O processo iniciado em junho de 2013 parece ter chegado a um novo e perigoso patamar. Por Passa Palavra
Prestes a se completarem três anos da Revolta dos Coxinhas, o espectro de uma nação em cólera volta a ocupar o centro da vida política do país. As ruas voltaram a ser ocupadas hegemonicamente por uma histeria coletiva. Embora não tenha ocorrido uma revolução, ou sequer uma ascensão à la esquerda bolivariana ao poder, o que se demonstra empiricamente pela atual composição ministerial, o Brasil parece estar passando por uma ruidosa contrarrevolução, já experimentada por países vizinhos como a Venezuela ou em lugares mais distantes como a Ucrânia [*]. Ao mesmo tempo em que a violência estatal contra as manifestações de direita se faz praticamente ausente ou consideravelmente mais branda, respeitando-se o direito à manifestação como nunca se viu, os atos vêm sendo inflamados por partidos da oposição de direita e convocados pela grande imprensa, a exemplo da Rede Globo. No entanto, numa racionalidade peculiar, os manifestantes têm respondido com violência à presença desses mesmos agentes, que os apoiam, nas ruas. E, além disso, têm se organizado para destruir simbolicamente toda uma tradição de luta anticapitalista, promovendo o ódio contra os “petralhas”, os comunistas, os “vermelhos” etc., e atacado pessoas verbal e fisicamente nas ruas e até mesmo nos locais de trabalho. O processo iniciado em 20 de junho de 2013 parece ter chegado agora num novo e perigoso patamar.
O seu perigo reside não somente na sua capacidade mobilizadora mas por servir fundamentalmente como base de apoio para que o juiz responsável pela operação Lava Jato, Sérgio Moro, e a Polícia Federal executem uma operação repleta de ilegalidades contra a maior autoridade de uma democracia, sem que isso se torne um escândalo. É a partir desse quadro que se fortalece um movimento tipicamente fascista.
Parece que nos movimentos atuais, como há um século atrás, os democratas acreditam poder usar as hordas furiosas para atacar seus inimigos da vez, como uma arma para, violentamente, substituir no controle do Estado uma fração dos gestores por outra. Entretanto, se o fascismo original dependeu da derrota da revolução para encontrar permeabilidade no proletariado, o fascismo pós-fascista não precisou de tanto. O esgotamento dos partidos da esquerda eleitoral e o esfacelamento dos grupos de extrema-esquerda foram o suficiente para setores da classe trabalhadora buscarem respostas no campo da extrema-direita; gestamos uma contrarrevolução sem revolução. Ao que tudo indica, a história tem nos ensinado muito pouco.
O movimento em ascensão retoma aspectos do fascismo clássico, como o anti-intelectualismo e o ódio aos políticos, uma vez que para o fascismo a política significava demagogia e corrupção, ao passo que o regime democrático era sinônimo de plutocracia e a atividade intelectual independente descomprometida com a ação. Atualmente, intelectuais e artistas identificados com o pensamento de esquerda, ou que assumem uma posição moderada, são hostilizados, e mesmo políticos vinculados aos partidos da oposição de direita foram expulsos das últimas manifestações. É cada vez mais claro o envolvimento dos principais partidos políticos nos mesmos esquemas de corrupção, daí o clamor, de coloração fascista, pela “ação” e pelos “homens de ação”. Isso significa que não é apenas a esquerda que está sendo hostilizada, mas também a ala direita partidária, que pretende conservar o jogo democrático.
Ao mesmo tempo, esse movimento em ascensão deposita sua fé numa relação orgânica entre chefe e massas, valorizando, acima da “politicagem” e do “intelectualismo”, os homens de ação “incorruptíveis”, comprometidos com os verdadeiros interesses da nação. Esses homens, se necessário passando por cima da legalidade, das regras de um ordenamento jurídico-político corrupto e degradado, atendem aos clamores populares. É nesses termos que as massas nas ruas saúdam o juiz Sérgio Moro como um chefe em potencial da nação em cólera. E mais preocupante: essa interação entre o homem de ação, e líder em potencial, e a nação em cólera, que dispensa a mediação de mecanismos democráticos, tem sido apresentada como a “verdadeira democracia”.
Contrariamente ao que se poderia supor, no entanto, tais práticas e concepções manifestam-se também na esquerda. Se a raiz dos protestos, do ponto de vista econômico, reside no esgotamento do programa econômico do campo democrático-popular, do ponto de vista político foi a esquerda, incluindo a esquerda autônoma, que pavimentou o caminho para a nação em cólera. O mesmo anti-intelectualismo e o mesmo desprezo pelos ritos democráticos têm ganhado corpo no âmbito da esquerda. A crítica – à direita e à esquerda – tem sido reduzida a formas banais e vazias de conteúdo. Aqueles que tentam se desvencilhar das banalidades do senso comum, do qual faz parte hoje o “politicamente correto”, são acusados de academicismo, de estarem afastados das ruas e de serem arrogantes. Por outro lado, parece imperar uma lógica maniqueísta, segundo a qual não existe alternativa possível frente à bipolaridade situação-oposição (maniqueísmo este que, levado às últimas consequências, prescreve o apoio às tais Frentes de esquerda). Além do mais, a busca de um inimigo público a ser destruído, ou “desconstruído”, por todos os meios possíveis e imagináveis não se distingue de certas práticas adotadas pela própria esquerda, como os escrachos de militantes, passando por cima de valores democráticos como o direito de defesa e a presunção de inocência, em nome de interesses atribuídos a grupos de identidade e “lugares de fala”. Os linchamentos e o justiçamento – que do lado de cá é entendido como “ação direta” – tornaram-se a norma geral em ambos os lados do tabuleiro. A virulência com que são feitas denúncias, julgamentos e escrachos é em muito semelhante à virulência característica desse movimento fascista. Da política da repulsa ao racista e ao machista passamos para a política da repulsa ao corrupto e ao petista.
