Joana: “Vocês ficam aí de camarote, os grandes figurões, certos de que as suas trapaças não serão descobertas e não querendo saber da miséria lá fora”.
B. Brecht – A Santa Joana dos Matadouros.
Depois de mais um dia de greve, assembleia, manifestação e caminhada pela cidade de São Paulo – dessa vez debaixo de uma forte chuva –, voltei para casa, tomei um banho e fui ler algo inteligente. Resolvi revisitar a boa e velha A Santa Joana dos Matadouros, de Bertolt Brecht.
Ao reler a apresentação do livro escrita pelo crítico literário Roberto Schwarz, pensei que a atual greve dos servidores públicos contra a reforma da previdência municipal também poderia compor uma boa peça de teatro. O assunto seria a crise econômica e as necessárias reformas estruturais para reequilibrar as contas públicas e capitalizar as empresas privadas. “A crise do capital”, diríamos tempos atrás. Os personagens seriam muitos. De um lado, os professores, a categoria majoritária dos protestos, mas juntos, os agentes de saúde, os funcionários do administrativo, os bibliotecários, os agentes de vigilância sanitária e, por que não, os coveiros dos cemitérios municipais. Disputando as consciências, os sindicatos e os radicais grupos de oposição. Do lado oposto, um prefeito empresário e vereadores representando os mais diversos ramos dos negócios. Na segurança, uma horda uniformizada pronta para bater nos manifestantes e defender o patrimônio. À espreita, nos bastidores, empresários de conglomerados internacionais que investem na educação. Socialites, filantropos e lumpens dos institutos especializados na formação de professores. E, claro, gestores dos fundos de pensão que querem ampliar suas carteiras. Serviriam de lugares, as escolas e as ruas, obviamente. Também as diretorias de ensino, onde funcionários comissionados fingiriam que nada está acontecendo. A câmara de vereadores, o gabinete do prefeito (com câmeras para selfies e fantasias para publicidade), o quartel da horda de policiais e, claro, a bolsa de valores. A linguagem, agressiva e descalibrada, mas certa do que precisa expressar, por parte dos trabalhadores em greve. Debochada e populista, por parte dos políticos despreparados. Cínica ou puramente técnica por parte dos políticos que aprenderam o beabá do marketing eleitoral. As canções seriam variadas. Ora escutaríamos salmos a favor do livre mercado, ora coros entusiasmados por um intervencionismo estatal miraculoso.
Ironias e brincadeiras à parte, todas essas analogias com a literatura e com o teatro rapidamente se dissiparam quando resolvi buscar informações e assistir à entrevista dada pelo vereador Caio Miranda Carneiro para o site Infomoney, no dia 20 de março de 2018. De imediato concluí: Caio Miranda poderia ser um personagem complexo, dissimulado e ligeiro, mas não é nada além de um político banal. Poderia não ser assim, trata-se de um jovem cheio de oportunidades na vida. Como filho de uma professora da Universidade de São Paulo e ex-professora da rede básica de ensino, ele poderia encenar uma defesa mais contraditória da categoria em greve, potenciais eleitores. Como advogado e ex-presidente do centro acadêmico de direito, poderia simular uma defesa daquilo que não acredita, ou seja, a justiça social. E, como técnico que trabalhou no Tribunal de Contas, poderia ser mais habilidoso com os números que apresenta. Assim, daria significações honrosas para as tabelas e os gráficos que busca apresentar como inquestionáveis. Mas, como já foi dito, o vereador e relator do Projeto de Lei 621/2016, que institui o Regime de Previdência Complementar Sampaprev, é um ser que, ao tentar ser complexo e inteligente, só consegue ser simplório. Um célebre homem que, ao defender o “bem público”, revela com todas as letras que é apenas um serviçal do capital financeiro.
Como aqui se trata de um texto que, antes de tudo, visa o debate esclarecido com as companheiras e os companheiros em luta, vale abandonarmos os chistes e tentarmos reconstruir os principais argumentos do vereador Caio Miranda na entrevista para o Infomoney. As respostas explicitam, sem rodeios, os interesses materiais que estão por trás da “urgência” da reforma da previdência municipal. Precisamos ter em mente que o projeto é muito mais do que um desavergonhado aumento de alíquotas. Trata-se de um projeto de destruição da previdência social baseada na solidariedade dos trabalhadores.
