O Filho de Deus, o filho do Homem sorria. Sorria e bailava com os demais, como qualquer messias vagabundo nascido na Galileia ou na Zona Leste de São Paulo. Escrito Por testemunha ocular Douglas Rodrigues Barros

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O milagre da multiplicação: Teotônio é batizado por Mãe Eulália

Alvorada! Lá no morro que beleza
Ninguém chora, não há tristeza,
Ninguém sente dissabor!

(Cartola)

Teotônio – já refeito do tiro que tomara – encontrava-se sentado numa pedra saliente, coberta por esses fungos, na mais reflexiva solidão do descampado e contemplava pensativo as profundezas de sua alma ébria, onde fervilhava um impetuoso senso de bondade. Nuvens claras deslizavam no céu anil e rumavam ao acaso do vento. O sopro invisível deste último fazia dançar as palhas de milho que soavam uma estranha musicalidade, entrecortada pelos gritos de pássaros que comendo o que caia no chão logo levantavam voo e se lançavam na imensidão do céu perseguindo o acaso que levava as nuvens embora.

Opa Nila Baba Igi II – Grande Cetro do Pai da Árvore
Opa Nila Baba Igi II – Grande Cetro do Pai da Árvore

Tinha Teotônio a sensação de sentir toda aquela alegria plangente da natureza que ainda resistia contra os tratores, sensação que era traduzida nos sons harmoniosos daquele deserto, como se ele próprio estivesse prestes a transfigurar-se nessa alegria, como se todo o seu ser fosse alimentado por aquelas notas ouvidas e sentidas na alma. A alegria dava o ritmo das batidas do seu coração e, enquanto as lágrimas marejavam seus olhos, era como se os espíritos dos antigos santos descessem ao seu encontro estendendo-lhe os braços para que mergulhasse nas profundezas daquilo que não pode ser expresso em palavras.

Eis que, ao longe, ecoou pelos ares o som alegre dos atabaques, suavizando e aprofundando a alegria que lhe invadia o peito. Sentiu que em seu íntimo voltavam a despertar os anseios de ir para a velha Jerusalém, isto é, São Paulo. Olhou ao redor e, enquanto prosseguia as batidas frenéticas e poéticas dos atabaques, percebeu que a dor na barriga cheia de pontos já não doía tanto, que já pareciam mais alegres as cores de seu rosto que tinha ficado tão pálido pela perda de sangue. Voltou a ter aquela valentia do filho do Homem.

– Sim! – Exclamou, erguendo-se de repente e olhando para todas as paragens distantes com olhos cheio de divindade – Sim, é tempo de voltar para Jerusalém. Aqui sofri minhas tentações e guardei meu jejum… é tempo de levar a Palavra àquele povo insano! – Quando, finalmente emocionado pela torrente de sons produzidos pelo atabaque se colocou a marchar e falar consigo mesmo – Quase perco minha vida nessas paragens, mas que nada! Sou o filho de Deus, posso até não ser o primogênito, porque Ele veio antes de mim, mas, eu poderia voltar da morte também! Aliás, o tiro não foi fatal porque meu Pai não permitiu! Quem que não Ele para me guardar? Pressinto em meu íntimo que algum acontecimento inesperado haverá de acontecer e depositar em minhas mãos a vitória que preciso impor contra o cherafundo!

E assim Teotônio dispôs-se a retornar para Pagu. Seguindo por uma viela, avistou na estrada, do outro lado, um carro que levantava poeira. Do seu interior alguém lhe acenava com um sorriso amigável e com os braços erguidos. Aproximando-se do veículo, Teotônio reconheceu Armando Pereira – o Armando! – que além de ser um bom companheiro no assentamento era um célebre tocador de pandeiro a quem admiravam sobremaneira pela capacidade de despertar mesmo o mais tímido ser, e de quem muitos gostariam de herdar o dom.

– Que bom! – Disse Armando parando e descendo do carro – Que bom, meu querido Teotônio, meu querido amigo e mestre, que bom encontrar você aqui e poder te chamar para ir ao terreiro!

– O senhor vai para o terreiro de dona Eulália? – Perguntou Teotônio – Todos irão lá essa noite, já tem comida suficiente para todos?

– Não! – Exclamou Armando com o rosto avermelhando de preocupação – Não, Téo, estou buscando recursos para conseguirmos fazer uma grande festa, hoje é dia de Oxum e o bicho vai pegar, vou ver se encontro um banco e tiro dinheiro para ajudar!