Para além da moral, os atos organizados por essa nova direita são uma mimetização dos métodos outrora utilizados pelos movimentos da esquerda autônoma: as grandes convocações abertas, o clamor pelo apartidarismo, o ato encarado como um espetáculo que serviria supostamente para atemorizar as autoridades, a ausência de lideranças fixas etc. Porém, há algumas diferenças: os atos são amplamente divulgados pela grande mídia, os partidos (de esquerda e de direita) são atacados violentamente, são proclamadas novas autoridades morais e algumas siglas são lideradas por empresários. A principal delas, por exemplo, o Movimento Brasil Livre (MBL), é uma clara tentativa de emular o principal movimento da esquerda autônoma em 2013, o MPL. Também existe uma emulação estética de gritos e ritmos das lutas autônomas, como “amanhã vai ser maior”, “quem não pula é (comunista)” etc. Emularam inclusive a luta dos secundaristas fazendo uma versão antiDilma da música “Baile de Favela”: “Baile de Propina”. Enquanto em 2013 gritos genéricos foram assimilados a partir da imprensa pelas ruas (“sem violência” e “vem pra rua”), vemos agora uma profunda cópia estética do movimento.
Existe também uma apropriação de temas típicos da esquerda, como foi constatado em pesquisas empíricas no ano passado e neste ano. Muitos dos manifestantes não são a favor do desmonte dos direitos sociais e trabalhistas, e uma parcela considerável defende direitos civis como o casamento homoafetivo. Uma grande parte se vê insatisfeita com o aumento da inflação e com a precariedade dos serviços públicos, como saúde, educação e transporte. A questão é que atribuem esses problemas sociais à corrupção das autoridades. Uma demonstração dessa hipótese talvez apareça num relato sobre militantes de esquerda que tentaram disputar o ato do dia 13 “por dentro”: conseguiram dialogar por algum tempo com a massa, até que uma das lideranças do ato os percebeu e inflamou a violência e a histeria contra “os comunistas que fazem apologia às drogas” – aquelas pessoas que, minutos antes, conversavam tranquilamente se tornaram violentas de uma hora para outra. É no moralismo e na estética que se unificam esses grupos sociais com interesses tão diversos.
Essa situação se agrava sobretudo agora, quando a oposição, que vinha agindo dentro dos ritos democráticos, pretendendo derrubar o governo através do mecanismo legal do impeachment, passa a cogitar a utilização de atos ilegais como forma de pressão. O movimento fascista passa então a se consolidar como uma força de pressão aos poderes da República para tentar viabilizar a queda do governo a todo custo. Ao mesmo tempo, a massa, antes ordeira e levantando a palavra de ordem “sem violência”, parece inaugurar uma nova etapa de sua presença hegemônica nas ruas, tratando aos pontapés não apenas os defensores do governo, ou militantes e intelectuais de esquerda ou moderados, mas também autoridades. Além disso, não apoiadores do impeachment ou eleitores do PT têm sido ameaçados e denunciados em seus locais de trabalho. Está ficando claro que o movimento fascista está pretendendo se organizar simbolicamente como as acampadas do 15M e o Occuppy, ou mesmo como o movimento ucraniano – como demonstram quase 40 horas de ocupação da avenida Paulista, entre 16 e 17 de março –, e valendo-se de táticas de mobilização de rua para viabilizar a queda do governo, que eram exclusivas dos movimentos sociais, enquanto o governo Dilma e o PT se mantêm explorando as alternativas legais à sua disposição para se manterem de pé. Será que nos deparamos com uma mudança no padrão de resolução dos conflitos sociais e políticos, de mecanismos democrático-populares para mecanismos semelhantes aos que se podem verificar na Venezuela, onde manifestações e resistências massivas são organizadas pela oposição e acabam resultando em choques violentos entre direita e esquerda na ruas?
Surgem então questões importantes: o que a esquerda que não está mais, ou não está ainda, presa à teia pegajosa do governismo, que vem sendo tecida desde a chegada de Lula ao poder, pode fazer para não se tornar também ela, ou principalmente ela, alvo da nação em cólera? E o que pode fazer ela para se contrapor, ao mesmo tempo, ao campo democrático-popular e ao fascismo em ascensão? Será essa “terceira via” uma possibilidade com a qual essa esquerda em crise pode contar, ou sua debilidade e incapacidade de construção de uma alternativa à esquerda pode permitir que o fascismo em ascensão ganhe expressividade a ponto de forçar campos distintos e conflitantes, no interior da esquerda, a empreenderem ações defensivas confluentes, malgrado sejam, no limite, inimigos? Com toda essa convergência entre práticas da extrema-esquerda e da direita fascista, levando em conta a falta de credibilidade do campo democrático-popular ainda no governo, como atrair os trabalhadores para a democracia e o anticapitalismo? Como reconquistar a hegemonia da esquerda autônoma sobre as ruas?
Nota
[*] Convém mencionar que o próprio campo democrático-popular no poder representa, à sua maneira, uma outra modalidade de contrarrevolução. Nesse sentido, podemos estar nos deparando com uma mera mudança de forma.
O presente artigo chega em um momento mais que oportuno. Diante da atual conjuntura nacional, em relação direta à internacional e que não se limitam aos conflitos entre os bolivarianismos em geral e o “trampinismo”, o “petrynismo” (importante observar sua jovialidade e a jovialidade do “MBL”), o “lepenismo”, etc., chego a pensar que o que se esta a desenhar é uma nova ordem mundial mais perversa que a atual, fundamentada no fascismo que os fascismos são capazes de promover, pois, aparentemente, não é só uma nação que se encontra “em cólera”, mas é uma grande porção de mundo que se encoleriza…
Padaqui, uma humilde contribuição:
http://goo.gl/n7pTMG
Resumo da ópera em que estamos:
“[…] o fascismo foi a conseqüência de dois fracassos: o primeiro, dos revolucionários, que foram massacrados pelos sociais democratas e seus aliados liberais; o segundo, dos liberais e social-democratas incapazes de gerenciar efetivamente o capital.” (Jean Barrot/Gilles Dauvé – Fascismo & Antifascismo).
