Cabe compreender o que defende grupo Escola Sem Partido e suas implicações para a educação. Por Tomé Moraes
Escola Sem Partido (ESP) é um grupo organizado com atuação há 12 anos que busca influenciar politicamente o debate acerca do currículo e da estruturação da área educacional brasileira. Possui grande atuação em redes sociais, espaço nos meios midiáticos para defender suas posições, um site onde recebem denúncias de alunos e pais, além de articulação com deputados e vereadores para a proposição de leis que garantam os objetivos do grupo. Trata-se, portanto, de uma organização política em plena atividade para a garantia de seus interesses, que utiliza diferentes formas de convencimento e pressão para implementá-los. Cabe perguntar: quais seriam esses interesses, e por que aparecerem com tanta força nesse momento?
Como agem
O movimento ESP alega organizar pais e alunos cansados do doutrinamento político na educação. A figura pública do movimento é Miguel Nagib, procurador do Estado de São Paulo. Os documentos públicos e entrevistas concedidas indicam um diagnóstico feito pelo grupo, segundo o qual alunos da educação básica ao ensino superior estariam doutrinados em sala de aula sem que nada fosse feito em relação a isso. Esta doutrinação seria feita por professores esquerdistas, que seriam dominantes nas instituições de ensino e contariam com a conivência – quando não o apoio – de ministros, diretores e empresários da educação (ver aqui).
Consideram que a ação feita por eles precisa ser constante, pois trata-se de uma mobilização contra a hegemonia das ideias de esquerda; neste sentido, estariam dando voz à maioria silenciosa de pais e alunos vitimados por professores que estariam apresentando sua ideologia no lugar da “verdade” (ver aqui). Toda a mobilização empreendida parte, além desse pressuposto, de outro: para o ESP, o aluno não é plenamente capaz de formar suas próprias convicções e está sujeito à autoridade do professor, que precisa ser protegida pelo Estado (ver aqui).
Como isso poderia ser feito, uma vez que os responsáveis por fiscalizar a atividade docente não o fazem? O site do movimento ESP orienta tanto pais quanto alunos a policiar a prática docente em sala de aula, filmando os “atos de doutrinação” e enviando tais filmagens para o site (ver aqui); oferece ainda um manual de como reconhecer “doutrinadores”, que inclui uma verificação da bibliografia escolhida, das opiniões emitidas em sala de aula, das obras de arte apresentadas, dos critérios de avaliação de trabalhos, do incentivo a participar de manifestações, entre outros. Todas essas informações devem ser meticulosamente anotadas e registradas, nada deve ser feito com pressa, para evitar, assim, possíveis retaliações por parte dos “doutrinadores” (ver aqui). Esse manual se justificaria devido à complacência de diretores, diagnosticada em sua experiência com pais e alunos; os integrantes do ESP esperam com isso criar uma pressão social para reverter este quadro, sugerindo inclusive que os pais entrem em ação por meio de um modelo de notificação extrajudicial anônima, no qual afirmam estarem cientes da existência de “assédio político”, qualificando-o como “abuso de autoridade”, “violação dos direitos humanos e danos morais”. O texto ainda corresponsabiliza a direção escolar por eventuais “violações da consciência” do aluno, e afirma que todo esse processo está documentado, caso haja necessidade futura de ação contra “doutrinadores” (ver aqui).
Segundo o ESP, não é apenas a sala de aula que estaria dominada por marxistas, mas toda a estrutura de produção de conhecimento em ciências humanas, sendo notório que, nos últimos 30 anos, os livros didáticos estariam sendo usados para “doutrinar” ideologicamente os estudantes em prol dos partidos e organizações de esquerda. Interessante notar que o ESP não se considera, por isto, de direita ou conservador; apenas quer “a descontaminação e a desmonopolização ideológica das escolas”, pois o “cartaz antidoutrinação” a ser afixado nas salas impediria também o “doutrinamento” de direita, embora admitam que esta fiscalização não seja necessária, pois a esquerda controlaria as instituições educacionais no país (ver aqui).
Desta forma, o ESP pretende garantir o que considera uma verdadeira “pluralidade” em sala de aula, que não apresente uma “visão monolítica esquerdista” da sociedade capitalista como injusta, formando o que seriam, em sua opinião, verdadeiros cidadãos, de acordo com o previsto na legislação vigente (ver aqui).
A discussão acerca do ESP ainda pega carona na discussão em temas como, por exemplo, o kit anti-homofobia, que seria distribuído nas escolas pelo Governo Federal e não o foi por ser considerado, após a pressão da bancada evangélica, propaganda de orientação sexual. O projeto pretende proibir, ou ao menos restringir, a abordagem desse tema pelos professores, pois caberia unicamente à família a educação moral de seus filhos. Para os participantes e defensores do ESP, as legislações e propostas já existentes acerca da educação em relação à diversidade sexual, sejam elas feitas em escolas particulares, pelo Ministério da Educação, ou por secretarias da educação (ver aqui), são inconstitucionais e devem ser combatidas.
