A Teoria dos Privilégios floresce da inatividade das massas e dos oprimidos. Acaba não sendo uma teoria de luta, mas uma teoria do recuo. Ela falha no campo crucial: a luta real. Por Will

Notas sobre a “Teoria dos Privilégios”
Introdução: o racismo vive

É evidente que o racismo existe. Infiltra-se por todos os poros em nossa sociedade. Infecta todas as relações sociais. E, obviamente, afeta o Occupy Wall Street (OWS).

Todo mundo sabe que a divisão de riqueza, o número de encarcerados, a gentrificação, a defasagem na educação e tudo o mais são parte da opressão de classe e racial dos Estados Unidos. Tudo isso é óbvio. Uma questão mais politicamente controversa são as interações sociais que são racializadas de forma negativa na nossa sociedade e especificamente no OWS. É sempre doloroso porque, na melhor das hipóteses, esperamos que os espaços do movimento sejam lugares onde as pessoas possam finalmente se relacionar em termos humanos, universais. No entanto, não é uma surpresa que mesmo em espaços do movimento as pessoas experimentem o racismo. Nossa sociedade está saturada com ela, então esperar relações humanas não racializadas no movimento seria utópico.

A combinação da opressão estrutural baseada em raça e classe, a história do racismo e do capitalismo e como isso afeta as interações das pessoas umas com as outras têm levado a uma escola de pensamento chamada de Teoria dos Privilégios. A Teoria dos Privilégios reconhece a opressão estrutural e histórica, mas mantém um foco exagerado sobre comportamentos e pensamentos individuais como a principal forma de abordar o racismo (e outras opressões, mas eu vou tender a me concentrar sobre o racismo e de classe). A Teoria dos Privilégios tem um conjunto de princípios básicos:

a) A Teoria dos Privilégios argumenta que os espaços do movimento devem ser seguros para todos os grupos oprimidos. Uma forma de tornar tais espaços seguros é negociando as relações entre uns e outros de formas não opressivas. Isto significa, por exemplo, que homens brancos heterossexuais deveriam falar menos ou pensar sobre seus privilégios quando se discute uma ação ou questão política.

b) A Teoria dos Privilégios alega que a militância e a sofisticação política são o domínio de uma elite privilegiada baseada em privilégios de classe, gênero e raça.

c) A Teoria dos Privilégios atribui erros políticos e estratégicos aos privilégios pessoais que as pessoas carregam para dentro do movimento.

d) A Teoria dos Privilégios busca lidar com essas questões primeiramente através da educação, com formações e debates. Este artigo vai apontar falhas essenciais em todos os quatro princípios da Teoria dos Privilégios. Ele vai tentar apresentar algumas alternativas, mas reconhecendo que mais pesquisas e, sobretudo, mais lutas são necessárias para resolver alguns dos principais problemas com os quais se defronta o movimento.

Há certamente uma longa história de pessoas de cor [1] enfrentando o racismo dentro do movimento. No entanto, eles têm tendido a se concentrar ao redor de críticas organizacionais e programáticas, áreas onde as deficiências poderiam ser mais facilmente percebidas e enfrentadas. Por exemplo, se um grupo não se organiza em torno dos prisioneiros negros, isto pode ser enfrentado por meio de discussões políticas, mudando o programa do grupo e implementando uma diretiva de organização voltada para os prisioneiros negros. Isto é enfrentado pela Teoria dos Privilégios através da alegação de que o privilégio de uma pessoa cria um ponto cego para a realidade do encarceramento de homens negros.

Outro aspecto da opressão que os teóricos dos privilégios abordam são as interações sociais. Contudo, torna-se muito difícil avaliar objetivamente se o olhar de um homem branco objetifica uma pessoa por causa da cor da sua pele; se um homem branco gritando com uma pessoa de cor deve-se à raça ou se isto é uma reação, desvinculada de raça e gênero, a diferenças políticas; ou se um homem branco está tomando muito espaço devido aos seus privilégios ou porque ele precisa falar, porque ele simplesmente tem algo válido/importante a dizer.

Não há dúvida de que em qualquer organização ou movimento onde isto é um comportamento comum, as pessoas de cor não vão participar ou vão sair depois de algum tempo. Mas, ao mesmo tempo, qualquer movimento/organização que passe tempo demais discutindo isto não será mais uma organização/movimento de luta, e eventualmente as pessoas de cor vão sair. Vai se tornar uma roda de conversa ou um coletivo de conscientização. Numa época em que o Departamento de Polícia de Nova York está matando negros e latinos com impunidade, escolas estão sendo fechadas em bairros de pessoas de cor, a propaganda anti-islâmica é imensa e imigrantes são deportados todos os dias, pouca gente vai se integrar a um grupo que foca somente nas relações interpessoais. A chave é entender as tensões e achar um balanceamento correto.

