Por Primo Jonas
A câmara de deputados da Argentina aprovou no dia 14 de Junho (2018) o projeto de legalização do aborto; em outras palavras, a “interrupção voluntária da gestação” até a 14ª semana num estabelecimento do sistema de saúde em até 5 dias após requiri-la, obrigando o sistema público de saúde bem como o privado a prestarem este serviço (estas são as linhas gerais do projeto votado pelo Congresso, que também inclui detalhes sobre médicos e médicas que não queiram realizar o procedimento por objeção de consciência, adolescentes gestantes, entre outros).
O tema ganhou uma enorme relevância nacional e política, expressa em dois fenômenos desiguais: por um lado, a votação apertada no Congresso (129 a favor vs 125 contra), por outro, a folgadíssima maioria de manifestantes pró-decisão, uma verdadeira maré verde pelo centro de Buenos Aires, contra uma pequena esquina de manifestantes pró-aborto clandestino.
São diversos os elementos que fazem desta vitória histórica no país, ainda parcial, um tema de análise importante. Estamos falando de um país que se encontra neste exato momento em uma crise econômica estrutural, perda continua de poder aquisitivo dos e das trabalhadoras, demissões e precarização ubíquas, aumento da repressão – isto é, em um momento de baixa no ciclo econômico, ainda que sempre existam vozes que tentem convencer de que “o pior já passou”. Estamos também falando de um país com um movimento feminista organizado há mais de 30 anos com seus encontros nacionais hegemonizados por partidos de esquerda e extrema-esquerda (maoistas e trotskistas principalmente), movimento que em 2005 lançou oficialmente a “Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito” com a consigna “Educação sexual para decidir, anticonceptivos para não abortar, aborto legal para não morrer”, com o lenço verde como seu símbolo público. Tanto os encontros nacionais quanto os debates sobre aborto tiveram nestes últimos anos uma entrada bastante ampla em setores de massas, como nos âmbitos sindicais e estudantis, fazendo do lenço verde uma constante em espaços de militância e ativismo.
Também a Igreja e a coligação de Macri somam aspectos importantes de partida. Desde que o governo de Cambiemos assumiu a presidência (e o governo da principal Província do país, além também da capital federal), o Papa Francisco tem sido um dos principais opositores a Macri. Pode soar estranho para quem não conhece o contexto do país, mas isto ocorre por alguns motivos: primeiro porque a figura de Cristina Kirchner termina seu governo com a chama bastante apagada, o desempenho econômico vinha definhando nos últimos anos e as ofensivas anticorrupção ajudavam na desconstrução da mística cristinista. Sua ala política dentro do peronismo não conseguiu emplacar um candidato próprio nas eleições de 2015 e até agora não está claro quanto poder terão na composição da chapa de 2019. Frente à atual fragmentação do Partido Justicialista, o setor político do peronismo, dividido também entre os governadores com mandatos (que tendem a apoiar a presidência por motivos pragmáticos) e a ala de centro-direita conduzida por Massa, um setor que ganhou maior notoriedade é a ala sindical, com a figura de Moyano. O macaco velho do sindicalismo mafioso argentino está conseguindo atrair para si novamente um poder e uma visibilidade como um dos poucos sindicalistas que “combate” o governo Macri, inclusive realizando paralisações de seu sindicato (Caminhoneiros) e conclamando uma paralisação nacional à direção nacional da CGT. Pois bem, todos estes setores que não conseguem unir-se politicamente devido às suas disputas internas encontram no Papa uma entidade aglutinadora.
De fato, o Papa é peronista. Militou em agrupamentos peronistas durante a Resistência e mantém o mesmo estilo papal que o próprio Perón tinha: mensagens públicas muitas vezes ambíguas que possibilitam e instigam o trabalho de exegese faccional, onde tal ou qual figura ganha destaque por “saber realmente o que o Papa pensa” ou ser um vínculo “direto com o Papa” etc. Isto era o que ocorria nos anos 70, quando os movimentos de extrema-esquerda e o de extrema-direta peronistas reivindicavam o mesmo Perón, ambos dizendo saber o que o General realmente pensava[1]. Não gera estranhamento, então, que na votação sobre o aborto um deputado e uma deputada tenham reivindicado Evita para justificar seus votos: um dos votos foi a favor e o outro contra. Esta é a lógica na qual opera Juan Grabois, referente máximo da CTEP (Confederación de Trabajadores de la Economía Popular) e ligado ao Papa, com todo o imbróglio midiático a respeito do tal terço enviado e/ou abençoado pelo Papa a Lula. Vale mencionar que Grabois não é um “advogado argentino”, é o máximo referente de uma organização que cooptou enorme parte da base social que nos anos 1990 conformou o movimento piqueteiro e que hoje, a partir das técnicas kirchneristas de pacificação e gestão da barbárie, se organiza em pequenos projetos produtivos, cooperativas, planos estatais de trabalho precário, bolsas estatais de todo tipo, etc. Junto com os outros dois principais movimentos deste setor “ex-piqueteiro”, a CCC (Corriente Combativa Clasista — maoístas) e os Barrios de Pie (centro-esquerda), tem funcionado como uma espécie de “sindicato dos precários” (precários aqui utilizado num sentido populista, que apenas inclui os setores sociais muito empobrecidos). Mas existe uma ambição maior: a CTEP tem planos de tornar-se um sindicato oficial, o que além de lhe conferir um grande peso na central sindical oficial do Estado argentino, a CGT, também lhe abriria a possibilidade de participar da principal modalidade de capitalismo sindical no país: o sistema de saúde sindical, as obras sociales.