O nazifascismo foi justamente um movimento da “classe média”, a união do “povo” em torno da nação, raça, etnia, cultura “ancestral” contra bodes expiatórios imaginários, situação surgida após o massacre da luta de classes (que é internacionalista) pela social-democracia (dirigida por um operário, Ebert, responsável inclusive pelo assassinato de Rosa Luxemburgo), que prometia à burguesia conciliar as classes, desarmando o proletariado, mas que, após executar isso, já não tinha nenhuma serventia para a classe dominante, principalmente quando a crise econômica piorava a cada ano. É importante lembrar que, imediatamente antes disso tudo, o fator determinante foi que a I Guerra mundial terminou porque os soldados de todos os lados das trincheiras passaram a se recusar a matar uns aos outros, voltando as armas contra seus próprios generais, e os operários passaram a se recusar a obedecer nas fábricas, buscando fazer conselhos de operários e soldados (sovietes) para transformar a sociedade, entre 1917-1924. Esse movimento mundial simultâneo consistiu em revoluções e rebeliões por toda parte, China, Brasil, França, Argentina, África do Sul, México, Itália etc etc e na própria Alemanha (revolução espartaquista), com a perspectiva de que a revolução mundial iria vencer. A revolução russa foi apenas uma revolução entre essas, mas como foi logo isolada (as outras no resto do mundo foram massacradas pela contra-revolução, seja social-democrata, liberal ou fascista como na Itália), resultou necessariamente em mero capitalismo estatizado, ou mais uma variedade de sociedade de classes.
A situação atual no Brasil desde os anos 2000 pode ser entendida como repetição preventiva dessa dinâmica contra-revolucionária. Preventiva porque a classe dominante aprendeu com os acontecimentos da primeira metade do século XX que deve fazer tudo que puder para que o proletariado nunca mais surja como classe autônoma mundial (pois isso coloca diretamente a superação da sociedade de classes), e para isso, financia e instaura governos social-democratas (no caso, o PT) que, preventivamente, buscam fazer uma conciliação de classes, “reunir a nação”. Épocas de crescimento da economia são propícias para o objetivo conciliador de fazer os salários e benefícios subsidiados acompanharem o aumento da produtividade, mas em épocas de estagnação ou decrescimento não resta à burguesia senão a repressão salarial e social, em especial quando o proletariado já está (como hoje) profundamente esmagado e dominado pela social-democracia, que se torna desnecessária para garantir a continuidade “normal” dos negócios. Os proletários, ao serem esmagados como classe, se reduzem à átomos vendedores e compradores tão “livres e iguais” quanto os burgueses (daí, no capitalismo, só pode haver uma classe reconhecida: “classe média”, infinitamente subdivisível numa escala que vai de classe média alta alta alta até baixa baixa baixa, em que até o mais miserável é “classe média” em relação à alguém ainda mais miserável), com a particularidade “privada” de que a única mercadoria que os proletários tem para vender é a si mesmos (sua força de trabalho) e os únicos compradores dessa mercadoria viva são os empresários, estatais ou particulares, que, outra particularidade “privada”, os coloca para trabalhar para acumular trabalho morto, capital, para que os trabalhadores construam ativamente o próprio poder hostil que os priva de meios de vida e os força a se submeter sempre mais intensa e extensamente aos empresários e ao Estado.
humanaesfera, março de 2016
Bibliografia:
Referência essencial para entender a história do Estado no capitalismo e o que ocorre hoje:
Fascismo & Antifascismo (Jean Barrot/Gilles Dauvé) [https://goo.gl/YIu1cH]:
Uma análise histórica de como o Estado é tornado ditadura ou democracia conforme as necessidades do capital a cada momento, da relação disso com a luta autônoma do proletariado, e da ilusão daqueles (inclusive anarquistas) que aderem ao Estado democrático (contra o fascismo) como se isso não fosse aderir à repressão e eliminação da luta autônoma do proletariado.
Um certo Rodrigo Constantino, que se diz um liberal, publicou uma lista de artistas e intelectuais que segundo ele devem ser boicotados e perseguidos por serem “petralhas.”
Estava querendo ler o PassaPalavra sobre os últimos acontecimentos.
Que bom que fizeram este texto.
Incomoda-me que, ao que parece, não raramente os trabalhadores se sentem facilmente seduzidos pelos projetos e símbolos da direita. Viver num pólo das relações sociais (pólo do explorado) parece não garantir que se compartilhe símbolos e projetos revolucionários.
Está tudo tão complicado que algo potencialmente anticapitalista nascido do MPL se tornou um passar por cima de tudo fascista.
Se alguém se dispuser a dar mais pistas sobre isso, fico grato.
Abraço.
Bom REEncontrar nosso velho,e confiável, amigo Passa a Palvra pensando as esquinas perigosas do país. Espero que esse texto seja o começo da série Brasil: Aviso de incêndio – Muito além de junho.Necessário para os dias quem correm.
É um processo difícil a compreensão do presente a partir do próprio presente.
Podemos estar vivendo um momento de imensas crises “espetaculares”, num sentido de o “espetáculo” estar a criar as condições necessárias a uma nova ou mesmo tão somente a um aprofundamento da contínua expoliação sobre a classe trabalhadora pelo capitalismo.
Se assim for, “lutas” como por exemplo, PT x PSDB (grosso modo), Donald Trump x Hillary Clinton (grosso modo), etc., tratariam-se apenas de uma disputa entre gestores e os “discursos” proferidos de um lado ou de outro poderiam ser considerados passageiros, de ocasião – à semelhança da famigerada “hecatombe nuclear” ou mesmo das “tragédias ecológicas” – visando tão somente à conquista ou manutenção do poder por este ou aquele grupo. Ainda, assim, não deixaria de ser um tanto preocupante, especialmente a partir da lógica da luta de classes.