Ao mesmo tempo, é inegável que muitas pessoas de cor acreditam que esta seja uma forma séria de lidar com o racismo. Que muitos acreditam que um movimento pode ser construído a partir das reivindicações políticas e estratégicas da Teoria dos Privilégios. A Teoria dos Privilégios veio a se tornar a tendência dominante a partir de circunstâncias históricas específicas, que irei tratar brevemente. Acredito que seja uma falsa estratégia, que no final das contas não consegue resolver realmente os problemas que a própria Teoria dos Privilégios se propõe a enfrentar.

Provavelmente toda pessoa de cor já experimentou algum tipo de interação como as descritas acima. Primeiro, vamos discutir as complexidades: quando isso acontece, mesmo entre pessoas de cor existe desacordo quanto à percepção do que as interações significaram. A compreensão da seriedade da acusação está ligada aos comportamentos anteriores e ao histórico do militante branco. As pessoas de cor também vão trazendo consigo experiências próprias com o racismo. Isso certamente afeta a forma como enxergam as relações sociais. Por último, é preciso chegar pelo menos a um entendimento comum de que, de modo geral, as pessoas que se integram ao movimento não são defensoras do racismo. Isso deveria ser um pressuposto fundamental, ou então só nos restaria uma realidade ridícula e politicamente suicida na qual estaríamos construindo um movimento com supremacistas brancos. Logo, isso nos permite lidar com a alienação racial ou com o chauvinismo branco ao lado de pessoas que reconhecemos ser contra o racismo. Isso parece ser um ponto crucial a ser reconhecido.

Geralmente, as pessoas de cor desejam o reconhecimento de que algo muito errado aconteceu. É verdade que geralmente a maior parte dos militantes brancos surta. Por um lado, os militantes brancos compreendem a seriedade da acusação, mas, por outro lado, em sua defesa, eles falham em atribuir reconhecimento ao modo como outra pessoa – de cor – percebeu um episódio. Os militantes brancos geralmente agem como se a teoria do racismo infectando tudo paralisasse suas mentes e corpos quando eles são acusados de qualquer coisa. Isto é compreensível, na medida que nenhum militante sério deveria tomar tais acusações gentilmente.

Isso é particularmente importante uma vez que as pessoas de cor, baseadas em toda a merda que lhes acontece, tendem a ver o mundo de forma diferente, e são obviamente mais sensíveis a desrespeitos raciais. A falta de reconhecimento comumente intensifica a forma como essa pessoa sente a situação, uma vez que o que é “objetivamente verdade” recua para a forma como o militante branco define a realidade. Nesse ponto, conversas produtivas geralmente se interrompem.

Por último, as coisas são mais complicadas hoje porque o racismo está muito mais codificado hoje em termos de linguagem e comportamento. Ninguém no movimento vai chamar alguém de preto [2]. Pessoas realmente faziam isso nos anos 1910, nos anos 20 e 30. Ninguém vai dizer que uma pessoa de cor não deveria falar por causa da sua cor de pele. As coisas não são tão claras. Isto é parcialmente um sinal de que as lutas das pessoas de cor forçaram a linguagem racista a tomar uma forma diferente. Contudo, o racismo ainda existe. Na mídia, por exemplo, falar de crime ou pobreza é a palavra-chave para negros ou latinos preguiçosos que arruínam o paraíso dos grandes cidadãos brancos trabalhadores da América. Exatamente como o racismo funciona no movimento, codificado na língua e no comportamento, é algo que ainda precisa ser investigado.

Enquanto as dificuldades em ser uma pessoa de cor militante nos movimentos são assombrosas, existem certos estranhos impasses em ser um militante branco no movimento. As pessoas de cor entram no movimento esperando melhores relações raciais. Isto é certamente justo. Isto geralmente significa que espera-se que militantes brancos do sexo masculino tomem menos espaço, falem menos etc. Toda interação pessoal, enquanto for influenciada pelo peso da historia, não pode ser julgada somente por essa dimensão isolada. Por exemplo, pessoas negras foram escravas nos EUA e especificamente servas para mestres brancos. Traspassar esse passado histórico para a interação social quando um homem negro ou uma mulher negra pegam um copo de água para um amigo branco seria ridículo. Existem sempre agência e liberdade nas ações de que participamos hoje em dia. Elas sempre são formatadas por raça, classe, gênero, sexualidade e história; mas nós também não estamos completamente emboscados pelos crimes do passado. Senão, amizade, amor, camaradagem seriam impossíveis. A própria possibilidade de qualquer forma de relação humana seria destruída. Nós estaríamos papagaiando o passado e dogmaticamente replicando ele no presente.