Pois bem, o Papa é contra o aborto, assim como Cristina Kirchner (ainda que esta venha a votar a favor no senado, suas posições públicas durante seu governo sempre foram no sentido contrário). Isto se soma à crescente presença na Argentina da última vaga feminista internacional, ao maior peso dos setores modernizantes e liberais na coligação Cambiemos, em oposição às alas conservadoras. No âmbito da mídia burguesa tradicional, vemos esta divisão na cobertura das últimas mobilizações feministas: se no 8M(arço) já havia ficado clara a divisão dos meios televisivos (TN/Clarín ressaltando a cor verde na marcha enquanto A24 e outros meios mais conservadores e ligados ao peronismo ressaltavam apenas a pauta contra os feminicídios), nos dias 13-14 de Junho deste ano, durante e após a votação sobre o aborto, o site do Clarín dava total destaque para a aprovação no Congresso enquanto La Nación dava destaque completo à Copa do Mundo – vale lembrar que La Nación é um jornal mais tradicionalista, “aristocrático”, e inclusive mais sério em termos de jornalismo, mais parecido ao jornal O Estado de São Paulo, enquanto TN/Clarín é mais próximo a uma mistura de Folha com Globo, com maior ênfase em pautas liberais de costumes. Como ambos grupos midiáticos apoiam o governo Macri, fica bem expresso assim, como também nas pesquisas de opinião, que a base social do governo e seus votantes desde o início estiveram divididos quanto ao tema do aborto. Outro indício de que Macri mudou seu tabuleiro de apoios políticos foi a troca de farpas com a Igreja, ao publicamente se referir ao salário que o Estado argentino paga aos bispos católicos no país (aproximadamente US$2.300). Trata-se de um ataque genérico contra o Papa mas que também respinga nos setores de direita da Igreja que, até então, vinham apoiando o novo governo.
Este panorama geral confirma a hipótese de que o presidente aproveitou o cenário para uma jogada política. As feministas não devem tomar esta leitura como uma diminuição da importância da luta pelo aborto legal: sua aprovação é uma vitória construída com muita garra e com anos de ativismo, agitação e propaganda. Mas que isso não empobreça nossa capacidade de análise: não estavam nos planos iniciais de Macri ceder o debate sobre aborto, e esta questão em especial só foi efetiva para desviar o foco da economia e dos conflitos sociais do mundo do trabalho, único motivo para que o governo levasse a pauta ao Congresso, devido ao enorme acúmulo que o feminismo havia logrado nas últimas décadas – inclusive na base social macrista.
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Falar sobre o feminismo é delicado por todo o conteúdo de violência histórica, mas não menos devido à ênfase dada aos “lugares de fala”, às demandas de “politizar o pessoal” e o clima de denuncismo que ronda alguns âmbitos. Mas não é hora de acovardar-se.
Assim como no 8M alguns debates ganharam maior relevância na sociedade e no âmbito da militância em geral, também na questão do aborto alguns debates interessantes surgiram, os quais passo a relatar junto com observações gerais sobre o movimento.
