Incêndios e criminalização: ofensiva contra a luta por habitação

Por Zé Castillero

No último 1º de Maio, dia de memória da classe trabalhadora, enquanto diversos setores da sociedade faziam suas atividades para lembrar a data, muitas pessoas foram surpreendidas com o incêndio da ocupação do edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, em São Paulo. O fogo se espalhou e provocou o desabamento do prédio. Em torno de 150 famílias, ou 400 pessoas, viviam ali. O Corpo de Bombeiros confirmou quatro mortes, incluindo a de uma criança, ao menos 7 desaparecidos e 44 nomes de pessoas não localizadas, que estavam no cadastro da ocupação[1]. Até hoje, moradores estão sem solução e sem reassentamento.

A ocupação, apoiada pelo MLSM (Movimento de Luta social Pela Moradia), ficava num imóvel pertencente à União, que tentou entregá-lo a leilão no valor de R$ 24 Milhões em 2015, mas ninguém o adquiriu. Em 2017, o edifício foi entregue ao município de São Paulo, para a instalação da Secretaria de Educação e Cultura. Nesse ínterim, a Superintendência de Patrimônio da União recomendou que a prefeitura tomasse providências para a desocupação, sob a orientação do Ministério Público Federal, e que apresentasse um projeto para o prédio. Na mídia e em diversos veículos de comunicação foi mostrado o interesse no espaço, seja por parte de órgãos públicos, empresas ou profissionais promovidos a gestores com seus projetos arquitetônicos ou urbanísticos.

Sobre as causas do incêndio, os moradores disseram que foi desde vazamento de gás, curto-circuito na fiação elétrica ou uma briga de casal. O Ministério Público Federal criou um inquérito para investigar a causa. Nesse contexto é preciso analisar as causas tendo em vista os interesses imobiliários e especulativos diante dos movimentos do poder público e privado. Por exemplo, além do movimento de posses do prédio entre órgãos públicos, a Secretaria Municipal de Habitação criou um núcleo de mediação de conflitos em 2017, no âmbito do qual ela deveria mover soluções conciliadas para desocupações voluntárias e sem confronto. Ela já atua em 206 ocupações, com 46 mil famílias. Dessas atividades, 26% são do Centro de São Paulo, e envolvem 3.500 famílias. Após o incêndio da ocupação do edifico Wilton Paes de Almeida, o compromisso do poder municipal de João Dória foi de intensificar essa política de desocupação e de localização dos imóveis que apresentassem riscos de desastres, com a participação da Defesa Civil realizando vistorias.

O objetivo da Secretaria de Habitação de São Paulo, obviamente, é a da desocupação, e não resolver o deficit habitacional. Na estimativa mais recente, de 2016, o IBGE contabilizou 24,7 milhões de pessoas vivendo em moradia inadequada no Brasil; entre estas, 6,9 milhões são de famílias sem casa[2]. Com uma política cada vez mais descarada de resolução desse conflito em favor da especulação imobiliária, em período de reaquecimento diante da crise econômica, fica a suspeita de que táticas clandestinas sirvam como auxiliares na promoção de despejos – já que a repressão policial está descartada em primeira hipótese – como pode ter sido a recente onda de incêndios nas habitações precárias, na cidade de São Paulo. Entre 2001 e 2012, os bombeiros registraram 1.648 incêndios em favelas. Em 2016, foram 202 casos, e 81 desde 2017. Uma pesquisa realizada a partir de um relatório da Defesa Civil, com 80 incêndios entre 2008 e 2012, mostrou que a média do valor de mercado de um terreno de favela atingida era de R$291,00 em 2013, segundo o SECOVI (sindicato patronal de empresas imobiliárias), enquanto em amostras aleatórias de 460 favelas teve um valor de R$167 no mesmo ano. Ou seja, as áreas de favelas incendiadas eram 75% mais valorizadas comercialmente[3].

No Rio de Janeiro, tais “coincidências” já ocorreram em processos análogos. Nos cinco primeiro meses da gestão municipal de Eduardo Paes, houve mais de 44 ocorrências de incêndios no centro da cidade[4]. Concomitantemente, ocorria o anúncio da revitalização imobiliária dessa região, com o auxílio do projeto Porto Maravilha, visando encaminhar o Rio como “cidade olímpica”. Designs imobiliários em prédios espelhados tomavam as maquetes virtuais, em projetos que atraíram empresas, como a do presidente norte-americano Donald Trump, com o projeto “Trump Towers” [5]. Essa se instalaria no terreno da Ocupação Quilombo das Guerreiras, espaço da União, cedido à companhia Docas, despejada violentamente em 2014. Graças à pressão de seus moradores, muitos conseguiram reassentamento no Quilombo da Gamboa, em espaço no centro da cidade, perto de onde moravam. A região é historicamente conhecida como “pequena África”, pelos registros de ter sido local de habitação e produção de populações negras, e serve de ponto turístico do “Rio Antigo” enquanto carrega mazelas sociais persistentes desde a abolição da escravidão.