Geralmente, depois do reconhecimento, as coisas podem ser deixadas assim. No entanto, às vezes questões organizacionais e políticas mais profundas vêm à tona. Especialmente se uma pessoa de cor diz existir um padrão ou histórico de tal comportamento. Se for esse o caso, deveria ser lidado em termos organizacionais e políticos dinâmicos. A limitação da Teoria dos Privilégios em lidar com tais situações vai ser explicada depois.

Fanon, Liberação Negra e Humanidade

As tradições mais sofisticadas da libertação negra lutaram para lidar com tais problemas. Revolucionários como Frantz Fanon em “Pele negra, máscaras brancas” usaram ferramentas filosóficas da fenomenologia para explorar a experiência da consciência e a experiência vivida das pessoas de cor. Essa tradição no movimento está, infelizmente, morta. À luz de suas investigações sobre a fenomenologia, há fortes evidências nos escritos de Fanon e em sua prática em vida que demonstram que conversas não podem resolver tais experiências racializadas, somente a luta mais militante e violenta pode superar as relações humanas racializadas. Os Estados Unidos não experimentaram níveis elevados de luta nos últimos 50 anos. E os principais problemas se desenvolveram por causa da falta de luta militante no pais.

Também Fanon deixa um legado enigmático ao escrever “Pele negra, máscaras brancas“, que é frequentemente usado para justificar a Teoria dos Privilégios. No entanto, há dois problemas em tal abordagem ao livro. O primeiro é que esse livro era parte do desenvolvimento de Fanon; de suas formas de resolver os problemas que viu e viveu. Segundo, e mais importante: quase todos os ideólogos dos privilégios ignoram a introdução e a conclusão do livro. Isso é estranho, considerando que esses dois capítulos dão o seu enquadramento teórico. Nesses dois capítulos, Fanon expressa igualdade com toda humanidade e se coloca contra quem pede reparação ou culpa por qualquer tipo de opressões históricas passadas. O que mais pode Fanon querer dizer com “Eu não tenho o direito de permitir a mim mesmo ficar atolado no que o passado determinou. Eu não sou o escravo da escravidão que desumanizou meus ancestrais. Eu, como um homem de cor, não tenho o direito de esperar que nos homens brancos exista uma cristalização de culpa pelo passado de minha raça. Marcas de gênero na linguagem à parte, isso mantém um forte contraste com a Teoria dos Privilégios.

Fanon está tentando reconciliar as experiências de opressão com a necessidade de desenvolver relações humanas e transformá-las através da luta militante. Não há dúvida que a tentativa de Fanon de interagir com pessoas brancas recorrentemente entrou em choque com as interações racializadas de pessoas brancas com ele. Em outras palavras, pessoas brancas conversam com negras de formas condescendentes, ignoram os negros e descartam seus assuntos, como se fossem secundários etc. A questão é como lidar quando isso ocorrer, e é nesse campo que a Teoria dos Privilégios falha.

A Teoria dos Privilégios põe peso demais na consciência e na educação. Termina criando uma política de culpa por nascimento. Ao mesmo tempo, não há dúvida de que é necessário mais educação sobre a história do racismo nos Estados Unidos e num nível global. Além disso, a relação entre o racismo e seus efeitos na consciência é um campo legítimo e vital da política e do questionamento filosófico. W.E.B. Du Bois, James Baldwin, Michelle Wallace, Frantz Fanon e outros todos fizeram contribuições vitais nos Estados Unidos referentes a esta tradição. Reenquadrar o debate junto a uma tal tradição é vital.

Novas relações sociais só podem ser construídas na luta coletiva da maior parte dos indivíduos militantes. Não há quantidade de conversa e educação que possa formar novas relações. É somente o envolvimento massivo e a luta das pessoas oprimidas que pode, em última instância, destruir o racismo, restabelecer a humanidade das pessoas de cor, e criar relações sociais que sejam relações entre humanos, ao invés de relações entre racialmente oprimidos e brancos opressores.

A falha da Teoria dos Privilégios

A Teoria dos Privilégios busca corrigir e descrever as imensas desigualdades que material, psicológica e socialmente existem na sociedade. Ao mesmo tempo em que frequentemente é acurada na sua análise sociológica de tais desigualdades, ela falha no campo crucial: a luta real. A Teoria dos Privilégios acaba sendo uma análise sociológica radical. Acaba não sendo uma teoria de luta, mas uma teoria do recuo. As maiores fraquezas da Teoria dos Privilégios são uma tendência ao reformismo, uma carência de política, e uma política do recuo.

