Trata-se de uma forma de governar os indivíduos demonstrando que seus procedimentos de trabalho são ineficazes e que eles precisam inovar e melhorar sua performance. Por Danilo Chaves Nakamura

16638597Em abril de 2014, publicamos aqui no Passa Palavra o texto Mais Educação – Quando as grandes expectativas saem de cena, com o intuito de levantarmos questões sobre o programa Mais Educação da prefeitura de São Paulo. Sem nenhuma intenção de idealizar o passado, apontamos como na gestão da prefeita Luiza Erundina o então secretário de educação, Paulo Freire, buscou reorganizar a educação do município aproveitando-se da energia social da sociedade civil recém-saída da ditadura militar. Os documentos da época afirmavam que a educação pública é um direito e a escola um espaço onde a população deve ser chamada para a construção do saber. Numa tentativa de trazer para o presente esse passado democrático, em meados de 2013, o prefeito Fernando Haddad e o secretário César Callegari lançaram o programa Mais Educação. Eles retomaram a ideia de educação como direito e encenaram uma consulta pública que, além da baixa participação, teve como devolutiva uma “participação social” que apenas reafirmava o que alguns documentos oficiais anunciavam de antemão.

E para além dessa comparação de períodos históricos, buscamos apontar por que esse programa era necessário. Recapitulando, em primeiro lugar, a atual gestão municipal precisava se vincular ao programa Mais Educação lançado pelo Ministério da Educação em 2007. O motivo é óbvio, Fernando Haddad era ministro da educação quando esse programa foi lançado e a adesão de um município da importância de São Paulo, mais do que atender as ações superficiais como a ampliação da jornada escolar e a organização curricular na perspectiva de uma educação em tempo integral que o programa prevê, permite o Governo Federal se adequar às exigências das organizações mundiais (ONU e Banco Mundial, por exemplo), além de tentar melhorar os índices nas provas internacionais que medem a qualidade da educação e o desenvolvimento humano nos diversos países membros dessas organizações. Em segundo lugar, a gestão precisava reformular os ciclos depois da mudança de oito para nove anos do ensino fundamental. O problema é concreto. Os professores do ensino fundamental II terão até 2017 menos turmas nas escolas municipais e sem a reestruturação que criou projetos e aulas compartilhadas, muitos perderiam a oportunidade de participar da JEIF (Jornada Especial Integral de Formação – jornada de 40 horas semanais) e teriam seus salários reduzidos. E, por fim, lembramos como a atual gestão municipal, como toda gestão que pretende permanecer no poder, precisa constantemente jogar as regras do marketing eleitoral, ou seja, lançar programas que apresentem novidades para as políticas públicas – mesmo que não mudem nada – e afirmar a intenção de atender exigências da chamada opinião pública. O programa Mais Educação surge para atender todas essas necessidades.

No presente texto, buscaremos descrever o significado prático da adesão da rede municipal de ensino de São Paulo ao programa Mais Educação. Comecemos pela questão da jornada de trabalho dos professores. Desde o final do ano letivo de 2013, o secretário César Callegari afirmava que nenhum professor que optasse pela jornada de 40 horas semanais seria prejudicado, pois mesmo com um número menor de aulas para os professores de fundamental II, haveria projetos extracurriculares para completar as 25 aulas necessárias para que um professor pudesse participar dessa jornada. Iniciado o ano de 2014, não foi isso o que aconteceu. Por quê? Porque não havia aulas, nem projetos suficientes nas escolas para que todos os professores que optaram pela jornada pudessem completar a carga de aulas. Assim, o professor que não conseguiu o número de aulas necessárias na escola a que estava vinculado precisou completar sua carga de hora-aula em outro período ou em outras escolas. Alguns podem afirmar que a promessa do secretário foi cumprida, uma vez que a maioria dos professores não perdeu o direito de permanecer na jornada especial. Esse ponto de vista é verdadeiro, mas desde que se complemente com o que foi dito acima, pois a quebra de períodos e o acúmulo de escolas num só cargo repercute na quantidade e na qualidade do trabalho docente. E esse é o nó da questão que queremos discutir.