Quem controla a educação?
Segundo o diagnóstico dos participantes do ESP e dos parlamentares que assinam os projetos de lei afinados com suas propostas, a “doutrinação esquerdista” começaria nas escolas não no momento em que o petismo assumiu o poder, em 2003, mas nos últimos 30 anos. O recorte temporal coincide, não por acaso, com a universalização da Educação Básica, iniciada na constituição de 1988 e desenvolvida ao longo da década de 1990, especialmente após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, elaborada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. A expansão do acesso à educação levou, como era de se esperar, à consolidação de um mercado específico voltado para a produção da força de trabalho por meio da educação. Neste mercado estão envolvidos, dentro das unidades escolares, os alunos, os funcionários técnicos das escolas, os professores, coordenadores e diretores; fora dela, compõem-no editores, donos de conglomerados educacionais, gestores estatais, faculdades de educação, autores de livros didáticos e os assim chamados “especialistas em educação”. No que diz respeito aos livros didáticos, é de ressaltar a existência, como parte estruturante deste mercado, do Programa Nacional do Livro Didático, financiado pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, voltado para a distribuição de material para toda a rede pública de ensino, movimentando alguns milhões por ano. Difícil imaginar que toda esta cadeia produtiva seja tomada de assalto por “doutrinadores esquerdistas”. A existência de interpretações críticas a alguns aspectos da sociedade, especialmente em relação à discriminação, ao racismo, ao machismo, parece estar mais relacionada às diretrizes de formação cidadã de órgãos internacionais de governança como ONU e UNESCO.
É sobre toda essa cadeia produtiva que o ESP tem a pretensão de atuar (ver aqui), regulando severamente a apresentação dos conteúdos em relação aos materiais didáticos, planejamentos, avaliações, salas de aula e projetos pedagógicos. Nenhum gestor ou proprietário capitalista, entretanto, aceita com facilidade a intervenção externa em seu ramo de atividade, e, por certo, o setor educacional não foge à regra. Não por acaso, a Associação Brasileira de Escolas Particulares (ABEPAR), que reúne uma parcela considerável das escolas da elite paulista, se manifestou contrária ao projeto defendido pelo ESP, por considerá-lo um impeditivo ao diálogo e uma interferência direta nos projetos pedagógicos das escolas (ver aqui). Parece que os capitalistas do setor consideram que o controle sobre a força de trabalho dos professores é algo que eles próprios devem fazer; parecem saber também que, entre os professores de humanas, os considerados mais capazes costumam ter formações “esquerdistas”, e não consideram tal fato – com razão – contraditório com uma formação voltada para o mercado. A formação para o capitalismo contemporâneo requer de seus alunos a capacidade de debater com o repertório mais amplo possível, abarcando diferentes formas de pensamento.
Críticas
Um notório pensador tucano afirma que o ESP confunde as concepções privadas com as públicas e por isso não tem legitimidade, tratar-se-ia apenas de uma reação equivocada ao avanço do lulopetismo nas escolas (ver aqui). No mesmo sentido se manifestou a Folha de São Paulo, num editorial em que critica a confusão entre ensino e “doutrinação” feita por “professores esquerdistas”, mas opondo-se claramente às propostas que restringem os conteúdos apresentados em sala de aula e reconhecendo o conflito entre concepções como parte fundamental da formação dos alunos, indicando a formulação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) como um caminho para resolver essas questões (ver aqui).
Também a Procuradoria Federal afirma que o ESP confunde o espaço público, sujeito a debates e voltado para uma formação cidadã, com o privado, e assim tenta forçar o professor a estar afinado com as concepções ideológicas dos pais. Por isto, a procuradora dos Direitos do Cidadão considerou inconstitucional o projeto do ESP, ao colocar o professor em constante vigilância, impedindo a pluralidade de concepções pedagógicas e atentando contra a liberdade de cátedra (ver aqui).
A argumentação da procuradora segue interessante ao relembrar que, no artigo 205 da Constituição, o objetivo primeiro da educação é garantir “o pleno desenvolvimento das pessoas e a sua capacitação para o exercício da cidadania”, sendo necessária a discussão aberta sobre todos os temas e formar de acordo com os objetivos da República Federativa do Brasil previstos na carta magna como: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”; e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Sem se esquecer de enunciar o segundo objetivo da educação previsto no referido artigo (qualificação para o trabalho), para a procuradora, a formação deste cidadão livre de preconceitos seria uma pré-condição para o desenvolvimento de uma pessoa qualificada para o mundo do trabalho.
Parece clara a presença de uma perspectiva de cidadania e força de trabalho moderna, de alunos preparados para um Brasil que se pretende cosmopolita e integrado às dinâmicas produtivas internacionais. Nesse sentido, o ESP seria uma resistência arcaica à própria proposta de modernização e, portanto, representaria os setores mais conservadores da sociedade.