Reformismo

A Teoria dos Privilégios tende ao reformismo ou, na melhor das hipóteses, para políticas radicais de um grupo de pessoas que procura agir por sobre os oprimidos. A última possibilidade é especialmente importante. Nós vivemos um século no qual pessoas diziam representar as massas clamando políticas revolucionárias sobre elas: Hugo Chávez, Fidel Castro, Jawharlal Nehru, Weather Underground, Josip Broz Tito ou Julios Nyerere são só algumas figuras que caíram nesta armadilha. Hoje em dia os nomes não são tão grandiosos, mas as coisas não são tão diferentes.

Não há dúvida de que certos grupos sejam alvos mais prováveis da polícia durante uma ação policial e que a repressão que vão sofrer será maior, sem falar na quantidade menor de recursos que poderão chamar em sua defesa. Essas são realidades bem óbvias do racismo. Tais fatores certamente dificultam lutas maiores. Em nenhum ponto devemos subestimá-los. Ao mesmo tempo, esses fatores são exatamente as formas de opressão que buscamos derrotar. Os movimentos precisam encontrar formas de lidar com essas questões, política e organizativamente. Quem vai derrotar essas formas de opressão e como? Se a libertação das pessoas oprimidas deve ser feita pelas pessoas oprimidas, então as tarefas da libertação ficam nas mãos das pessoas que correm os maiores riscos. Se o racismo só pode ser derrotado por uma luta de massas e pela ação militante, e não por legislações ou pequenas reformas, então o estilo de luta está também razoavelmente claro. Qual a resposta da Teoria dos Privilégios para essas duas premissas fundamentais? A Teoria dos Privilégios acaba em um beco sem saída.

De acordo com os seus argumentos, os mais oprimidos não deveriam lutar através dos métodos mais radicais porque eles não têm o acesso privilegiado ao pagamento de fianças, bons advogados, e sem falar no seu status racial que certamente garantirá punição extra. Com isto, resta apenas um grupo de pessoas que tem possibilidade de resistir: aqueles com um conjunto de privilégios que têm acesso a advogados, têm tempo livre para lutar, etc. Isto está em alto contraste com a tradição revolucionária que defendeu que a derrota do capitalismo, do racismo, do patriarcado, da homofobia, do imperialismo etc. são responsabilidades de bilhões de pessoas oprimidas. Este é exatamente o grupo de pessoas que a Teoria dos Privilégios geralmente alega ter muito a perder.

Existem, sem dúvida, disparidades de fala, escrita, confiança etc. entre ativistas de movimentos baseadas em raça, classe, e gênero. Os teóricos dos Privilégios estão na vanguarda do reconhecimento desta realidade. Contudo, no momento de assegurar que todos no movimento tenham aproximadamente as mesmas habilidades, os teóricos dos Privilégios são raramente claros sobre como chegar a isto, além de lembrar os privilegiados dos seus privilégios. Os teóricos dos Privilégios até agora não demonstraram como se pode lidar com isto.

A Teoria dos Privilégios compreende, de uma forma parcialmente correta, que pessoas de cor não participam em muitas ações militantes precisamente porque enfrentam maiores riscos de prisão e punição. Mas, ao invés de buscar maneiras de contornar este problema, os teóricos dos Privilégios fetichizam este problema numa prática de desmobilização e reformismo.

Por último, a Teoria dos Privilégios não tem respostas para a rica história de pessoas oprimidas que lutaram no passado. Nas palavras da Teoria dos Privilégios, estes foram alguns dos humanos mais desprivilegiados e ainda assim suas teorias e ações estavam no front da militância e da política revolucionária. O que faz a situação atual de algum modo diferente não está claro.

Falta de política

A Teoria dos Privilégios despolitiza os potenciais mais revolucionários de qualquer discussão. A teoria dos privilégios não tem qualquer projeto político senão uma análise sociológica sobre quem corre mais risco de ser preso, baleado ou espancado em protestos, greves e rebeliões.

As lutas passadas se deram em torno do comunismo, anarquismo, nacionalismo, maoísmo, anticolonialismo, socialismo africano, etc. Essas lutas foram travadas para a derrota do capitalismo, do Estado, do patriarcado, do racismo, da homofobia (ou ao menos deveriam ter lutado para derrotá-los, caso falhassem em conseguir fazer de fato). O ponto é que as maiores lutas dos oprimidos giraram em torno de movimentos de massa, militância e teoria revolucionária. A Teoria dos Privilégios tira a centralidade desses três pontos.

Nos Estados Unidos, as gerações de militantes, desde as derrotas de 1968 até o presente, desenvolveram pouca teoria e organização revolucionária, e menos ainda experiências de movimentos de massa. Isso significou políticas extremamente pouco desenvolvidas. E o setor universitário, onde reside a teorização política, foi em geral dominado por tendências reformistas e acadêmicas de classe média. Há pouca reflexão sobre essa dinâmica no movimento. E o pior, se faz uma associação desleixada entre qualquer teoria – mesmo a teoria revolucionária – com a academia, o que apenas destrói a tradição histórica dos oprimidos que lutaram tão bravamente para ter liberdade para ler, teorizar estratégias de luta e libertação em termos revolucionários.