maiseducacao-2A estratégia da Secretaria é clara, forçar todos os professores da rede municipal a terem uma carga de 25 aulas, independentemente do número de escolas que o profissional precise trabalhar para isso. Afinal, os gestores podem argumentar: “os professores são profissionais da prefeitura e não da EMEF X ou Y”. Todavia, apesar da aparente eficiência, o secretário de educação parece não se sensibilizar com o significado prático dessa política de “otimização dos recursos humanos” nas escolas municipais. Os professores que passaram a trabalhar em dois períodos ou em duas escolas para completar as 25 aulas, para além de uma jornada de trabalho que passou a incluir no seu dia-a-dia os deslocamentos de uma escola para outra, tiveram também que duplicar uma série de atividades que fazem parte do cotidiano escolar (preparação de aulas, correção de provas, participação em comissões de classes e reunião de pais, preenchimento de diários eletrônicos etc.). Isso num ano em que as escolas abandonaram os resultados semestrais e voltaram a apresentar resultados bimestrais, que por si só já duplica o número de comissões de classes e reuniões de pais, por exemplo. Parece também não ser preocupação do secretário entender como essa “solução” da prefeitura amplia não só o tempo de trabalho dos professores, mas também o número de alunos que ele precisa atender de forma satisfatória e o número de atividades burocráticas que os professores precisam resolver junto às direções e coordenações escolares.

Se não bastasse essa ampliação ou precarização da jornada de trabalho, que antes poderia ser resolvida apenas num período (manhã, tarde ou noite) e em uma única escola, a prefeitura resolveu introduzir em toda rede municipal a utilização do Sistema de Gestão Pedagógica (SGP), ou seja, um sistemaonline em que os professores passaram a publicar o boletim dos estudantes, os planos de aula, o planejamento anual e outras informações pedagógicas. Na teoria, com esse sistema, os familiares e os gestores pedagógicos passariam a acompanhar o desempenho do aluno e o trabalho dos professores de forma mais regular. Na prática, os professores passaram a ser cobrados para preencher o sistema sem nenhum tipo de curso preparatório ou tutorial disponível capaz de instruí-los. Foram obrigados a divulgar informações, no entanto, sem que as escolas oferecessem conexão de internet nas salas de aula e com uma plataforma incapaz de suportar um número grande de usuários ao mesmo tempo. Passaram a dar conta dessa nova exigência sem nenhum documento público que informasse o que precisava ser preenchido e o que não precisava, criando uma pressão em cima dos diretores, coordenadores e professores por trabalhos desnecessários. O resultado novamente foi mais trabalho, pois para dar conta das pressões que vinham de cima os professores tiveram que preencher o sistema em casa, de madrugada ou nos finais de semana, pois o sistema ficava inoperante nos horários de funcionamento das escolas.

Antes de entrarmos numa discussão mais longa sobre como o pedagógico é afetado nessa nova realidade de trabalho, cabe descrever como passou a se efetivar, por exemplo, a reprovação escolar, medida que chama a atenção por pretender “responder” a opinião pública, que se coloca contra a aprovação automática e a promoção de estudantes “sem méritos ou competências”. O fato concreto é que no ano letivo de 2014, as escolas continuaram tendo um número bastante alto de alunos com desempenhos ruins ou péssimos em termos de rendimentos medidos por conceitos ou notas. E tendo em vista essa realidade, como a prefeitura poderia concretizar a extinção da aprovação automática? Quais seriam os critérios de reprovação para dar conta dessa realidade escolar? No dia 8 de dezembro de 2014, César Callegari afirmou à Folha de São Paulo: “os estudantes das escolas municipais de São Paulo serão aprovados de série mesmo que tenham notas vermelha em todos os bimestres”. Uma afirmação que colocava em questão se a aprovação automática realmente seria extinta. Não por acaso, no dia seguinte, Fernando Haddad precisou corrigir o secretário e afirmar que a reprovação dependeria do posicionamento das comissões de classes e dos conselhos escolares. Essa confusão de declarações acontece, porque, no limite, todos os gestores sabem que o “fim” da aprovação automática não pode se efetivar por critérios pedagógicos. Existe um problema numérico. As escolas não possuem espaços físicos para acomodar o contingente de alunos que entra todos os anos e ainda manter outro contingente que deveria sair. Assim sendo, nas escolas em que número de estudantes reprovados seria muito alto, existiu uma pressão para que os educadores revissem caso a caso as prováveis retenções e achassem um quantum razoável de reprovados. Soma-se a isso o fato de que o número de reprovados reflete na evasão escolar e isso interfere, por exemplo, nos índices educacionais das organizações internacionais que ranqueiam e propõem metas para os países membros.15ago2013---o-prefeito-fernando-haddad-pt-apresenta-na-manha-desta-quinta-feira-15-o-programa-mais-educacao-sao-paulo-novo-programa-para-a-rede-municipal-de-ensino-da-cidade-com-a-iniciativa-1376580680057_956x500

