a “evolução das suas opiniões acerca de Blanqui”?

    Grato

  13. JJ,
    Além do artigo citado pelo Pablo há, por exemplo, este brevíssimo artigo de Riazanov, um dos mais profundos conhecedores da obra de Marx e Engels, e que aliás pagou com a vida por isso. Mas o que eu pretendia no meu comentário era estimular os leitores a prosseguirem eles mesmos essa pesquisa. Os textos que hoje se encontram disponíveis na internet e os mecanismos de busca permitem que se façam rápida e facilmente pesquisas que, há não muito tempo atrás, demorariam meses ou anos e implicariam deslocações até cidades ou países onde houvesse bibliotecas com a documentação necessária. Mas infelizmente — e este é um desabafo em geral e não dirigido especificamente a alguém — aquelas facilidades, em vez de estimularem a investigação, parece terem estimulado mais o copy & paste.

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