A Teoria dos Privilégios está completamente divorciada da tradição revolucionária. Ainda estou para conhecer teóricos dos Privilégios que construam uma luta revolucionária com pessoas desempregadas, com desistentes do ensino superior, com imigrantes sem documentos etc. A suposição fundamental da Teoria dos Privilégios expõe o fundo de classe de seus proponentes quando defende que o conhecimento teórico-político é para pessoas com origens privilegiadas. Isso só é verdade se o único lugar que desenvolve conhecimento for as universidades. Teóricos dos Privilégios não construíram as escolas que o Partido Comunista construiu em 1930 ou os Panteras Negras construíram no final de 1960. Não eram universidades oficiais, mas instituições educacionais desenvolvidas pelos oprimidos para os oprimidos.

Eles dizem que agir de maneira militante ou teorizar constitui um luxo dos privilegiados. Isso não deixa nenhuma solução para a liberdade dos oprimidos. A teoria que diz que os oprimidos não podem teorizar ou militar é a teoria de uma elite que vê os oprimidos como desamparados e estúpidos. São os oprimidos que precisam teorizar e eventualmente derrubar o capitalismo. São eles que de fato têm o poder.

Os erros políticos, do ponto de vista da Teoria dos Privilégios, tem raízes nos privilégios que uma pessoa tem. Geralmente, a pessoa é chamada a verificar seus privilégios como uma forma de perceber qualquer erro político. Isto obscurece diálogos organizacionais e políticos, e, no lugar disso, desvia a conversa para maneiras imensuráveis de se lidar com a política. Como podemos saber se esta pessoa “checou seus privilégios”? Por que meios políticos e organizacionais podemos afirmar se podemos contar com esta pessoa?

As questões mais importantes são: qual o programa político? Qual a construção organizativa que o grupo realmente faz? E se os negros (ou qualquer outro grupo oprimido) se desenvolvem como revolucionários e se pelo desenvolvimento eles também são líderes do grupo/movimento.

Uma política do recuo

A Teoria dos Privilégios só veio a dominar o movimento nos últimos vinte anos, se muito. Nos EUA, o período dos últimos quarenta anos foi de um recuo massivo na militância e política revolucionárias. A ascensão da Teoria dos Privilégios não pode ser dissociada da devastação dos movimentos de massa. Foi nesse contexto que a Teoria dos Privilégios cresceu.

Os teóricos dos Privilégios são de uma geração que nunca conheceu as lutas e a militância de massa. São de uma geração que nunca viu as massas como aquelas que Frantz Fanon descreve em “Em defesa da Revolução Africana“. Eles nunca viram gente oprimida que simplesmente decidiu: “ou vivo como um ser humano ou morro em combate”. Eu não sei se eles estiveram nas rebeliões em que vários oprimidos preferiram enfrentar a polícia e outros opressores, arriscando-se à prisão ou até coisas piores. Eles viram essas pessoas? Há alguma dúvida de que só uma pessoa que está disposta a ir tão longe têm alguma chance de vencer o racismo?

A Teoria dos Privilégios floresce da inatividade das massas e dos oprimidos. Ela deseja apenas lembrar as massas de suas fraquezas. Ao invés de imortalizar heróis caídos, só lamenta a tragédia dos mortos. Talvez seja melhor apanhar e morrer em luta do que morrer de joelhos como muitos fizeram durante os últimos 50 anos. Quem não vive ajoelhado hoje? Humilhação pela polícia, humilhações pelo patrão, humilhação em qualquer lugar que se for.

Ironicamente, esses teóricos dos Privilégios clamam ser os representantes simbólicos dos desprivilegiados e trivializam as lutas do passado. Citam as lutas passadas somente para dizer que as condições são diferentes hoje. Não conseguem admitir que o velho argumento de que “as condições não são favoráveis para luta” existe há centenas de anos, lembrando constantemente os oprimidos a adiarem a revolução e a luta de massas. Quem está disposto a dizer aos oprimidos “o sistema vê você como um cachorro. Só quando você lutar entre a vida e a morte você vai alcançar a humanidade”? Todo lutador no passado soube disso. Os teóricos dos Privilégios têm medo de aceitar de onde vem a liberdade humana.

Toda luta por liberdade carrega os riscos de morte impostos pelo opressor aos oprimidos. Isso é uma realidade universal. Houve um dia em que Harriet Tubman simplesmente disse isso a todos escravos. Ironicamente, ela é celebrada hoje, mas sua vida e sabedoria não têm nenhum ensinamento político prático para os revolucionários além da transformação em símbolo dessa corajosa mulher negra.