Também é possível notar uma mobilização de professores em oposição ao ESP, criando campanhas em redes sociais, sites, debates e realizando diversos posicionamentos públicos sobre o assunto (ver aqui). Essa mobilização é uma resposta a uma pressão real dos pais que, incentivados pela recente polarização política, têm incentivado posicionamentos reacionários de seus filhos, ao instigá-los a fiscalizar os conteúdos de sala e pressionar direções e professores. De fato, a perspectiva de um aparato legal que respalde esta perseguição é aterradora. Não se trataria apenas de uma reação ao controle sobre a prática de trabalho, o que é legítimo por parte de qualquer trabalhador, mas de uma defesa da liberdade de cátedra e da necessidade de discutir a realidade, apresentando demandas contemporâneas aos alunos (ver aqui). Está presente também na argumentação de professores o seu dever de incentivar os alunos a se mobilizar politicamente, apresentando para eles a necessidade de transformação da sociedade (ver aqui).
Estranhas convergências
Em algum sentido convergem as crenças de esquerdistas e do ESP, que parecem acreditar que a mera exposição de temas, como revoluções, luta de classes, a opressão de negros, mulheres e LGBTs, irá provocar uma transformação nos alunos. Essa crença ficou muito clara nas recentes reações aos pedidos de intervenção militar, nas quais pessoas politicamente identificadas com a esquerda afirmaram exaustivamente que faltava aulas de história para aquelas pessoas. A crença de que a simples informação levaria a determinado posicionamento político ajuda a entender a falta de capacidade de reação da esquerda às mobilizações reacionárias. O discurso parece confortar a consciência de muitos que confundem seu trabalho com sua militância e acreditam que levam a verdadeira consciência aos seus alunos; por isso, as mobilizações pela inclusão de conteúdos “progressistas” no currículo. Assim, como membros do espectro político oposto, consideram os alunos como produtos da educação e não, também, como produtores da mesma.
Entre os que se opõem ao projeto existe o reconhecimento de que está longe de existir uma hegemonia da esquerda (ver aqui) – bastaria, aliás, frequentar uma sala de professores para chegar a essa constatação – e seria o objetivo do ESP acabar com qualquer possibilidade crítica mínima na escola. Entretanto, não parece ser essa a base material que faz com que um movimento que existe há 14 anos ganhe tanta notoriedade nos últimos dois anos. A explicação fácil – adotada pela esquerda – é que ele faz parte da onda conservadora que predomina na sociedade.
O alvo parece ser outro. Desde de 2013 tem sido destacada a intensa mobilização dos estudantes secundaristas. Não à toa, uma das medidas adotadas pela prefeitura de São Paulo depois de junho foi o passe livre estudantil, e o mesmo foi proposto no Senado; afinal, era necessário desmobilizar esse setor. Não foi o suficiente. Os secundaristas de São Paulo utilizaram sua possibilidade de circular pela cidade para articular as maiores mobilizações de 2015: as ocupações de escola espalharam-se pelo Brasil questionando prefeituras, governadores, diretores e mesmo professores. Para aqueles que enxergam os estudantes como uma tábula rasa que é moldada por seus professores, a atuação dos secundaristas só poderia ser fruto do “doutrinamento” “esquerdista”, uma vez que a atuação autônoma não pode ser possível. Um notório publicista conservador já expressava essa concepção no longínquo ano de 2011 (ver aqui). O alvo do ESP, ou daqueles que sustentam sua ascensão, parece ser justamente esta mobilização de estudantes.
As manifestações secundaristas contaram com o apoio, ainda que tímido, de alguns professores, enquanto outros protagonizaram junto com diretores perseguições implacáveis contra os alunos que se mobilizaram. A ação do ESP e a pretendida lei dificultam qualquer ação solidária por parte dos professores, e podem colocar grandes impeditivos para uma mobilização realmente conjunta entre as categorias; não resta dúvida que os diretores usariam leis como as que o ESP defende para punir e demitir aqueles que fornecessem qualquer apoio.
O Escola Sem Partido se apresenta com uma resposta reacionária a um problema contemporâneo, enquanto os setores mais dinâmicos do mercado educacional devem utilizar os impulsos das mobilizações para vencer as resistências da burocracia escolar e o conservadorismo do professorado, não em uma mobilização regressiva, mas como um movimento de modernização educacional. Afinal, uma escola que esteja preparada para ouvir seus alunos é mais adequada para formar as demandas contemporâneas do mercado de trabalho com suas demandas de pró-atividade (ver aqui). Nesse momento em que há uma disputa entre aqueles que querem incorporar as lutas e aqueles que pretendem somente reprimi-las, é importante não olhar só para as mãos para não tomar um golpe dos pés.