“(…) o que há de peculiar no fascismo é seu caráter simétrico e a posteriori. Simétrico porque, afirmando que supera os extremos, coloca-se, na realidade num ponto mediante entre eles. E a posteriori porque este equilíbrio é realizado entre terrenos políticos já existentes, o conservador e o revolucionário. Não se trata, como para os adeptos da tradição, de prolongar e transformar inteiramente aquilo que já existe, nem, como os agentes da revolução, de criar uma nova realidade, mas de superar o existente sem romper com o quadro dessa existência. Por isso defino o fascismo como uma revolta que não comprometeu a coesão social” (João Bernardo – Campinas, 1998, Tese Doutorado, p. 32).
“Superar o existente sem romper com o quadro dessa existência” parece sintetizar os objetivos dos acontecimentos atuais. Mas é a forma como se dará essa superação que deveria ocupar a reflexão e ação da classe trabalhadora. É verdade que o capitalismo sempre infligiu pesados sofrimentos à classe trabalhadora, mas o capitalismo gerido pelo fascismo parece ser um mal ainda pior.
Diante da crise mundial do capitalismo, do que ocorre não só no Brasil, mas no mundo todo, esta preocupação (ou medo…) que agora nos ocupa pode ser uma construção elaborada justamente para nos conduzir a este ou aquele caminho que não o nosso, da classe trabalhadora. Mas também pode ser um temor fundamentado em realidades concretas. A história parece não deixar dúvidas tanto quanto as formas em que o fascismo pode grassar, quanto às mais variadas tragédias causadas pelos fascismos. Creio que o debate pode lançar luzes neste sentido…
Acho que esse posicionamento do Passa Palavra é um recuo gigantesco para um site que teve a coragem de publicar um texto sobre a Venezuela (http://www.passapalavra.info/2014/03/92663), num momento em que os trabalhadores eram dirigidos pela direita, havendo até troca de tiros e mortes entre oposicionistas e a direita, e mesmo assim o PP denunciava a tese estatal do “golpe de Estado” como engodo, alertando que o fato da esquerda não romper decididamente com o chavismo era o que fazia com que as massas venezuelanas caíssem nos braços da direita.
Era isso que eu esperava do Passa Palavra agora. Mas parece que a valentia só se aplica quando estamos no quintal do vizinho. Dentro de casa estamos todos paralisados pelo medo.
Parece mesmo que a história pouco tem a nos ensinar, vivemos um embaraço difícil de desatar, mas certamente o caminho que nos abre é o de confluir divergências sem que elas se destruam. Um pouco menos otimista, penso que a esquerda desvinculada do governismo é sim alvo da cólera fascista, a questão é que ela vem se mantendo de cabeça baixa pra não levar pedrada.
Emerson,
Fiz uma busca aqui CTRL + F e a única ocorrência da palavra “golpe” aparece em seu comentário, e não no artigo. Este trata de fascismo, não enquanto regime, mas enquanto práticas que se multiplicam difusamente em diversos âmbitos da vida social, inclusive na esquerda. Isto, me parece, está indiscutivelmente presente nas agitações de rua que presenciamos. E, se pensa o contrário, desafio-o a tentar a fazer a “disputa por dentro” nestas manifestações. Entre reconhecer o despontamento de uma tendência mais geral e aderir à histeria governista, na minha opinião, há uma enorme diferença.
Por isso, creio que não trata de uma questão de valentia ou covardia, mas de leitura política. Fascistas geralmente são metidos a valentões, assim como há bundões em diversos setores da esquerda.
O comentário do Emerson me deixa em choque, o Passa Palavra escreve um texto dizendo que a falência da esquerda eleitoral e a autodestruição da extrema-esquerda permitiu ao fascismo encontrar lugar nas massa proletárias, e por isso é chamado de covarde. Negar a ascensão de um movimento fascista na atual conjuntura, ou querer contemporizá-lo, é extremamente perigoso. Um perigo que sabemos bem quais foram as consequências para os que discutiam isso um século antes de nós.
Esquerda autônoma?
Faz quase 1 ano que o PassaPalavra publicou a série de textos “Reflexões sobre a autonomia” (http://www.passapalavra.info/2015/03/103590), e para mim, nas minhas experiências pessoais de ativismo de base, de coletivos, nas pesquisas teóricas e de trocas de ideia com companheiros e as, não vejo nada que possa ser definido seriamente como “esquerda autônoma”. Também não vejo muitas tentativas nesse sentido, de definição — lembro-me apenas do texto do Fagner Enrique sobre a diferença entre reformismo e autonomismo (http://www.passapalavra.info/2014/04/94699). De resto, tentei polemizar em alguns textos a respeito desse cenário caótico e bem pouco rigoroso quando falamos em “autonomismo”.
Mas por que isso seria um problema? Oras, o termo laxo e sem clareza só pode servir para confundir.
O que seria uma esquerda autônoma? Autonomia frente o que? Acaso um partido não é autônomo em si mesmo? A recusa ao parlamentarismo, como no caso de uma guerrilha maoista ou marxista-leninista? Um Estado soberano não é também algo supostamente autônomo?
Em outros debates aqui já comentei sobre a importante diferença entre a classe como ente autônomo e uma suposta esquerda autônoma. Uma classe autônoma é necessariamente permeada de diferentes correntes ideológicas, disso se trata a democracia proletária, onde cabem expressões plurais como o anarquismo, o conselhismo, os diferentes partidos e os diferentes programas de sociedade proletária, as diferentes propostas para os desafios econômicos de toda uma sociedade.
Já a esquerda autonomista seria uma destas correntes… mas não! Dentro do que ainda se gosta de chamar “esquerda autonomista” temos um grande saco de gatos de ideologias posmodernas, admiração por exércitos, multiculturalismo, militância inspirada em textos teóricos mais do que em experiências históricas; enfim, talvez um dos principais denominadores comuns disso tudo seja o abandono de se pensar e propor uma totalidade social, a vontade e o objetivo de viver a liberdade em espaços delimitados.