Eu simplesmente disse: aqueles que falam de privilégios são reformistas. Sua única tarefa é lembrar as pessoas oprimidas do que não podem fazer e do que têm a perder. Os teóricos dos Privilégios não viveram um período de rebeliões e revoluções. Estão bem longe dos dias em que negros e pardos, trabalhadores e desempregados, sacudiram 1968. Esses teóricos dos Privilégios cobrem seus próprios rastros ao se esconderem atrás dos riscos que o proletariado precisa correr. Sem dúvidas, deportação, prisão e certamente morte estão em jogo. O preço da liberdade e o reconhecimento humano poderia ser diferente?

Quando qualquer ação ou política militante é proposta em uma reunião, os teóricos dos Privilégios são os primeiros a levantar e lembrar as pessoas na reunião que somente aqueles com tais e tais privilégios podem participar em tal e tal ação militante; que os oprimidos não podem se dar ao luxo de participar dessas ações.

Foram-se os dias em que revolucionários como Harriet Tubman simplesmente disseram que a vida humana foi feita para ser em liberdade, ou não ser. Aquela proclamação existencial de humanidade perdeu para o medo e a degeneração política. Isso é o que está em jogo. Não se pode negar que a militância e a revolução são um grande risco para os oprimidos. As lutas do passado trazem uma pilha de corpos e vidas destruídas.

Se o capitalismo, o patriarcado, o racismo, o imperialismo, o capacitismo, a homo e a transfobia só podem ser destruídos pelos meios mais violentos, mais militantes e revolucionários, que outra opção têm então os oprimidos senão a luta total? O que dizem os teóricos dos Privilégios? Existe outra estratégia? Votar nos Democratas?

Minha experiência nos espaços da POC

O Grupo de Trabalho People of Color (POC) no Occupy Wall Street em Nova York foi certamente um campo de teste para a efetividade da Teoria dos Privilégios. Uma das questões mais polêmicas foi a questão da política para Queers [3], quando alguns membros do grupo de trabalho argumentaram que ser Queer não tinha nada a ver com ser uma pessoa de cor. Esse debate tendeu a se dispersar com pessoas dizendo que aqueles membros não reconheciam seus privilégios de homens héteros. Foi ignorada a realidade de que nem todos os homens negros héteros concordaram em levar adiante a política anti-Queers, mas, mais importante, que deveria ter havido uma discussão de programa e organização.

Em relação ao programa, o Grupo de Trabalho poderia ter lutado para aprovar um documento que afirmasse uma posição contra políticas anti-Queers. Parece simples o bastante. E realmente, se bem me lembro, isso eventualmente foi feito. No entanto, é sempre preciso que as políticas sejam realizadas, caso contrário serão simplesmente palavras vazias em um texto bacana.

Isso nos leva às dimensões organizacionais do tema que, pelo que percebo, nunca foram discutidas. Uma vez que um grupo de pessoas concordou com alguma coisa, quais eram as repercussões quando alguém violava esse acordo? Essa é uma questão sem soluções fáceis. Em uma organização baseada em afinidade, a pessoa poderia ser expulsa. Mas o OWS tinha uma estrutura organizacional muito aberta e fluída. Inferno, aquilo não podia nem ser chamado de uma organização, se seguirmos um critério mais sensível. Isso coloca sérios problemas. Ao mesmo tempo parece que o OWS pode banir pessoas dos espaços, como foi visto nas discussões sobre o Conselho de Falas e na decisão de banir as pessoas violentas.

Outro problema no Grupo de Trabalho POC foi que, se havia alguém, eram poucos os que tinham uma pedagogia revolucionária para ensinar outras pessoas sobre a relação da opressão Queer com a opressão negra. As tentativas de lidar com a questão foram deixadas às acusações de que algumas pessoas não estavam reconhecendo seu privilégio como cisgênero, ou discussões informais com pouco debate histórico ou teórico das questões. Simplesmente não era o suficiente transpor as diferenças políticas. A inabilidade de se chegar a termos com essas questões parece ter afastado várias pessoas, agravando qualquer possibilidade de unidade no Grupo de Trabalho das POC.