Ope ati Ofá Ode – Palma do Caçador Mítico com Seta
Ope ati Ofá Ode – Palma do Caçador Mítico com Seta

– Então está falando com a pessoa certa – Exclamou com alegria Teotônio – Sou o filho do Homem e nem precisa se preocupar, vai ter fartura na festa! Vou multiplicar tudo! – Teotônio aguçou os ouvidos para ouvir a música que vinha do horizonte – De fato ouço sons vibrando já, os mais belos e maravilhosos até me comovem. Mas, essas melodias não vêm do horizonte, muito menos das palhas do milheiro. Parece que no terreiro já começam a esquentar os tamborins!

Teotônio tinha razão. Com efeito, as batidas que soavam, se avolumavam mais e mais, e pareciam aproximar-se progressivamente, assemelhavam-se aos sons de mil exércitos cujo tamanho, entretanto, devia ser indescritível. Teotônio entrou no carro de Armando e ao avançarem não muitos metros, deparam os dois amigos com um espetáculo fantástico, que os deixou estupefatos e quase petrificados. A pouca distância do lugar em que se encontravam, viram um menino que, movendo-se lentamente, levava um Rum gigantesco. Aquele instrumento destoava apenas pelo grosso couro, adornado com uma tira de couro marrom que o segurava ao corpo do instrumento balouçante. Mas, o menino assemelhava-se a um soldado de Palmares, sem camisa e com calça de saco cintilava um sorriso majestoso para os dois. A medida que se movia, produzia a música maravilhosa que se escutava outrora ao longe. Ao passar pelos dois amigos, ele lhes fez um aceno gentil com a cabeça. Neste momento, Teotônio ainda inebriado pela figura lhe chamou e disse:

– Estamos fazendo uma arrecadação para o terreiro da Eulália, precisamos arrumar muita comida porque a festa vai ser feroz! E depois, será minha última porque hoje mesmo volto para Jerusalém!

– Mas, Téo – exclamou o menino guerreiro – Você não pode nos deixar, todo mundo gosta tanto de você… vou fazer o seguinte: vocês levam o Rum lá para dona Eulália que eu vou avisar de sua partida e da ajuda para a festa!

– Feito! – Redarguiu Teotônio.

O menino lançou-lhe um olhar, deu-lhe um aceno e um sorriso amistoso. Assim, que o menino colocou o instrumento no porta-malas, o prodigioso Teotônio, junto a Armando, desapareceu estrada a fora rumo ao terreiro.

Já não há como ocultar o fato de que essa ação de avisar o menino de sua partida, ação aparentemente tão pequena, fez multiplicar os pães, a cerveja, a cachaça, as verduras, a carne, a galinhada, os assados e tudo que convém a fartura daqueles que nunca tiveram nada. Poucos instantes depois e não parava de chegar no terreiro de dona Eulália as contribuições de toda gente não só do assentamento, como gente das cercanias próximas que ouviram dizer que havia um profeta de verdade por aquelas bandas.

* * *

– Está com uma expressão tão alegre – Disse Alexandra ao seu amigo Teotônio enquanto rumava ao terreiro de dona Eulália – Seus olhos tem um brilho especial, estão felizes!

Awon Okan Nile – Corações da Terra
Awon Okan Nile – Corações da Terra

Dentro em breve encontraram-se os dois diante da porteira que vedava o acesso ao lado interno daquele lugar maravilhoso em cujo centro erguia-se o casarão da dona Eulália. Os sons já estavam em pleno vapor, a poesia dos deuses africanos já invadia todos os menores detalhes do lugar e a festa colocava de ponta cabeça o mundo.

– Não sei como é que vamos conseguir entrar com esse barulho – Disse Teotônio.

– Acho que devemos pular a porteira – respondeu Alexandra agarrando-se a madeira na qual o ferrolho demonstrou que não precisavam já que estava aberto.

E agora começa a longa procissão de Teotônio num delírio báquico do espírito repartido com Alexandra. Mal tinha ela soerguido o ferro, fez-se ouvir um murmúrio subterrâneo, semelhante a um trovão longínquo que parecia fazer tremer o chão. A porteira abriu-se lentamente, sem que Alexandra a tivesse empurrado, os dois entraram e puseram-se a seguir as vozes e a linda cantoria. Por entre mangueiras e abacateiro podiam divisar o pomar.

– Está sentido alguma coisa extraordinária? – Perguntou Alexandra.