Não por outro motivo que muitas destas expressões “autonomistas” abrigam setores conservadores, escondidos em fantasias libertárias, algo que esse texto tem o grande mérito de apontar: abrindo mão de pensar um projeto classista democrático, a construção “autonomista” fracionária se contenta com seu próprio bairro e vê com maus olhos tudo o que é diferente, terreno fértil para a intolerância com os partidos, para o ódio aos quadros militantes que se opõe ao amadorismo fetichizado, ódio ao esforço intelectual que combate o empirismo tarefista, amor à estética, à caça às bruxas das redes virtuais, enfim, muito do que temos visto ultimamente e que melhor vincula o tal “autonomismo” com o liberalismo “progressista” da juventude descolada que depois de uma longa conversa não tem medo de dizer que “luta de classes” é uma coisa anacrônica e que já não tem sentido (quando muito serve para uma frase de efeito).
Se a extrema-esquerda não é capaz de se oferecer como referência para as massas, que estão muito longe de serem socialistas e libertárias de forma “espontânea”, então para elas num momento de agudização de crise só restará escolher entre o canto da sereia-Lula e a salvação nacional. Mas para isso é necessário pensar formas de se construir referências políticas para as massas, e não esconder-se em coletivos auto-suficientes e em uma retórica do “eternamente em construção”, numa adolescência tardia infindável.
Se o momento é de crise política, creio que a esquerda classista deve juntar-se para reerguer a referência da construção política classista. Infelizmente no Brasil isso se expressará não com organizações de classe nas ruas, dado que estas em sua maioria são intimamente atreladas a partidos e estes as dirigem de forma prejudicial.
Mas os secundaristas em diferentes estados tem mostrado a potência que as organizações de classe guardam para o futuro do país, além das greves de certa magnitude que temos visto desde 2013, com graus de combatividade as vezes surpreendentes frente ao passado recente.
É necessário perder a ilusão da identidade política do “autonomismo” para construir politicamente as organizações de classe de forma autônoma, disputando a classe por dentro e de forma racional.
O Passa Palavra já alertava sobre os riscos da aceleração de uma “escalada fascista” no Brasil bem antes da “revolta dos coxinhas” (http://www.passapalavra.info/2013/06/79726) de 2013. Que eu me lembro, ao menos, desde fins de 2010. Ao mesmo tempo, sem nunca ter deixado de denunciar todo o engodo do lulismo, em diversos textos (destaco este aqui: http://www.passapalavra.info/2013/07/80587).
Esta dupla crítica (à iminente escalada fascista e a todo engodo do lulismo, mesmo aquele dito “crítico”) aparece simultaneamente num artigo-debate publicado em outubro de 2010 aqui no site, texto que vale muito a pena ser relido neste momento: http://www.passapalavra.info/2010/10/30891
É preciso retomar e atualizar urgentemente esta discussão toda, em toda sua complexidade, e nos diversos pontos/aspectos levantados pelo conjunto de textos acima.
Taiguara, o Ctrl+F deveria ter sido dado no texto sobre a Venezuela, pois é a ele que me refiro quando cito a tese do “golpe de Estado”.
Taiguara e LL, não considero que o PP é covarde por diagnosticar uma tendência fascista na atual conjuntura. Considero que é covardia não apontar que o momento, além de perigoso, abre também uma série de oportunidades. Passa completamente à margem no texto o fato de que a classe dominante está travando uma briga de morte entre si. Também passa à margem do texto o fato de que a grande maioria dos trabalhadores NÃO aderiram à histeria fascista.
Assim, a constatação da tendência fascista serve aqui como fator paralisante, é quase uma defesa do imobilismo. As questões que se colocam no final, embora relevantes, ao invés de clarificarem a situação para a elaboração de como pode se dar a nossa intervenção, terminam antes por colocar sob suspeita qualquer tentativa de ação, pois não se coloca que o momento é oportuno, que é preciso aproveitar a disputa inter-capitalista.
E não tenho ilusão de que vivemos uma situação revolucionária, pelo contrário, o momento é de defensiva. Mas a defensiva se faz com luta, com enfrentamento, e não com uma atitude quase niilista de só enxergar o caos, como se o jogo já estivesse perdido.
Emerson, na sua primeira mensagem a acusação ao PP de covardia se referia a não se diagnosticar o engodo petista do “golpe em curso”, tal como o PP fizera no quintal do vizinho, fazendo, antes, certo coro aos alardes governistas, ao acusar uma ascensão do fascismo em termos de “contrarrevolução”. Penso que foi por isso que Taiguara buscou “golpe” neste texto, e penso que sua acusação se deve a uma possível ambiguidade do texto do PP, no trecho em que consta como nota de rodapé uma ressalva central para a tese do texto. Em todo caso, as questões que você coloca agora no comentário seguinte são mais interessantes, pois trazem elementos pra pensarmos:
1) o momento de crise é também um momento de oportunidades até mesmo para a esquerda.
2) a maioria dos trabalhadores não aderiu à histeria fascista.
1 + 2 = 3) levantar a tese da ascensão fascista, como faz o PP, seria paralisante, em termos políticos.
Daí você afirma que o momento é oportuno para uma intervenção da extrema esquerda, como se a disputa inter-capitalista abrisse uma brecha, um vácuo, a ser aproveitado oportunisticamente por nós. Só faltou nos contar quem, como e onde atuar fora do tabuleiro posto, porque tá todo mundo querendo saber, viu?
Quanto ao realismo ou niilismo do diagnóstico do PP, ele se fundamenta, me parece, na constatação de que a extrema esquerda está em frangalhos, depois de se autodigladiar entre si, e que seria justamente essa crise dela um dos fatores que permitiu a ascensão das forças mais conservadoras, protofascistas. Aqui sim um vácuo deixado e aproveitado, desde a assimilação das lutas em 2013. Nesse sentido, se na Venezuela era o apego ao chavismo que jogava os trabalhadores nos braços da direita, no Brasil os determinantes políticos são duplos: joga os trabalhadores para a direita A) o apego das organizações clássicas (todos os sindicatos, partidos e movimentos sociais de peso) ao programa democrático-popular capitaneado pelo PT, portanto a perda de legitimidade das organizações dos trabalhadores frente à necessária luta contra um governo de esquerda pró capital e B) a debilidade organizacional da esquerda que se desapegou daquele programa, mas que, por exemplo no caso do MPL, enquanto poderia estar de organizando e mobilizando os trabalhadores para a luta contra o ajuste fiscal e os ataques aos direitos dos trabalhadores (como clamou Leo V. aqui: http://www.passapalavra.info/2015/04/103674) estava, sim, rachando por conta das tretas identitárias e ou classistas internas.