Já no início da entrevista, o vereador Caio Miranda afirma que “o servidor não confia na gestão da previdência pública, por várias razões”. Por isso, é necessário aprovar uma reforma que tem como base o seguinte tripé:
a) Aumentar a alíquota de contribuição previdenciária dos servidores;
b) Criar um regime suplementar de previdência autossustentável para os futuros servidores. E permitir a migração dos atuais servidores para o novo regime;
c) Reestruturar o Instituto de Previdência Municipal de São Paulo (IPREM), preparando-o para gerir pensão e não previdência.
O vereador é direto nas palavras. É necessário aumentar a alíquota de 11% para 14%, porque atualmente o IPREM é deficitário. Os servidores (ativos e inativos) contribuem com 11% e a prefeitura com mais 22%. Para além desses 33%, a prefeitura gastou quase 5 bilhões do tesouro, a fundo perdido, para honrar com o pagamento da aposentadoria de aproximadamente 90 mil aposentados. Ele lembra que já houve um aumento da alíquota de 5% para 11% em 2005, no governo de José Serra, e que até então a prefeitura pouco contribuía para o sistema, apenas 2%. Mas quem criou essa situação dita “insusentável”? E estariam os aposentados apenas onerando os cofres públicos? Caio demonstra que, ao longo da história, a prefeitura, como patronal, quase nada contribuiu para a “saúde financeira” do Instituto. O vereador também destaca que os servidores aposentados, colocados como “culpados pelo rombo”, continuam contribuindo de forma solidária para os cofres da previdência e não usufruem livremente da poupança acumulada por anos de trabalho. Mas ele conclui, mesmo com a prefeitura aumentando sua contribuição e os aposentados contribuindo, o sistema atual já está falido.
No atual cenário, afirma Caio, o sistema seria viável se tivéssemos 4 servidores públicos para cada 1 servidor aposentado. Hoje temos 1,2 servidores na ativa para 1 aposentado. Sobre essa questão, ele inverte o argumento, afirma que devido à falta de recursos, a prefeitura vem privatizando setores dos serviços públicos. Mas aqui qualquer pessoa sabe que esses números revelam uma escolha política de todas as últimas administrações. Independente do partido no executivo, as terceirizações e as privatizações foram crescentes e, certamente, contribuíram para o desequilíbrio entre servidores ativos e inativos que contribuem para o IPREM. Nas escolas, por exemplo, a limpeza e a merenda foram entregues para empresas terceirizadas. As novas escolas infantis e creches são todas administradas por convênios com a iniciativa privada. Os hospitais e postos de saúde, entregues para Organizações Sociais. Os exemplos se multiplicam em todas as áreas. Em síntese, além de diversos recursos públicos estarem sendo canalizados para os cofres das empresas privadas, expulsou-se do serviço público uma massa de trabalhadores, que passaram a trabalhar de forma precarizada para empresas com reputação duvidosa. Essa escolha política impacta na previdência social.
Mas seguindo o argumento do vereador, como conter a curva de déficit que hoje está em R$5 bilhões e que, se nada for feito, em 10 anos chegará a R$10 bilhões? Caio Miranda afirma que a atual reforma da previdência municipal é uma reforma de longo prazo. O equilíbrio do IPREM seria alcançado depois de 28 anos. Alguém acredita que Doria governa projetando três décadas? Mas tudo bem, vamos seguir a narrativa do vereador. O aumento de 11% para 14% na alíquota garantiria aproximadamente R$160 milhões anuais. E a alíquota suplementar de 1% a 5% para os salários acima de R$5.531,00 traria um fluxo anual de R$320 milhões. Mas, além disso, o município ainda ficaria num compasso de espera pela reforma federal, pois os aumentos do tempo mínimo de contribuição e da idade mínima impactariam significativamente nos servidores, que é um grupo majoritariamente feminino (professoras que hoje podem se aposentar com 55 anos teriam que contribuir por mais 10 anos).
O vereador entende que a categoria é incapaz de entender isso. E que os sindicatos foram ágeis em desinformar os trabalhadores. No entanto, o questionamento desses cálculos vem dos antigos companheiros de trabalho do vereador. O Tribunal de Contas Municipais constatou que não há cálculos na justificativa do projeto que mostre que a elevação da alíquota “levaria ao equacionamento do déficit”. Afirma também que o projeto do prefeito João Doria “peca no embasamento técnico, contém inconstitucionalidades” e “possui trechos com possível caráter de confisco”. O relatório aponta que o projeto se “insere em um momento incerto para definições sobre a previdência, dada a suspensão da tramitação da reforma em escala federal”. E afirma que “a alta contribuição dos servidores não pode ser feita visando a sobra de recursos para outras áreas que não a seguridade social”.