Antes do “banho de água fria” que está sendo a crise econômica brasileira[6], os setores imobiliários, de obras e serviços urbanos ingressaram nos empreendimentos aquecidos pelo projeto do Rio como base de megaeventos. Assim, as reformas e modificações urbanas foram lançadas. Para além do emblemático ano de 2009[7], com despejos e medidas urbanas de regularização, houve a política das UPPs como (nada) nova experiência da segurança pública em 2010. O memorável desse período foi que as tragédias pelos temporais que geraram os desabamentos de favelas, junto com a tragédia permanente da “guerra contra o narcotráfico” e suas incursões militares, deram base para políticas de policiamento constante, despejos e valorização imobiliária. Não foi à toa que a mobilização contra as remoções gerou base social para engrossar a luta contra a violência policial, quando as chacinas e homicídios, com taxas reduzidas após às primeiras polícias “pacificadoras”, passaram a ser denunciados e publicados como crimes desses policiais: a execução de DG na favela do Tabajaras, Jonathan em Manguinhos e Amarildo na Rocinha, com elementos de tortura. Essas foram pautas de protestos na fagulha de solidariedade que surgiu no pós-Junho de 2013. Este, por sua vez, foi antecedido de intensa mobilização de favelas contra a política de remoção.

O crescimento imobiliário do Rio não ocorreu sem conflito, e o 2013 carioca é reflexo disso. Não é de surpreender o planejamento estratégico dos capitalistas estar levando em conta tal desenvolvimento. Logo, o resgate da última revitalização urbana no Rio de Janeiro serve para explicar a atual investida contra a luta por moradia, ao mesmo tempo que os acontecimentos em São Paulo dificilmente são um paralelo desencontrado, da mesma forma que há dificuldade em definir as causas do incêndio da Ocupação do edifício Wilton Paes de Almeida. O mesmo ocorreu com os incêndios de ocupações no Rio, inclusive do camelódromo da Central do Brasil em 2010, onde, no dia seguinte, as secretarias de transporte e de obras apresentaram um projeto de expansão do terminal de ônibus Américo Fontenelle, vizinho ao espaço. Na verdade, o que se concretizou foi a instalação do teleférico do morro da Providência – mais um dos frustrados projetos pré-crise econômica, durante os megaeventos.

Para a instalação do teleférico, a UPP foi utilizada como parte da política de remoção, onde a emblemática marcação de casas como alvo para despejo, pela Secretaria de Habitação do Rio, foi incluída no clima de repressão preventiva e ostensiva. É nesta situação que se situa a atual ofensiva contra as habitações populares. Depois de 8 anos de política de “pacificação policial”, chegando ao seu fim com o governo do RJ em atual cancelamento do projeto, a vizinha dessa favela, a Ocupação Chiquinha Gonzaga, hoje é criminalizada por suspeita de ter o narcotráfico em seu espaço. Uma articulação para concretizar seu despejo é feita em conjunto com o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social); depois, em outro dia, em conjunto com CEDAE (Companhia estadual de águas e esgotos do RJ) e a defesa civil. A “avalanche” de acusações dilui a acusação inicial de que a ocupação deveria ser despejada por presença de tráfico. Se o motivo do despejo seria a assistência social e segurança pública, por criminosos instalados pela “vista grossa” da polícia que tomou o controle da região via UPP, é colocado entre outros motivos, fica exposto que existe uma articulação para derrubar a ocupação Chiquinha Gonzaga.Incêndios e criminalização: ofensiva contra a luta por habitação

O comportamento do poder público se revela pela busca de legitimidade de despejos, com o discurso de não ter um uso explícito da violência estatal e pela solução negociada. Isso explica, talvez, os 8 anos de vista grossa da UPP, empurrando o tráfico para ocupações. Essa medida está numa operacionalidade padrão da segurança pública. Mas para o poder público está além da manutenção do reconhecimento de contrato público de concessão de uso do espaço urbano, conquistada por alguma ocupações de prédios e terrenos, como algumas favelas. Tal medida é o reconhecimento do direito à habitação, mas constantemente violadas em diversos aspectos por diversas políticas que tratam o acesso da classe trabalhadora como secundário, colocando a segurança pública e civil como argumentos em meio a estereótipos racistas, sob estigma das “classes perigosas”.