No mais, são os fatores econômicos, o esgotamento do modelo democrático-popular de gestão dos negócios, o principal elemento para a ascensão dos movimentos da oposição de direita, que assumem uma face nacionalista, violenta, anti-comunista, por isso fascista. E o altíssimo número de pessoas nas ruas, não só nas capitais, mas tbm nas pequenas cidades do país, mostra que o fascismo à brasileira tem certa capilaridade e que ao menos parte da classe trabalhadora aderiu à histeria, ou ao menos ao anti-petismo e ao anti-partidos e anti-política (daí a “nação em cólera”), enquanto outra parte não toma partido explicitamente mas tbm não se submete ao absurdo que seria apoiar um governo de esquerda que empurrou os ajustes estruturais e sempre priorizou os lucros do grande capital e dos bancos. Aí você analisa isso como uma oportunidade, a oportunidade da terceira via, mas isso só existe do ponto de vista lógico. Não há organização e nem ideologia capaz de canalizar essas forças para um sentido progressista. Daí diagnosticar a conjuntura, tentar entender quais são os fatores econômicos por detrás desses confrontos intra-burguesia, dessa rifagem das forças econômicas ligadas ao PT, pela Lava-Jato, e da raiz política do ganho de expressividade dessas tendências fascistas, isso é o máximo que podemos fazer no momento, quer se goste ou não. A não ser que se tema um golpe, e se interprete o fascismo em ascensão em termos clássicos, como ditadura militar e autoritarismo a caminho, como se já não estivéssemos em estado de exceção desde sempre, aí se poderia talvez formar frentes antifascistas. Mas não acho que é isso que o PP defende que esteja acontecendo. E quanto a aproveitar o momento de crise para começar a organizar algo que um dia quiçá poderia se por no cenário da luta de classes como alternativa de extrema esquerda capaz não só de dar uma resposta para além do governo-capital VS oposição-capital, mas também de mudar as próprias perguntas, bom, aí é outra história, que não depende só de boa vontade ou dos termos lógicos da conjuntura, e com certeza um passo inicial para esse necessário movimento é ter uma análise de conjuntura realista, no que o PP tenta contribuir, assim como tentou contribuir criticando os caminhos nefastos que as organizações dos trabalhadores foram assumindo ao longo dos últimos anos, desde a agroecologia empresarial de um MST, uma adesão capitalista a métodos de construção lucrativos e atrelados ao governismo de um MTST, até uma tendência proto-fascista à centralidade do identitarismo em um MPL, tudo depois de já CUT e PT terem relação de identidade com o capital. Foram estes caminhos decadentes das organizações dos trabalhadores que pavimentaram o caminho para a ascensão do fascismo no Brasil, e é só entendendo o processo histórico que levou à merda que se pode um dia sair da merda. Se, por exemplo, constatarmos que o movimento atual indica uma mudança no padrão de gestão dos conflitos sociais, do padrão democrático-popular, assentado na participação popular na gestão das políticas públicas e na lógica de concessões lucrativas e uma capacidade de recuperar as conquistas, para um padrão mais seco e autoritário, típico do ciclo 1964-1980, então as condições das lutas mudarão, trazendo consigo nada mais nada menos que o perigo de lutarmos pela volta do padrão democrático-popular, trazendo a sombra de um PT walking dead, o que seria trágico. Para superarmos ambos os modelos de gestão dos conflitos sociais precisamos entender como eles funcionam e em que situação histórica estamos. Justamente por ser algo urgente é que não se pode fazer a reorganização da esquerda de modo apressado, senão vamos repetir os erros e fazer um novo PT contra uma nova ditadura.
p.s: o que a pequena esquerda autônoma poderia fazer agora, em termos “práticos”, era “aproveitar” a conjuntura de crise para forçar algum ganho se valendo do desgaste do governo e da necessidade dele não se desgastar mais, nesse debater-se buscando evitar o impeachment. Poderíamos, por exemplo, fazer protestos contra a Lei Anti-Terrorismo ou algo específico assim, talvez enterrar a própria reorganização escolar em SP etc. Se for algo que incida em forças da oposição ao PT então, talvez ainda melhor, por eles talvez quererem de modo oportunista se diferenciar do governo, atendendo a demanda. Em todo caso, a conjuntura para os próximos anos aponta para o seguinte futuro: se tivermos sorte teremos um ataque frontal aos direitos dos trabalhadores, com derrubada da CLT etc.
Atualmente, meu pensamento está dirigido às seguintes questões:
-Como (re)construir a esquerda “fora” das determinações do governismo?
-É possível, e como, viver a margem do Lulo-Petismo, a partir de baixo e à esquerda? Não apenas como assunto teórico, mas também de tática!
-Podemos construir uma Esquerda Revolucionária?
Não é fácil a solidão, menos ainda em noites de facas longas, com as contradições batendo sua porta. Estamos naquela fase do “a culpa é do…”. Então, minha modesta atividade tem sido pensar e moer esses temas todos, preferencialmente sem dar dedadas no rosto dos outros.
Concordo inteiramente com o diagnóstico do PP, como sempre providencial e pertinente e aproveito para contribuir com algumas considerações.