Em primeiro lugar, diferente do Dia das Mulheres, não existe um grande rechaço à participação masculina nas marchas e nos eventos sobre aborto, dado que existe uma compreensão geral, acertada, de que uma gravidez envolve tanto o homem quanto a mulher, embora a decisão em última instância deva ser da mulher. O único ponto em algo polêmico era o uso do lenço verde por homens, pejorativamente chamados por algumas companheiras de “feministos”. Mas isto foi um pequeno detalhe frente ao massivo uso dos lenços verdes por mulheres durantes as últimas semanas na cidade de Buenos Aires. Como símbolo tradicional das feministas, não era de todo incomum nos últimos anos ver alguma mulher, geralmente entre 20-45 anos, com o lenço atado na mochila ou com um pin verde em sua bolsa, fora de qualquer data ou mobilização específica. No entanto, a partir de que Macri anunciou que o tema seria tratado no Congresso e a militância feminista iniciou uma nova fase de agitação da campanha, o número de mulheres com o lenço começou a aumentar sensivelmente. A princípio, um aumento limitado ao perfil mencionado, mas nas últimas semanas antes da votação era cada vez mais comum adolescentes e senhoras portando o lenço pela rua (no transporte público, nas saídas de colégios, pelas calçadas etc). A presença cada vez maior na mídia também ajudou: foram diversas as entrevistas, programas de auditório e matérias sobre a temática, e não faltaram atrizes, ativistas e entrevistadas de todo tipo que levavam o lenço posto ao redor do pescoço. Uma estratégia comunicacional impecável que permitia a expressão de apoio de qualquer pessoa com um simples lenço (o lenço era facilmente comprável em qualquer evento feminista de rua, em sindicatos, partidos etc). O tom de verde do lenço chegou a ser conhecido informalmente como “verde aborto”.
Em alguns ambientes autonomistas e anarquistas apareceu a problematização da legalidade do projeto, da necessidade de pedir soluções ao Estado etc. De fato na Argentina nos últimos anos vinham desenvolvendo-se várias iniciativas de “aborto autogestionado”, seja por meio da difusão de informações sobre o uso do Misoprostol[2] ou por meio de ambulatórios militantes pré e pós-aborto (geralmente vinculados a organizações sociais e políticas). Estas modalidades, no entanto, não eram praticadas apenas por militantes antiestatistas, eram parte do ativismo pró-decisão. Assim, muitas destas mesmas militantes também estão a favor da legalização do aborto em hospitais públicos, inclusive com argumentos bastante óbvios contra certo autonomismo quadrado: o hospital público deve atender tanto uma perna quebrada quanto um aborto. Autonomismo meio trotskista, que substitui “controle operário” por “autogestão” como solução superadora para todos os problemas do capitalismo.
Mas existe também outro problema que vem da mão do trotskismo, bastante influente no meio feminista militante, que é a transformação de qualquer coisa em vitória. Trotskismo este que nos últimos anos em quase sua totalidade deu um giro “movimentista” e nada nos movimentos de juventude para aí colher militantes. Em seu saudável universo de contradições, em geral ignoradas e reprimidas até a morte (ou a dissolução do partido), entram de fundo em um movimento policlassista embora abominem esta palavra como se fosse o capeta. Chegam a casos ridículos, como o PTS (MRT no Brasil), que tem como consigna para o transporte público “controle operário do metrô com participação de usuários populares”, pois precisam delimitar que se tratariam apenas dos usuários populares aqueles a participar na gestão. Pois bem, o espírito militante contaminado por tais agrupações também inspira um ufanismo identitário, ainda que bastante diferente daquele que no Brasil tem vicejado. Trata-se de um espirito “lutista” e menos vitimista, mas que tende a pensar na luta das mulheres como algo imanentemente positivo e projetado idealmente segundo as coordenadas políticas de cada grupo/partido. As linhas mais quadradas dos partidos marxistas tentam juntá-la como uma peça de Lego à luta de classes, “a luta das mulheres é parte da luta de classes”. Para os partidos menos quadrados, se trata apenas de uma sobreposição discursiva, “é necessário vencer o patriarcado, expulsar o FMI e derrubar Macri”. Em ambos casos, como o importante é conseguir novos corpos militantes para obedecer ordens, criar um ambiente ufanista de lutas e vitórias é o mais importante para colher novas militantes.
Um dos quadros mais mostrados pela mídia foi o da legislação sobre abortos ao redor do mundo, onde se vê sem dificuldades uma divisão entre os países que são as economias centrais do capitalismo (aborto regulamentado ou livre) e o mundo miserável e dominado pelas instituições religiosas (aborto proibido). A maioria dos países da OCDE permite o aborto livre dentro dos prazos de gestação estabelecidos. No contexto mundial atual, uma legislação sobre o aborto livre aproximaria a Argentina dos países que são a ponta de lança do capitalismo global.