Mas que fique bem entendido, ao afirmarmos isso tudo, não estamos simplesmente denunciando a ineficiência do poder público em dar conta da proposta de extinguir com a aprovação automática. Sem entrarmos no mérito de se é boa ou ruim essa lei, o que queremos destacar é que o significado central dela, ou seja, o gerenciamento contínuo de populações, independente da forma como as administrações públicas nomeiem essa prática. No passado, o poder estatal transformou a ideia de “progressão continuada” em “aprovação automática” e isso tem um conteúdo claro: o Estado precisa administrar o contingente de alunos que estuda na rede pública de acordo com a disponibilidade de vagas disponíveis nos prédios escolares existentes. Isso acontece, principalmente, porque os governos eleitos são incapazes (por questões orçamentárias ou mesmo por vontade política) de criar vagas para os estudantes, abrir concursos para educadores e/ou construir escolas de uma forma que essas pudessem de fato atuar como um espaço educativo. Como sabemos, essa prática abriu margem para diversas críticas que hoje viraram senso comum, ou seja, associando essa prática com a queda da qualidade de ensino, a perda da autoridade do professor ou ainda, a falta de estímulo e desafio por parte do aluno. Assim sendo, no presente, para tentar responder essas críticas e agradar os eleitores, a prefeitura decretou o fim da aprovação automática, mas com o imperativo de inevitavelmente continuar administrando populações. Eleitoralmente isso deverá ter algum resultado, mas do ponto de vista de uma política educacional fica como uma contradição não resolvida, que recairá cotidianamente no trabalho dos educadores.

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A seguir – para começarmos uma discussão mais direta sobre como o pedagógico é afetado nessa nova realidade de trabalho – tentaremos lançar algumas ideias sobre a relação existente entre a precarização do trabalho dos professores e a educação baseada em projetos. Para isso, levantamos as seguintes questões: Qual seria o vínculo entre a precarização do trabalho dos professores com a atual reestruturação curricular proposta pela prefeitura? Os evidentes retrocessos e ataques ao trabalho dos professores seriam apenas um descompasso momentâneo de um programa novo, que precisa ser reajustado? Ou a face permanente do mundo do trabalho num projeto educacional que não tem nada a oferecer aos jovens, a não ser uma sociabilidade marcada pela instabilidade e falta critérios claros nas mais diversas esferas da vida social?