Acho que para as coisas ficarem mais claras é interessante frisar que a necessidade de oposição ao fascismo, que nada tem a ver com uma frente antifascista porque, como Pablo e Taiguara advertiram, não se trata do fascismo clássico e politicamente organizado mas de um comportamento social paranoico que estrutra as sociedades capitalistas e se exacerba perigosamente em momentos, como este, de crise e desrecalque da extrema direita que, na atual fase financeirizada do capital, já não tem mais nada a perder e pode tranquilamente “sair do armário”, repetindo, a necessidade de oposição ao fascismo num contexto em que essa oposição é instantaneamente classificada nos termos da polarização que constitui o centro de gravidade para o qual arrasta o espetáculo de uma disputa que não nos diz respeito, essa necessidade de um posicionamento que recua do âmbito da crítca, porque leva à conciliação com posições adversárias, na medida em que a resistência a um fatídico aprofundamento de uma arbitrariedade e um autoritarismo já insuportáveis converge com a defesa de uma legalidade e uma democracia que são mera ideologia, indica a posição defensiva, aquém da política, para a qual nos empurrou o estado social de emergência típico da atualidade. Simplesmente não estamos falando de política, fomos banidos para uma dramática retaguarda, estamos falando de emergência. Neste cenário, as forças que afloram são as da destrutividade retrógrada e não revolucionária, elas vêm da frustração e do despeito que as promessas de junho de 2013 suscitaram, mas são, por isso mesmo, apenas o seu arremedo – nisto precisamente se caracteriza o pathos fascista, na mobilização do impulso de transformação social em direção à primitividade e à barbárie – e são por si mesmas uma evidência de que a esquerda não está socialmente organizada neste momento. A efervescência social disponível é da ordem do fanatismo. Portanto, converter esse momento crítico a nosso favor também não está em jogo. Não se trata de niilismo, é precisamente o contrário, a nossa chance contra a atual forma monstruosa de capitalismo depende de diagnosticar tão intransigentemente quanto possível a nossa verdadeira posição no tabuleiro, como já disse o Pablo.
Agora, o outro aspecto relevante desse contexto mas bem menos evidente, ainda que também tematizado, é o contágio – inevitável, se é que todos vivemos sob a mesma sociedade do capital – da própria esquerda pelas forças às quais obedece hoje a grande massa de pessoas nas ruas. A começar pelo próprio proativismo que caracteriza a atualidade, a intensa e superficial atuação política e social incentivada pelo Estado a fim de anular a intervenção efetiva na condução do poder público. Também a radicalidade e a ação direta ganharam, por seu turno, o devido glamour e atuação a qualquer preço, a virada de mesa está na ordem do dia do militante antenado. Já o pathos fascista – que remete à exposição clássica de T.W. Adorno em “Elementos do Antissemitismo”, Dialética do Esclarecimento – não é tão restrito ao nosso contexto, de fato, muito ao contrário, ele pode ser remontado a uma contradição básica que marca desde o início a modernidade em função do retrocesso da Revolução Francesa e da ascensão da classe burguesa ao poder, não obstante, em nome da sociedade emancipada e da autonomia dos indivíduos. Essa contradição fará com que, na modernidade, a participação política seja ao mesmo tempo estimulada e reprimida. – Aqui me apoio mais diretamente na interpretação que figura em Ressentimento da Dialética, de Paulo Arantes, a fim de ligar os fios que ajudam a entender a esquerda hoje. – Esse estímulo à participação abstrata sem o lastro da experiência, uma abstração, por outro lado, condicionada, fermentada pelos recalques impostos pela sujeição da vida dos indivíduos aos interesses do capital, prejuízos que ela se destina, portanto, a compensar, um tal estímulo à intervenção social sem o lastro da experiência, impossível na ausência de participação política efetiva, redundou, nas condições sociais do intelectual engajado, na sua tendência à conversão a posições dogmáticas e doutrinárias, em prejuízo do julgamento refletido, cujo teor é devidamente submetido à oposição da realidade concreta à qual ele se remete. O esquematismo mesmo do protofascismo que atravessa toda a sociedade, e que, no caso do intelectual ideólogo, tende particularmente à exacerbação dada a especificidade de suas condições sociais, sua posição aparentemente independente de interesses de classe e a necessidade de alimentar essa ilusão mais ou menos verdadeira de independência. Como se pode ler em Ressentimento da Dialética, essa inflexão para o doutrinarismo, inaugurada com a própria Revolução Francesa, se caracteriza em momentos cruciais da resistência ao avanço capitalista, como aconteceu, por execlência, na evolução do Idealismo Alemão que culminou com o Terceiro Reich.
Diante disso, é preciso ver, hoje, um grão de fanatismo não apenas entre aqueles que não querem pagar o pato ou nos inconformados e patéticos governistas, mas tambem na forma como se deixam arrebatar inclusive os que se distanciam do governo e defendem apenas a legalidade e a democracia, assim como os que repudiam essa defesa. Mesmo as posições mais coerentes tendem a ser disputadas com exacerbações, simplificações e rótulos, de tal maneira que a tarefa de resistência ao fascismo inclui, antes de mais nada, barrá-lo no interior da própria esquerda. Na verdade, tudo leva a crer que a derrota da Revolução até aquitambém possa ser descrita precisamente como a capitulação dos seus ideólogos ao fascismo.
Errata: por favor, no meu comentário anterior, onde se lê “Idealismo Alemão”, leia-se “Ideologia Alemã”.
O texto do Pablo, na medida em que fala da ruína daqueles que se posicionam em contra/além do governismo, acaba estabelecendo novas encrencas para pensarmos a -sempre imprecisa e difusa- organização da Extrema Esquerda.
Se a margem do lulismo acabou, e a marola petista foi junto,é correto afirmar que a tarefa crucial é “Buscar a real identidade na aparente diferença e contradição”, para lembrar do velho Gramsci. No dizer de um velho amigo comunista dos tempos duros, radical agora é “entender todo o merdol esparramado país afora”.
Mas se esta demanda é justa, ela é coletiva ou será mais um daqueles esforços solitários de indivíduos na solidão? Se for uma tarefa coletiva, como issos se dá – na absoluta ausência da substância coletiva- e quem legitima esta crítica formulada?
Na crítica que formulamos da situação presente, não podemos sair deletando a experiência das organizações que sucumbiram aos lulo-petismo. Há muita riqueza de experiências organizativas,ou para dizer sem delongas, muita kilometragem para aprendermos.