Com pouco disfarce do paralelo com São Paulo, a prefeitura de Marcelo Crivella emitiu o decreto 44557, que cria um Grupo de Trabalho para mapear e analisar ocupações populares, com a política de remoção como objetivo[8]. Com o prazo de um mês após sua data de publicação, os gestores públicos estarão apresentando um projeto de impedir novas ocupações urbanas, assim como políticas de reassentamento de moradores das que existem. Na prática, isso representa novos despejos, principalmente em tempos de crise econômica, e declínio da principal política habitacional dos últimos anos: o “Minha Casa, Minha Vida”. Na atualidade, já estão promovendo trabalhos em parceria com o governo do RJ.

Moradia como mercadoria e como condição geral de produção

A “inviolabilidade do lar” (artigo 5°, inciso XI), função social da propriedade (artigo 5°, inciso XXIII) e a habitação como direito social (artigo 6°) são uns dos dispositivos reconhecidos na Constituição Federal que tratam a moradia de trabalhadores como base fundamental da reprodução social. Atrás do discurso legal e oficial do funcionamento da sociedade segundo os parâmetros da democracia, há o entendimento da habitação como solução de base para formar o desenvolvimento capitalista brasileiro. Isso é levado a tal ponto que em muitas considerações culturais e corriqueiras ter um lugar para dormir pode ser considerado uma segurança social mais presente que uma garantia de emprego. Isso faz sentido no contexto atual do país, onde o IBGE apresentou, no final de 2017, que trabalhadores informais (sem carteira ou por conta própria) eram 34,2 milhões de pessoas, superando o contingente formal, que somava 33,3 milhões. E ainda teve 12,3 milhões de pessoas desempregadas e em busca de trabalho[9].

Enquanto o problema do deficit habitacional é reconhecido como uma questão de “pobreza” ou de assistência social, referente aos trabalhadores mais precários e desempregados, ela se origina no cerne da exploração do trabalho. Independente da posição financeira, a classe trabalhadora é obrigada a destinar parte de sua renda no insumo da moradia, onde reproduz suas condições de vida, que também é desejado pelos capitalistas. No entanto, setores imobiliários lucram com suas compras, arrendando o solo urbano de acordo com seus capitais. Assim, o poder de compra de um trabalhador é assimilado pela especulação, que promove novos ciclos de exploração. Essa economia é aquecida na medida em que novas famílias entram na busca por compra ou aluguel de imóveis. Nessa lógica, faz sentido ao capitalismo e a um setor da classe dominante, que enquanto 6,4 milhões de famílias de trabalhadores sem casa existiam em consonância com os 6 milhões de imóveis vazios. Enquanto a especulação imobiliária cresce, a busca por imóveis favorece a novos ciclos de financiamento para vendas ou aluguéis. Logo, promovem novos empreendimentos ao invés de destinar os imóveis para habitação popular, tal como foi defendido pelo ex-presidente Lula num discurso de 2004 que legitimou várias ocupações urbanas de imóveis públicos pelo Brasil, entre elas a Chiquinha Gonzaga, exigindo o cumprimento dessa promessa.

Da mesma forma que uma greve, quando não aponta para a tomada coletiva dos meios de produção, que passa pela necessária construção de solidariedade entre diversos setores em suas unidades e condições gerais de produção, a luta pela moradia e contra o deficit habitacional apresenta limites, podendo ser incorporada como renovadora do ciclo de exploração. Isso mostra ao mesmo o tempo o caráter limitado mas também o potencial radical, por apresentar diversas contradições, que é a luta pelo direito a cidade. O MCMV (“Minha Casa, Minha vida”) foi um oportuno mecanismo de especulação imobiliária, com financiamento público e apoio ao mercado, via endividamento de famílias de baixa renda (até R$ 1.500 por mês), compunha 39% das unidades contratadas. Enquanto isso, 61% foi para famílias com até R$ 6.500 na renda. Mesmo com o atendimento de projetos de “verticalização” de algumas favelas, atendendo ao aconselhamento de urbanistas, o programa instalou a maioria das construções nas periferias. Muitas delas ficaram expostas ao controle mafioso de milícias paramilitares, mantendo sem resolução o problema que faz muitos trabalhadores ocuparem o Centro: falta de acesso a direitos e empregos, mantendo a lógica de cidades e bairros dormitórios[10]. Nessa perspectiva, longe de ser uma contradição, abre novos mercados para exploração de serviços urbanos: transporte público e obras públicas. Como uma marcha para a “zona oeste”, à medida que BRTs e empreendimentos foram expandidos para Guaratiba, Santa Cruz e Campo Grande, as periferias em expansão garantem novos espaços com potencial de novos ciclos de exploração capitalista. De outra mão, pra legitimar expulsão, o governo lança mão de paliativos tratados como suposta “política habitacional”, que é o aluguel social ou “bolsa aluguel”[11].