noticias-2012-02-1328876977Desde o início de 2014, o ensino fundamental deixou de ser dividido em I e II e passou a ser organizado em três ciclos, o de alfabetização, o interdisciplinar e o autoral. No ciclo de alfabetização, soma-se o fato da rede municipal ter aderido ao Plano Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic). Em resumo, trata-se de um pacto em que o Governo Federal, mais os estados e municípios que aderiram o programa assumem o compromisso de alfabetizar as crianças até os oito anos de idade. No ciclo interdisciplinar, a prefeitura espera uma nova postura dos professores, espera uma transformação no processo de ensinar com “abertura para novas formas de pensar e agir”. Em termos teóricos é uma repaginação das velhas discussões sobre a interdisciplinaridade, sobre a ideia de aula em que um tema, a princípio enclausurado numa disciplina, passe a ser trabalhado de diversas formas e num constante diálogo entre as diversas áreas do saber a ponto de quebrar a rigidez dos currículos tradicionais. Bem entendido, nada muito diferente da pedagogia freireana de que um tema gerador seja o início de uma reflexão e ação coletiva sobre a comunidade do sujeito do conhecimento. Salvo o prejuízo de hoje não existir um projeto político, que mesmo sendo ilusório – como foi o caso do nacional-desenvolvimentismo da pedagogia freireana – era autêntico. Por fim, o ciclo autoral que, nos últimos três anos do ensino fundamental, busca a formação de um aluno-autor capaz de identificar, problematizar e intervir na resolução de problemas. Nesse processo, o aluno precisa de uma postura “colaborativa”, “proativa” e de “autoria”, enquanto o professor assume a postura de “orientador” e “provocador”, de forma a ajustar os rumos dos projetos dos alunos quando necessário. Tudo isso soa muito próximo da interpretação que a socióloga Regina Magalhães de Souza fez sobre o discurso do “protagonismo juvenil” nos textos das organizações mundiais. De acordo com ela, esse discurso passou a pautar as políticas públicas para os jovens e, para ela, trata-se em última instância de um discurso que se coloca como sujeito e transforma os jovens em objetos de uma política que captura a energia social e a rebeldia típica da juventude. Ou como comentou Paulo Arantes, os alunos aprendem a se “movimentar num mundo de coisas novas que, no entanto, são apenas as já existentes”.

Para completarmos esse raciocínio, vale lembrar que a ideia de uma educação baseada em projetos já aparecia nos Parâmetros Curriculares Nacionais de 2000 e tinha uma íntima relação com os documentos da ONU, do Banco Mundial e ONGs internacionais que estimulam os países em desenvolvimento a seguirem determinadas diretrizes políticas. Diga-se de passagem, isso quando não utilizam de chantagens para liberação de empréstimos, como foi o caso do Programa Nacional de Livro Didático (PNLD), durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Na época, o Banco Mundial, para conceder empréstimos aos países em desenvolvimento, exigia que houvesse investimentos em programas de livro didático. Essa política perdura até os dias de hoje, direcionando grande parte do orçamento da educação para editoras comerciais. E apesar dos discursos políticos e pedagógicos tentarem justificar o uso desses materiais como auxílio ao professor, é preciso lembrar que a intenção do Banco Mundial era pura e simplesmente impor os livros didáticos onde entendia não haver formação adequada, ou seja, o livro substituiria o professor.

Descrita de forma resumida a reestruturação do ensino, vale levantarmos perguntas a fim de tentar entender a possível relação entre a precarização do trabalho docente e o programa Mais Educação. Como se deu a reorganização dos ciclos, tendo em vista a realidade de trabalho dos professores (além do que foi descrito nos parágrafos acima, é bom lembrar que uma imensa quantidade de professores precisa acumular cargos em outras redes para complementar seu orçamento familiar)? A prefeitura respeitou as horas livres e as horas atividades que o professor geralmente utiliza para preparar as aulas, planejar o curso, corrigir as atividades e conversar com os responsáveis dos alunos? Ou essas horas foram utilizadas para o deslocamento físico de uma escola para outra, para a tentativa de utilizar o Sistema de Gestão Pedagógica, para a correção de provas e/ou para inúmeras outras atividades que são cobradas cotidianamente no espaço escolar? Como a prefeitura pensou o trabalho de orientação de pesquisa dos professores? Foi garantido algum tempo dentro da jornada de trabalho para essa nova função? Ou o professor passou a levar mais trabalho para casa, ou seja, ampliou o número de atividades não remuneradas que já fazia parte de sua realidade? Em síntese, o programa de reestruturação propõe de forma clara uma série de novidades em relação ao trabalho docente, que no papel aparecem como mudanças puramente pedagógicas. Mas – se estamos colocando as perguntas certas – como não há nenhuma ação para viabilizar de forma respeitosa e honesta essas novidades pedagógicas na jornada de trabalho dos professores, a prefeitura cria apenas um programa de precarização do trabalho que, inevitavelmente, torna todo o discurso pedagógico vazio, dado que o intuito seria o de promover mudanças educacionais efetivas.