Com um olhar atento para essa reforma, percebemos rapidamente que João Doria não visa o equilíbrio financeiro. Suas intenções estão além da simples matemática financeira. E, vale repetir, Caio Miranda é revelador quando abre a boca. Para ele, não vale a pena um funcionário na ativa que ganha acima do INSS pagar 14%, mais os 5% que incidirão sobre o que exceder do teto. Nas palavras dele, “é melhor ter a renda para ele e aplicar no tesouro direto”. Afinal, “as pessoas não são reféns e não precisam ficar em um sistema que ela não criou”. Em suma, o Projeto de Lei é mais que aumento de alíquotas, ele busca criar um sistema suplementar de arrecadação, o Sampaprev, mas atualmente sem criar uma nova autarquia, como estava previsto no projeto do ex-prefeito Haddad, que também cedeu às pressões da agência Standard & Poors para criar um sistema paralelo de capitalização.
Com o sistema suplementar, o servidor poderia optar, por exemplo, em investir no SPPREV (do Governo do Estado) ou no Funpresp (do Governo Federal), afirma Caio. Os servidores novos já contribuiriam dentro do novo sistema. E os que contribuem hoje para o IPREM poderiam migrar para esse novo sistema. Na cabeça do vereador, essa migração aconteceria facilmente, pois o servidor obteria vantagens econômicas. O vereador rememora que desde 2003 os servidores perderam a paridade e a integralidade nas aposentadorias, na época também com a justificativa de reduzir o déficit da previdência. Seguindo a argumentação do vereador, o professor, por exemplo, migraria para o novo regime porque no final da carreira ele passa a ganhar acima do teto do INSS e não gostaria de receber um benefício de aposentadoria menor do que ganhava quando estava na ativa, então nada melhor que uma previdência que promete ampliar seus ganhos.
Dito isso, o sentido desse PL fica claro. A reforma não visa o equilíbrio do atual sistema. O aumento da contribuição, a imposição do teto do INSS e mais a criação de um sistema suplementar são ações que buscam esvaziar o IPREM. Esquematizando:
a) Não aceitando mais nenhum funcionário novo para contribuir para o Instituto de Previdência atual;
b) Atraindo o máximo possível de servidores que já perderam a integralidade/paridade para o novo sistema;
c) Tornando o Instituto desvantajoso com os 19% de alíquota sob os salários e sem nenhuma vantagem futura, uma vez que a aposentadoria seria limitada ao teto.
Com a desculpa de que os investimentos nas áreas sociais (saúde, educação, segurança, moradia e transporte) não estão ocorrendo porque enormes quantias estão sendo drenadas para o pagamento das “privilegiadas” aposentadorias dos servidores, o prefeito Doria pretende transferir a gestão da aposentadoria pública para o capital financeiro. Nas palavras do relator do projeto na Câmara: “transformar o sistema de previdência em um sistema de pensão”. Em resumo, a solução da gestão Doria é criar uma segregação no funcionalismo. Ele quer isolar os antigos funcionários no IPREM e assumir os pagamentos desses como despesa da prefeitura. E entrega a contribuição dos funcionários novos, que terão anos de contribuição pela frente, para os fundos de pensão, bancos ou qualquer instituição financeira que o valha.
Temos, assim, um cenário de desmonte do serviço público para garantir os rendimentos do capitalismo financeiro. Contra o parasitismo das finanças escancarado pelas reformas trabalhistas e previdenciárias apresentadas em todos os níveis de poder no país (Federal, Estadual e Municipal), os trabalhadores têm as ruas. Assim, o que temos hoje nas ruas de São Paulo é, sem dúvidas, a maior greve da historia do funcionalismo. Para concluirmos com o nosso devaneio inicial, assim como na peça A Santa Joana dos Matadores, texto sempre mais revelador que as falas insultuosas dos lacaios das finanças, podemos dizer que, misturada à grita dos argumentos que vem da câmara e mídia, escutamos – nas enormes manifestações dos servidores – as vozes daqueles que sabem quais sãos as necessidades reais dos seres humanos.
São Paulo 21 de março de 2018.
*Danilo Chaves Nakamura é professor da rede municipal
As imagens que ilustram o artigo são de Tommaso Ausili.