– Uma energia aqui mostra que hoje sentaremos com santos de outras épocas, tudo aqui parece tão maravilhoso e fantástico, será que por aí tem um abacateiro tão bonito e uma mangueira tão cheia? Algumas mangas, alguns abacates são tão lisos e bonitos que até parecem ser do paraíso e olha… que eu sei do que estou falando!

Alexandra avistou duas galinhas, dessas bem grandes, que, desde a porteira, acompanhavam os dois caminhantes e decidiu abaixar-se para tentar pegar uma delas. Ambas as galinhas fugiram para o meio do pomar de dona Eulália, de onde passaram a observá-los com um estranho olhar humano. À frente do casarão estendia-se um gramado no qual pastavam dois cavalos belos e grandes, enquanto nos ares ecoavam os mais harmoniosos batuques.

– Está ouvindo e vendo? – Perguntou Alexandra.

– É o som dos deuses – Replicou Teotônio – Os sons que ouvimos certamente provêm de atabaques gloriosos expostos ao vento!

A arquitetura simples e sensivelmente grosseira do casarão de dona Eulália, uma casa de tamanho médio, de um só andar com amplas janelas e corredores, encantou ambos amigos. Eles foram para as laterais quando o som ia aumentando e, em breve, já se afiguravam centenas de rostos felizes que os olhavam com alegria incomensurável. Na passagem de ambos se abriu imediatamente um corredor entre todo povo reunido para a grande festa. Um grande pássaro de plumagem azulada com mil olhos desenhados, apresentou-se como anfitrião, olhou para Teotônio e Alexandra reconhecendo ser aquele o profeta de todos os tempos e épocas e por isso, piou agudo.

No mesmo instante abriu-se um amplo corredor sob os sorrisos dos irmãos e irmãs de Teotônio, os atabaques cessaram e Mãe Eulália em pessoa foi ao encontro dos amigos. Era uma mulher negra e forte, usava um ojá branco, que cobria uma bela cascata de grandes cabelos crespos. Vestia além disso, um balandrau branco, lindamente composto e ornado por hábeis mãos, e os pés estavam livres para sentir com sua polpa a terra do lugar abençoado. Em sua fisionomia estavam estampados a bondade que se cruzava com a de nosso messias e transformava aquela cena toda em algo incomum, como se estivessem se encontrando dois profetas. O silêncio ecoava e todos olhavam para os três.

Ope Awo Ninu Ibo – Palma do mistério do mato
Ope Awo Ninu Ibo – Palma do mistério do mato

– Caros irmãos – disse Mãe Eulália com voz suave e sorrindo gentilmente – Todos nós esperávamos vocês, eu os vi chegar e já antes sabia que viriam, a festa não é só para comemorarmos o defensor do assentamento, mas também, para nos despedirmos do grande defensor, isso significa um recomeço, mas Oxóssi vai te guiar meu filho! – Teotônio curvou humildemente a cabeça e Mãe Eulália o batizou com as mãos em seus ombros e um abraço caloroso ajudado por todos Orixás. Depois, conduziu Alexandra e Teotônio assim para o centro do terreiro e benzendo-os fez sinal para reiniciar a festa.

E foi tudo lindo. Dançava Alexandra aqueles cantos milenares quando todos alcançaram o puro estado de êxtase, de repente, um roseiral e um sopro mavioso perpassava a vegetação que ia se aflorando nas consciências de nossos dois amigos, e o perfume das rosas se tornava intenso, apaixonante. Teotônio viu uma bela mulher alada cuja pele mostrava o labor do sol, pairava no ar e sentou-se. Eram anjos enviados pelo seu Pai, que naquele instante podia ser Jeová ou Oxalá não fazia diferença alguma. Nosso herói parecia deleitar-se, pois seus olhos demonstravam prazer. Os cantos eram harmoniosos, envolventes, belos e instigantes, tratava-se de uma legítima festa popular onde nenhuma mascara restava pregada na cara. De repente, tudo cessou:

– Um brinde a Teotônio – Disse Martha que dançou calorosamente toda a noite.