Do que virá: É fato que não precisamos de pressa para sair “fundando” organizações, mas também, não dá para esperar que a estação produza ela mesma as coisas sozinha,do nada. Muitas frutas caem ” pêcas”, apodrecendo ainda no pé, muito antes de terem amadurecido.Então, se os eventos da realidade não forem capazes de nos levar a parir acontecimentos organizativos, bem…talvez seja por que não estávamos lá.
A todos, mas em especial ao Pablo e à Cristina,
qual a relação da mídia com tudo isso?
Pergunto pq parece que se assume (corretamente, acho eu) que 2013 foi decisivo pra chegarmos no cenário atual (o próprio PP já identificava fortes sintomas dessa fascistização, lá); msm em 2013, muito se falou sobre o papel da imprensa, tanto em transformar em “apartidárias” as manifestações, qto no “sem violência”, no agregar a vaga “pauta” da corrupção… enfim, o papel da imprensa em redefinir o movimento, se não completamente, pelo menos em grande parte.
Agora, mais uma vez, e trabalhando (novidade?) com o Judiciário, parece ter a grande imprensa um papel crucial em toda a situação. Tanto como fomentadora de ânimos, qto como direcionadora de posicionamento (nada novo, mas mais intenso, acredito).
Do outro lado, eu entendo que se aponte nesses grupos citados por vcs (MST, MTST, CUT etc) um certo afrouxamento ideológico, de uma acomodação com o governo (e, no MPL, o racha interno) mas isso não é causa. Ou, pelo menos, não ativa. Esses grupos (e toda a esquerda), se muito, “deixaram” que a situação chegasse onde está, mas não fizeram dela o que é hj. Daí a pergunta óbvia, quem (ou o que) fez?
Sei que vcs traçam um perfil do contexto atual e tentam mostrar como inúmeros fatores convergiram e influenciaram (momento econômico, acomodação da esquerda, aproveitamento pela direita do tal vácuo deixado pela esquerda etc), mas me parece que existe um sujeito mais ativo que qqer outro, e esse sujeito é a grande mídia.
Se a ideia é disputar corações e mentes, não é necessário quebrar esse discurso proferido por ela? E dá pra quebrar esse discurso sem quebrar o monopólio? E dá pra quebrar o monopólio tendo no poder quem sempre foi aliado a ela?
Com isso, continuo, não é, então, mais interessante ter um PT no governo? Pq ainda que se considere, de um posicionamento anticapitalista, que o PT é muito parecido com vários outros partidos (msm com o PSDB e com o PMDB), uma coisa é nítida: o PT não tem o apoio (msm com todo o esforço que fizeram e continuam fazendo) das tais cinco ou seis famílias detentoras da maioria esmagadora dos meios de “informação”.
Não seria, portanto, interessante tentar aproveitar o momento para, aliando-se na briga contra o impeachement, cobrar do PT, por exemplo, que pare de anunciar nesses grandes grupos? Ou, ainda que não exatamente isso, existe alguma possibilidade de cobrar do PT uma quebra com essa grande mídia? Caso exista, agora não é boa a hora pra articular um apoio da esquerda em prol dessa quebra?
Caro LSCF,
Penso que embora a mídia tenha poder real de influenciar os rumos da política, ela não tem papel independente, vontade própria, e só age tendo forças econômicas por trás, estas sim com interesses bem delineados. Tanto que durante uma década (fora a época do Mensalão) houve uma lua de mel entre grande mídia e PT.
Tentei, numa pesquisa feita entre março e maio do ano passado, rastrear as forças econômicas interessadas na saída do PT do poder. Precisaria atualizar algumas coisas, em especial quanto às forças externas, interessadas, por exemplo, no desmantelo do esquema tríade Estado(Partidos)-empresas-empresas estatais, feito pela Lava-Jato, a fim de, por exemplo, ter acesso legal à exploração de fatias do pré-sal, concessões estatais em grandes obras etc. Ainda assim penso que alguns resultados são atuais e esclarecem algumas coisas dessa conjuntura maluca:
http://www.passapalavra.info/2015/07/105485
Caro ca,
boa questão. Só quis ressaltar a importância de não sair apressadamente comprando toda briga, no bom e velho movimentismo e tarefismo da esquerda, que julga que em todo e qualquer contexto só há luta de classes nas ruas e em grandes acontecimentos heroicos.
Oi LSFC,
Não é à toa que o Pablo te indicou a série de artigos que ele escreveu, eles revelam justamente as forças em disputa sobre as quais você está questionando e acho que vão elucidar muitos dos seus pressupostos, em suma, a sua resposta está lá.
No mais, eu diria apenas que não dá para entender as várias forças que concorrem para o funcionamento do capitalismo avançado, principalmente em termos ideológicos, mas não apenas, de maneira perfeitamente separada. É uma conjunção de forças, ao longo da história cada vez mais imbricadas, que faz as coisas funcionarem como funcionam. Como o Pablo disse, a imprensa não atua isoladamente, e mesmo o poder direto de determinação da economia é o que é como resultante do desenvolvimento entrelaçado de todas as esferas sociais a partir dos interesses do capital. Por essa razão, não acredito que se possa dizer que os movimentos sociais, a representação sindical e outras entidades, por indireta que seja a sua influência, não tenham concorrido para o atual estado de coisas quando se alinharam ao governo. Ao contrário, se a ordem política e econômica se mantém, apesar do inacreditável sofrimento e sujeição impostos, é porque ela se assenta sobre uma poderosa constelação de forças que constitui o statu quo.
De fato, o seu comentário sugere uma aliança de petistas e o que seria, ou deveria ser, hoje, propriamente a esquerda contra o monopólio da comunição. No entanto,em sentido exatamente contrário, não experimentamos, no Brasil, justamente a poder de integração do sistema quando, após o golpe de 64, constatamos que a chamada burguesia nacional, com a qual a esquerda esperava aliar forças para resistir ao imperialismo, havia se aliado ao capital estrangeiro?