Um exemplo concreto e uma alternativa possível

Sem dúvidas que seria disparatado que estudantes da Columbia ou da Universidade de Nova York propusessem aos trabalhadores de um McDonald’s que entrassem em greve para o próximo ato de 1º de Maio. Os estudantes de graduação dessas duas instituições têm uma imensa autonomia. Se eles tivessem aulas no 1º de Maio, faltar na faculdade traria pouca, ou até nenhuma, consequência. Se eles fossem professores, cancelar as aulas seria também uma opção com muito menos consequências do que organizar uma paralisação. Está absolutamente correto que os parâmetros são diferentes para quem trabalha em um McDonald’s. Na melhor das hipóteses, eles podem conseguir um dia de folga, mas isso está longe do espírito de uma greve de um dia. Se eles não forem trabalhar nesse dia e estiverem na lista, então correm o risco de perder seu emprego que já é precarizado.

Os teóricos dos Privilégios iriam se focar no privilégio que os estudantes de graduação têm, o que bloquearia uma análise dos problemas políticos e organizacionais. É como se os teóricos dos privilégios estivessem divorciados da reflexão concreta sobre as questões de organização política necessárias, em última instância, para que aconteça uma greve geral dos trabalhadores do McDonald’s. Afinal, esse é o ponto em organizar, não é? Então, sim, os riscos para os trabalhadores do McDonald’s em uma greve geral seriam imensos. Mas como podemos fazer com que eles consigam pôr em ação sua força de classe contra o patrão e a companhia? Isso é algo que você nunca vai ouvir os teóricos do Privilégios discutirem.

Não sou um expert no crescimento da Teoria dos Privilégios na academia. Mas podemos nos perguntar se pessoas como Peggy McIntosh ou Tim Wise já tiveram que se organizar alguma vez. Obviamente muitos organizadores são hoje os principais teóricos dos Privilégios. Porém, ao invés de encontrar soluções políticas e militantes para os problemas dos mais oprimidos, vejo apontarem realidades sociológicas como as que mencionei anteriormente. Infelizmente, organização não é uma aula da faculdade de sociologia. Organização significa luta de classes – com todas as suas diferentes subjetividades – e revolução.

Conclusão

As implicações da Teoria dos Privilégios vão bem mais a fundo do que o que foi discutido neste ensaio. Embora não sejam direcionadas, algumas das melhores leituras sobre isso são os trabalhos de Frantz Fanon. Ele discutiu de maneira profunda a questão de ser um ser humano sob a luz da cor de sua pele, em relação com a luta anticolonial e o desejo de forjar laços humanos comuns.

O propósito deste ensaio foi questionar o fundamento da Teoria dos Privilégios. Essa teoria falha em servir como uma teoria de luta e emancipação real das pessoas oprimidas. Na verdade, ela prende pessoas às mesmas categorias em que o capitalismo as designa, ao focar somente na sua categoria oprimida: seja negro, mulher, Queer, trabalhador ou estudante. Ela falha em desenvolver qualquer política, organização ou estratégia de libertação real, porque nunca pretendeu fazê-lo. A Teoria dos Privilégios é a expressão política de uma sociologia radical pretendendo lutar.

A Teoria dos Privilégios joga fora as discussões sérias sobre políticas, organização e estratégia revolucionárias. As formas de opressão obviamente significam riscos diferentes dependendo de quem você é, mas que soluções a Teoria dos Privilégios oferece? Somente a tradição revolucionária oferece um meio para que as pessoas oprimidas, através de sua própria militância e ação política, possam destruir todas as coisas que as oprimem.

Apêndice

Nossa geração tem poucos revolucionários com quem aprender. Seus saberes estão sendo amplamente esquecidos conforme eles se vão. Por esse propósito, parafraseio uma conversa que tive recentemente com um(a) ex-Pantera Negra. Eu sublinhei o ponto básico deste artigo e as respostas foram as seguintes. Elas são breves, porém acredito que reforce algumas questões sobre as quais revolucionários da nossa geração deveriam pensar. Às vezes são partes contraditórias de um conselho, mas mesmo assim úteis.

Primeiro, esse(a) Pantera era contra a política da culpa. O(a) Pantera sentia que a Teoria dos Privilégios criava essa situação, e pessoas que se sentem culpadas não são boas revolucionárias. Também apontou de prontidão que a política da culpa é o pilar fundamental da Igreja Católica.

Segundo, o(a) Pantera disse que você deve simplesmente mandar que “eles se fodam” quando problemas raciais acontecerem. Tem a ver com lembrar que pessoas que te fazem sentir assim não merecem seu respeito e atenção – então que “se fodam eles”. Isso também pode ser lido como simplesmente ter casca grossa.

Terceiro, o(a) Pantera disse que ninguém deveria se focar em coisas pequenas. O objetivo da política é conseguir coisas grandes: greves gerais, acabar com o Estado, se livrar da polícia, acabar com o patriarcado etc. Talvez o(a) Pantera estivesse também dizendo para organizar essas pessoas. Torne as pequenas coisas irrelevantes por suas habilidades organizacionais.