5448226528_823a977885_zIronicamente, pedagogos que colaboram para a revista Magistério, editada pela própria Secretaria Municipal de Educação, afirmam o inverso do que a gestão vem oferecendo como condição de trabalho. Em entrevista a revista, José Cerchi Fusari e Elba de Sá Barreto afirmaram: “(…) dentro da perspectiva do processo ensino-aprendizagem merece uma atenção especial das políticas públicas de valorizar muito o tempo do professor”. “É sagrado o meu tempo de preparo da aula. (…) Então eu não posso descolar condições de trabalho, condições objetivas com o meu trabalho de professor”. Soma-se a essas falas o reconhecimento de que sem as condições mínimas de tempo para pesquisa, estudo e preparação de aula, o professor “não é sujeito do processo. Ele é objeto. Ele executa política, programa, projeto”. De forma pontual, José Cerchi Fusari e Elba de Sá Barreto perceberam no trabalho do docente sem tempo de pensar e refletir sobre sua própria atividade o mesmo mecanismo que a socióloga Regina Magalhães de Souza, que já citamos, percebeu em relação aos projetos para a juventude. Em resumo: adequação a uma política em que se incorpora a atuação dos indivíduos ao mesmo tempo em que a domina e controla.

Mesmo tendo em vista a descrição da forma como se organizou o trabalho dos educadores da rede municipal de ensino no ano letivo de 2014 e o encadeamento de algumas diretrizes propostas pelo programa Mais Educação, certamente encontraremos quem defenda a forma como está sendo gerida a educação na cidade de São Paulo. Esses dirão que a atual gestão, após uma sucessão de governos catastróficos, resolveu apostar num programa que propõe mudanças estruturais na educação, ou seja, um programa de âmbito nacional que demonstra os esforços do poder público em melhorar a situação do desenvolvimento humano no país e que, diferente de todos, ainda dialoga com a opinião pública. Dentro dessa linha, outros ainda afirmarão que a ênfase na educação como direito e a ideia do aluno-autor é um processo de empoderamento dos jovens de classes sociais até então desfavorecidas, que hoje podem encontrar um horizonte promissor. Bem, se essa interpretação estiver minimamente correta, após um ano cheio de erros grotescos na forma de aprovação e execução do programa, a secretaria de educação deverá repensar – ainda que não assuma – tudo o que até agora implantou, pois, do contrário, continuará executando políticas da chamada governança mundial, precarizando o trabalho docente, desviando os recursos públicos para empresas privadas e oferecendo uma educação em perfeita sintonia com a sociedade reprodutora de desigualdades. Sem ironias, e para deixarmos clara nossa posição, não concordamos com essa interpretação, mas nos sentimos obrigados a repertoriá-la, pois ela retorna como retórica e tentativa de convencimento – de quatro em quatro anos – para a “aclamação” e a “glorificação” do atual “reino” da exploração.

A segunda interpretação possível seria uma demonstração de como o programa Mais Educação faz parte de uma nova racionalidade que domina as instituições e as administrações públicas. Nessa nova racionalidade, a flexibilização e a intensificação do trabalho dos educadores seria o momento necessário da transformação das instituições públicas governadas por meios gerenciais e concorrenciais, em que o trabalho do funcionário público passa a ser entendido dentro da lógica concorrencial. Assim, por exemplo, ganha sentido todo o discurso de que o professor da escola pública não tem formação adequada e precisa estar constantemente se preparando, uma vez que seus métodos de ensino estão em constante defasagem com o mundo moderno e a vivencia dos alunos. Trata-se de uma forma de governar os indivíduos demonstrando que seus procedimentos de trabalho são ineficazes e que eles precisam inovar e melhorar sua performance. Para apresentarmos um quadro mais completo, na gestão educacional, o outro lado dessa racionalidade seria uma educação que oferece aos jovens, não uma forma de vida plena na sociedade civil, ou seja, com a possibilidade de inserção no mercado de trabalho, com uma formação para o exercício pleno da cidadania e a capacidade de decidir com autonomia seu destino. Muito pelo contrário, ofereceria o aprendizado de um conjunto de estratégias e habilidades de que os jovens terão de se valer para sobreviver em condições sociais cada vez mais adversas.