Não é por questões declamatórias que se caracteriza um movimento como anticapitalista. A luta por uma legislação sobre o aborto, ou o fim deste estado de “exceção” da interrupção da gestação enquanto procedimento médico, é uma luta democrática como a enorme maioria das lutas travadas pelos movimentos sociais nas últimas décadas – democrática na demanda e também na forma, enquanto “frente única” de diferentes inspirações políticas. Contém algumas particularidades não menores, como o fato de ter como base social um pouco mais da metade da população mundial, por ser uma questão que incide especificamente na autonomia dos corpos. É claro que existe toda uma diferença de classe com respeito ao aborto no que diz respeito às condições em que uma mulher pode recorrer a esta prática em clandestinidade. No entanto, não se forma aí uma contradição social, nem entre as mulheres de diferentes classes nem entre homens e mulheres. O que aparece como polarização social é um movimento autônomo de mulheres contra as instituições tradicionalistas. Este movimento autônomo está atravessado por diversas tendências políticas e é composto por diferentes setores sociais, mas tem força hoje justamente devido às mudanças na inserção das mulheres na reprodução capitalista.
Em sintonia com os fenômenos sociais globais que despontam junto com as transformações recentes e em andamento da ordem imperialista, se trata de um movimento essencialmente metropolitano e cosmopolita[3] e com especial força entre as trabalhadoras qualificadas, aquelas que ocupam postos de trabalho (ou de formação) objetivamente mais igualitários com relação aos companheiros homens, o que fomenta uma maior combatividade na luta por condições de igualdade plena no âmbito social e político. Isto se constata na prática e também explica a entrada recente de setores da mídia “pró-establishment” nas lutas feministas: sua natureza policlassista não se dá apenas por uma abstração esquemática, mas porque a capacidade de direção das lutas é disputada por setores capitalistas interessados na modernização da economia e da política nacional.
Enquanto luta democrática, que efeitos tem a legalização do aborto nas relações de classe? O fim das mortes completamente desnecessárias de mulheres por conta de métodos primitivos, clandestinos, maus-tratos em hospitais etc, em resumo, uma maior igualdade entre as condições de vida e de reprodução entre trabalhadores homens e mulheres ajudaria a eliminar a tendência capitalista de dividir para dominar, isto é, o aproveitamento de divisões dentro do próprio proletariado para melhor controlar as lutas e os salários. Manter as mulheres proletárias como sujeitos de segunda classe, submetidas a ditames religiosos de todo tipo, fomenta a dependência da família e da figura masculina (ainda que esta em muitos casos seja objetivamente parasitária). Estas modalidades de repressão subjetiva e econômica são parte das travas impostas massivamente sobre as mulheres proletárias, ajudam a obstaculizar uma maior solidariedade da classe como um todo e facilitam formas de parasitismo doméstico e familiar no interior da própria classe.
Enquanto luta democrática, se trata de lutar por um patamar mínimo mais alto. Neste sentido é importante identificar que esta luta representa uma aliança entre setores proletários e setores gestoriais interessados na nova posição social da mulher. Ambos setores têm interesse em vencer as instituições tradicionalistas e as formas econômicas vinculadas à mais-valia absoluta do trabalho precarizado feminino, do trabalho familiar doméstico etc. Por sua vez, o interesse na mais-valia relativa do setor gestorial aposta no empreendedorismo inovador feminino, nas lideranças femininas “renovando” a política tradicional, em ambientes de trabalho mais igualitários – que inclusive fomentem demandas por melhores níveis de vida tanto de homens quanto de mulheres, desta forma motorizando o aumento de produtividade geral da economia[4].
Como então é possível incidir sobre o movimento de mulheres a partir de uma perspectiva que não se limite à declamação emancipatória e anticapitalista? Como combater o tradicionalismo arcaizante ao mesmo tempo que as formas capitalistas modernizadas?
Notas
[1] Até que o General decide exterminar a ala de extrema-esquerda por meio da Triple A (Aliança Anticomunsita Argentina), que durante os últimos anos dos governos Perón (Perón-Isabel) começou o trabalho de extermínio dos militantes de esquerda no país, depois continuado pelos militares do golpe de 76.
[2] Também conhecido como Cytotec no Brasil (nome comercial). São diversos sites disponíveis com informações: aqui, aqui e aqui.
[3] Os deputados da região mais densamente populada da Argentina, a Província de Buenos Aires e a Capital Federal, tiveram grande peso nos votos a favor da legalização, enquanto muitas províncias do interior deram votos majoritariamente contrários. A enorme concentração de manifestantes na Capital Federal contrasta com as concentrações menores de outras capitais importantes (Córdoba, Santa Fé), mas mais ainda com as capitais onde as manifestações maiores foram as pro-aborto clandestino, principalmente no norte do país onde o catolicismo é mais orgânico.
[4] Ver João Bernardo, Crise da economia soviética pp. 25-30 (Aparecida de Goiânia: ed. Escultura, 2017).