Quarto, o(a) Pantera disse que tem havido uma guinada à direita em todos os aspectos nos EUA nesses últimos 30 anos. Tais interações [racializadas] estão fadadas a acontecer. As pessoas são parte dessa sociedade.

Por último, o(a) Pantera seguiu explicando sobre a importância de manter sua dignidade. Não ficou claro o porquê do(a) Pantera ter trazido esse ponto. O(a) Pantera disse que, se alguém está te ignorando por causa do seu gênero, classe ou raça, limpe sua garganta, ou vá diretamente para a pessoa, e diga: “me desculpe, mas eu acho que temos as seguintes coisas para conversar”. Mas manter a dignidade pareceu importante.

As seguintes obras influenciaram a escrita deste artigo

Peles negras e máscaras brancas de Frantz Fanon
Em defesa da Revolução Africana de Frantz Fanon
Condenados da terra de Frantz Fanon
A Dying Colonialism de Frantz Fanon
Frantz Fanon de David Macey
Frantz Fanon and the Psychology of Oppression de Hussein Abdilahi Bulhan
Fanon In Search of the African Revolution de L. Adele Jinadu
Frantz Fanon Colonialism and Alienation de Renate Zahar
Existentia Africana de Lewis Gordon
Fanon and the Crisis of European Man de Lewis Gordon
Fanon’s Dialectic of Experience de Ato Sekyi-Oto
Hegel, Haiti, and Universal History de Susan Buck-Morss
Caliban’s Reason Introducing Afro-Caribbean Philosophy de Paget Henry
Náusea de Jean-Paul Sartre
Orfeu Negro de Jean-Paul Sartre
A questão judaica de Jean-Paul Sartre
The Colonizer and the Colonized de Albert Memmi
Discourse on Colonialism de Aime Cesaire
I am a Martinican Woman and the White Negress de Mayotte Capecia
White Man, Listen de Richard Wright
Black Boy de Richard Wright
Richard Wright de Hazel Rowley
Stirrings in the Jug de Adolph Reed Jr.
Notes of Native Son de James Baldwin
Baldwin’s Collected Essays de James Baldwin
A Ideologia Alemã de Karl Marx
Grundrisse de Karl Marx

Notas da tradução

[1] No original: “people of color“. Embora o termo “pessoas de cor” seja pejorativo no Brasil, o mesmo não ocorre nos Estados Unidos. Pelo contrário, os termos “negro” ou “nigger” – entre outros – é que são encarados pejorativamente nos Estados Unidos, o que não se dá no Brasil. Quando utilizado por militantes nos Estados Unidos, o termo “pessoas de cor” serve para incluir e unificar todas as minorias não brancas, não apenas as pessoas negras. Ele foi introduzido nos Estados Unidos entre o final da década de 1970 e o início da década de 1980 por ativistas influenciados por Frantz Fanon.

[2] No original: “nigger“.

[3] Para uma definição de Queer, conferir, por exemplo, este link.

Sobre o artigo, o autor e a tradução

Este artigo foi originalmente publicado em inglês por um coletivo dos Estados Unidos chamado Black Orchid em março de 2012 (aqui). O autor, Will, é apresentado como “um camarada próximo de muitos membros do coletivo”. A tradução para o português foi feita pelo Passa Palavra.

3 COMENTÁRIOS

  1. Valeu por terem traduzido esse texto, é uma pérola e acho que essencial para a realidade brasileira hoje, simplesmente essencial, espero que repercuta muito e gere muito debate!

    Talvez meu único ponto de discordância: na verdade no apêndice, discordo frontalmente do conselho do ex-Pantera negra de que coisas pequenas devem ser ignoradas, de que é preciso focar nos objetivos grandes. De forma nenhuma! se queremos derrotar a opressão, a violência, se queremos construir uma outra sociedade, é preciso SIM lutar e prestar atenção aos detalhes, eles constroem e mantém privilégios e opressões, eles cotidianamente diminuem, minam o espaço dos oprimidos, calam suas vozes. É a microfísica da opressão, que deve sim ser cotidianamente combatida…A revolução deve ser permanente, contínua, e o caminho é fundamental, não somente o “ponto de chegada”.

  2. Lembro de um dos episódios mais comentados da vida de Malcolm X. Ainda em sua fase de liderança da Nação do Islã, uma jovem branca universitária o procurou, ansiosa por saber como poderia ajudar na luta, se havia algum meio de contribuir. A resposta de Malcolm X foi seca: “não, você não pode ajudar”. Ele ainda considerava que brancos não poderiam contribuir em nada com a luta dos negros. Anos depois, tocado pela convivência com muçulmanos de várias procedências em sua peregrinação a Meca, Malcolm X se diria arrependido de não ter acolhido aquela jovem, de não ter transformado aquele desejo em ação.

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