Enfim, se os educadores não forem ouvidos e o Mais Educação repensado de forma geral, tal como sugere a primeira interpretação, será a partir da segunda hipótese que deveremos pensar coletivamente uma ação que interrompa a destruição sistemática da educação pública e vise uma educação verdadeiramente emancipadora.

07 de janeiro de 2015.
Danilo Chaves Nakamura é professor da rede municipal de ensino da cidade de São Paulo

Textos consultados:

ARANTES, Paulo E. O MST recriou a escola. In: www.mst.org.br, outubro de 2008.
AGAMBEN, G. O reino e a glória. São Paulo: Boitempo, 2011.
DARDOT, P. e LAVAL, C. La nouvelle raison du monde. Paris: La Découverte, 2009.
FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 8 de dezembro de 2014.
NAKAMURA, Danilo C. Mais Educação – Quando as grandes expectativas saem de cena. In: PassaPalavra. (/2014/04/94801)
REVISTA MAGISTÉRIO, número 2, 2014.
SOUZA, Regina Magalhães de. O discurso do protagonismo juvenil. Tese defendida na Universidade de São Paulo, 2006.

3 COMENTÁRIOS

  1. Gostei muito do texto. Ele reafirma meus comentários na escola em que trabalho, nas reuniões que participei neste últimos dois anos. Minha indagação sempre foi: Que reestruturação é essa, se me atolaram em deveres sem sentido? Reescreve-se uma teoria velha, onde a formação do profissional nunca chega e o interior das escolas continua sempre igual.

  2. Danilo, esse seu segundo texto traz questões essenciais em relação a precarização do trabalho docente e a qualidade da educação, mas principalmente para se pensar em como a política do PT para a educação pública não se distancia do projeto conservador neoliberal iniciado nos anos 1990, sob a égide do PSDB. De forma mais eficiente, ela carrega em si elementos ideológicos que são a chave para o sucesso da expansão desse tipo de política: atrelar interesses da classe trabalhadora (educação em tempo integral) aos interesses do empresariado, que defendem mais educação para os trabalhadores, para que o país alcance um melhor posto no rancking do desenvolvimento econômico e social no mundo. A questão que nos parece emergencial, para mim, é mais profunda: que capacidade ainda se tem, dentro do âmbito das políticas públicas, de se combater essa visão de desenvolvimento humano capitalista, através da educação escolar? Essa expectativa de “desenvolvimento do cidadão” e formação para o “mercado de trabalho” dificilmente vai desembocar em uma perspectiva emancipatória e que faça os jovens vislumbrarem o mundo do trabalho como algo cheio de possibilidades…
    Muitas questões, mas enfim, aguardo outros textos seus para continuarmos debatendo

  3. Oi Carol,

    você tem toda a razão… É preciso duvidar e colocar mil questões para uma educação cuja expectativa seja “desenvolvimento do cidadão” e “formação para o mercado”.

    Isso seria o mínimo que um estado numa sociedade de classes deveria oferecer? Ou foi uma política que funcionou de forma muito localizada numa época que o estado aceitou os trabalhadores como parceiros sociais (estado de bem estar social europeu, por exemplo)?

    Eu ainda coloco uma terceira expectativa: “autonomia” em que o indivíduo seja capaz de pensar por conta própria. Isso aqui acho que não podemos perder de vista.

    Mas enfim, precisamos quebrar a cabeça de forma coletiva para respondermos todas essas questões.

    Valeu pelo comentário! Ajuda a pensar e a colocar mais questões.

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