– Quero ainda dizer algumas palavras – Disse Armando por sua vez, ao que todos silenciaram no terreiro e Teotônio sentado próximo a Alexandra estava a todos ouvidos – Bem-aventurados os que… – Todos riram e Armando prosseguiu – Brincadeira! Eu queria dizer o seguinte: Teotônio era somente mais um louco, quando o vi pela primeira vez. Pelo menos era essa minha ideia, mas esse simples moribundo que aqui está não apenas representa legitimamente as aspirações perdidas da humanidade como ainda é a encarnação da bondade que bem ou mal vem sendo defendida pelos escravos, pelos desvalidos e pelos oprimidos de toda espécie durante mais de dois mil anos. Com erros supostamente justificados, a imposição dos vencedores institucionalizou o amor, e infelizmente nada sobra hoje que não seja contaminado por essa danação. Teotônio é a contraposição da posição adotada pela religião oficial, ele se crê realmente o filho de Deus. Mas, que outra função aquele outro louco que chamamos de Jesus veio senão para nos fazer acreditar nessa sandice? Sandice que prosseguiu e que prossegue no puro intuito de acabar de vez com esse vazio da nossa existência! O fim é muito mais terreno que celeste, é isso que Teotônio mostra e demonstra na sua ação, nada de uma transcendência… Téo é imanência pura! He! He! Acho que não entenderam o que acabei de dizer! Então lembrem daquela música: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar!” – Vamos lá gente dá o tom!

Não sou eu quem me navega
Quem me navega é o mar

E todos começaram a cantar com aquele sentimento de felicidade ensandecida que só conhece quem se deixa conhecer por si mesmo.

Não sou eu quem me navega
Quem me navega é o mar

Inebriado, o terreiro era só uma voz, um só corpo que balançava levando para o espaço um quê de mistério e fantasia, uma só intenção de consumação do próprio tempo em si. Não havia progressão ali, não havia história, muito menos razão. Os sorrisos se completavam reciprocamente, todo espetáculo sonhado pela humanidade se realizava de tal maneira, que mesmo o Hino à Alegria de Beethoven não era capaz de apreender em sua melodia os espasmos da alma Humana que se agigantava naquela arena. Sim. Eram deuses todos aqueles esfarrapados…

É ele quem me carrega
Como nem fosse levar

Eyelé N’la – Pomba mítica
Eyelé N’la – Pomba mítica

Os balanços negros, o rodopiar de mãos abertas e balouçantes indicava a alegria sem fim, alegria eterna que só é capaz de alcançar quem sabe o que significa ser nobre. Os violões levavam para as almas sua fragrância demasiadamente leviana, seu remelexo amplamente nosso. Aliás, o nós se apresentava como única razão do ser que se é:

É ele quem me carrega
Como nem fosse levar

E assim, a lua cheia novamente encontrava razão para brilhar. As estrelas se incomodavam e xingavam as nuvens que dançantes queria fazer parte daquela festa. Tudo, exatamente, tudo encontrava naquela reunião de miseráveis razão de ser. E eram muitos os sorrisos, muitos os olhares cheios de Deus, Deus dos vagabundos, Deus da malandragem, Deus que não tem outra razão de existir senão para cuidar de miseráveis e gatunos de toda espécie:

E quanto mais remo mais rezo
Pra nunca mais se acabar

O Filho de Deus, o filho do Homem sorria. Sorria e bailava com os demais, como qualquer messias vagabundo nascido na Galileia ou na Zona Leste de São Paulo. Não fazia diferença, todos eram agora filhos do Homem e como tais encontravam tudo naquele terreiro. Todos tinham a si próprios como razão, mas, a maior razão que encontravam era compartilhar o si com o outro. E, embalados pelo frescor do vento, mergulhados no som de atabaques e violões, hipnotizados pela beleza gratuita da fraternidade de reconhecer-se como um universal sem abandonar a si mesmos, encontravam naquela alegria inebriante um motivo a mais para seguir adiante:

Essa viagem que faz
O mar em torno do mar
Meu velho um dia falou
Com seu jeito de avisar:
– Olha, o mar não tem cabelos
Que a gente possa agarrar[1]

Rodopiaram a noite inteira e de repente, todos descobriram que levar tiro, ser expulso de terras e viver à míngua tem sentido quando se faz isso com o outro, no fim é só esse outro que importa! Teotônio e Alexandra se embebedaram e adormeceram com todos no meio do terreiro. A jornada no deserto tinha acabado gloriosamente e até anjos via-se embriagados, com asas amassadas e tortas naqueles dias tão distantes!

Nota
[1] Timoneiro,  música de Paulinho da Viola.

Ejo Kekere – A cobra pequena

As esculturas que ilustram o texto são de Mestre Didi.

 

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