Diante da crise econômica atual, é possível perceber seus sintomas em vários mecanismos de recessão. A desaceleração de obras públicas, incluindo do MCMV e dos empreendimentos, é como uma mostra de que a especulação imobiliária na periferia permanece como potencial de exploração ao invés da concretização permanente dos projetos anunciados. As próprias empresas de transporte público, denunciadas e investigadas em improbidade de verbas públicas e de gestão do serviço nas regras dos editais municipais de licitação, fazem parte dessa crise. Nisso, retomar espaços desvalorizados não concretizados em anteriores projetos, como o “Porto Maravilha”, pode ser uma via de conseguir novos financiamentos e mercados. É possível constatar que brechas deixadas anteriormente, como ocupações que resistiram aos despejos, hoje são reveladas como reservas de valor de mercado para o estado e a classe dominante. E assim serão concretizadas, em novos despejos e repressão, caso uma ampla rede de solidariedade, resistência e organização de trabalhadores não seja efetivada.

Notas

[1] https://www.google.com/amp/s/g1.globo.com/google/amp/g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/uma-semana-depois-o-que-se-sabe-sobre-o-desabamento-do-predio-no-centro-de-sp.ghtml#ampshare=https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/uma-semana-depois-o-que-se-sabe-sobre-o-desabamento-do-predio-no-centro-de-sp.ghtml
[2] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44028774
[3] https://exame.abril.com.br/brasil/incendios-em-favelas-atingem-terrenos-de-maior-valor-em-sao-paulo/#
[4] http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL1114319-5606,00-INCENDIOS+FREQUENTES+POEM+BOMBEIROS+EM+ALERTA+NA+LAPA.html
[5] http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36901182
[6] http://diariodoporto.com.br/porto-maravilha-em-crise-o-futuro-nas-maos-da-caixa/?>
[7] http://passapalavra.info/2009/03/2191
[8] DECRETO RIO Nº 44557 DE 16 DE MAIO DE 2018

Institui Grupo de Trabalho para tratar dos assuntos relacionados à ocupação irregular, e dá outras providências.

O PREFEITO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, no uso das atribuições que lhe são conferidas pela legislação em vigor e, CONSIDERANDO a necessidade de integrar as ações adotadas por diversos órgãos municipais no que se refere à ocupação irregular para fins de moradia;
DECRETA:

Art. 1° Fica instituído Grupo de Trabalho – GT para tratar de assuntos relacionados à reassentamento de famílias moradoras de unidades públicas ou particulares em ocupação irregular.

Art. 2º O GT tem por objetivo propor políticas públicas para evitar ocupação irregular de prédios ditos abandonados, bem como para planejar ações para reassentamento das famílias moradoras de unidades ocupadas em condições precárias de segurança habitacional e de saúde pública.

Art. 3º O GT será composto por membros, sendo um titular e um suplente, dos seguintes órgãos municipais:

I – Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação – SMUIH, a quem caberá a coordenação do Grupo de Trabalho;
II – Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos – SMASDH;
III – Secretaria Municipal da Casa Civil – CVL;
IV – Secretaria Municipal de Saúde – SMS;
V – Instituto Municipal Pereira Passos – IPP;
VI – Procuradoria Geral do Município – PGM;
VII – Secretaria Municipal de Ordem Pública – SEOP;

Parágrafo único. Os órgãos e entidades relacionados no caput desse artigo deverão encaminhar à SMUIH as indicações de seus representante e suplente, no prazo de até dois dias úteis, contados da publicação do presente Decreto.

Art. 4º O GT terá trinta dias, a contar da data de publicação deste Decreto, para apresentar relatório com os levantamentos realizados, as ações propostas, e o custo previsto para implementação das mesmas.

Art. 5º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Rio de Janeiro, 16 de maio de 2018; 454º ano da fundação da Cidade.
MARCELO CRIVELLA

[9] https://www.cartacapital.com.br/economia/No-Brasil-trabalho-informal-e-a-nova-regra
[10] https://www.bbc.com/portuguese/amp/brasil-44205520
[11] https://apublica.org/2018/06/raquel-rolnik-o-bolsa-aluguel-e-o-verdadeiro-combustivel-para-novas-ocupacoes/

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