Por Manolo
Estes dias um amigo me escreveu:
Estou a ler Ernest Nagel, The Structure of Science: problems in the logic of scientific e explanation (Indianapolis, Cambridge: Hackett, 1979), e chego a esta passagem:
“[…] if we wish to account for the behavior of men who believe in the medicinal properties of a given substance, it is obviously important to distinguish between the question whether that belief has any influence upon the conduct of the believers, and the question whether the substance does in fact have the assumed medicinal properties. On the other hand, there appear to be excellent reasons for rejecting the conclusion, alleged to follow from this distinction, that in explaining purposive behavior the social scientist must use no information available to himself but not available to those manifesting the behavior” (pág. 476).
[Traduzo, porque ninguém tem obrigação de saber inglês: “[…] se quisermos explicar o comportamento de quem crê nas propriedades medicinais de determinada substância, é obviamente importante distinguir entre a questão que indaga se esta crença tem alguma influência sobre a conduta dos crentes, e a questão que indaga se a substância tem, de fato, as propriedades medicinais que se assume que tenha. Por outro lado, parece haver excelentes razões para rejeitar a conclusão, que se alega decorrer desta distinção, de que ao explicar o comportamento intencional o cientista social não deve usar qualquer informação disponível para si, mas indisponível para quem manifeste tal comportamento”.]
E aqui Nagel cita, como exemplo daquilo que critica, Hayek:
“Any knowledge which we may happen to possess about the true nature of the material thing [i.e., the alleged medicine], but which the people whose actions we want to explain do not possess, is as little relevant to the explanation of their actions as our private disbelief in the efficacy of a magic charm will help us to understand the behavior of the savage who believes in it” (pág. 476 n. 17).
[Traduzo, mais uma vez: “Qualquer conhecimento que porventura venhamos a ter sobre a verdadeira natureza da coisa material [i.e., o suposto medicamento], mas que as pessoas cujas ações queiramos explicar não tenham, é tão pouco relevante para a explicação de suas ações quanto nossa descrença pessoal nos efeitos de um encanto mágico o é para entender o comportamento do selvagem que nele acredita”.]
Então não é curioso que Hayek tivesse dito a mesma coisa que os pós-modernos vieram dizer depois?
Juro que ia responder de modo elegante. Juro. Fiquei vários minutos viajando na maionese, recorrendo a exemplos da ontologia grega pré-socrática, passando pelos eleatas, pelos atomistas e sofistas… Fui puxando de memória a polêmica de Henri Lefebvre contra os estruturalistas, a quem chamou de “novos eleatas”, para demonstrar como posições como a defendida por Hayek são absurdas… (Lefebvre, conhecido no Brasil por uma ou outra citação desconexa acerca do “direito à cidade”, uma de suas mais infelizes e desvirtuadas criações, antes de se afirmar como sociólogo e geógrafo era um filósofo dos bons, dos que vão direto ao assunto sem muita firula.)
Mas ocorre que estou no ônibus, já bastante atrasado. E a causa do atraso é um engarrafamento. E o engarrafamento é causado por uma carreata. E a carreata é encabeçada por uma candidata a deputada federal que constrói sua carreira política enquanto “defensora dos animais”. E ela mesma só se elegeu vereadora porque veio na sombra do irmão dela, também “defensor dos animais”.
Ora, a carreira destes dois ilustra exemplarmente o tipo de idiotice política pós-moderna. “Cuidar dos bichinhos” é a nova moda a movimentar milhões de pessoas e de dinheiro. Se os “cuidadores de bichinhos” dedicassem, digamos, à população em situação de rua o mesmo tipo de atenção e paixões, decerto estaríamos em outro patamar na política.
Ilustra tal idiotice mais ainda a campanha que movem ambos — não só os dois, mas também eles — contra o sacrifício animal no candomblé e demais religiões de matriz africana. Trata-se da típica situação em que estão todos errados. A campanha dos irmãos é veladamente racista, e usa a defesa dos animais como mote para coibir um elemento central a estas práticas, que em proibido as descaracterizariam por completo. Equivale, num outro registro, a combater a efusividade do samba e o histrionismo dos cultos evangélicos com base pura e simplesmente na poluição sonora. Por outro lado, qualquer não-crente sabe que os sacrifícios nestas religiões são tão eficazes para mudar a tessitura da realidade em tal ou qual sentido quanto botar uma imagem de Santo Antônio “de castigo” de ponta-cabeça num copo d’água, ou banhar-se no Ganges, ou seguir os ritos eleusinos.
Mas vá alguém dizer que estão todos errados!
Tudo isto me lembrou de relance a polêmica entre Habermas e Ratzinger acerca do papel da religião na sociedade “pós-moderna”. Habermas, que é politicamente viscoso mas muito inteligente, e também um agnóstico e racionalista empedernido, iniciou argumentando contra Ratzinger, entre outras coisas, que ninguém vai ao padre quando está doente, mas ao médico, e que portanto, em termos práticos, as sociedades modernas e “pós-modernas” estruturam-se também em torno de certo “agnosticismo prático” em que os aspectos místicos e divinos não têm mais qualquer centralidade. Ratzinger, representante de certo reacionarismo moderado dentro da igreja católica (há piores que ele) mas também ele muitíssimo inteligente e culto, retrucou demonstrando como muitos dos valores éticos fundamentais das sociedades modernas e “pós-modernas” já estavam antecipados pela doutrina cristã e pela prática dos crentes. Réplica de lá, tréplica de cá, e no fim das contas Habermas cedeu, reconhecendo nas religiões alguma importância prática neste campo, ao tempo em que Ratzinger viu-se forçado a reconhecer, ainda que nas entrelinhas e sem confessá-lo abertamente (décadas à frente da Congregação para a Doutrina da Fé treinaram-no nestas sutilezas), a óbvia e drástica diminuição da centralidade do místico como elemento fundante da vida social. Nenhum dos dois cai no relativismo solipsista pós-moderno, mas, como no esquema lógico dos diálogos socráticos, a tensão e a argumentação entre ambos afirma coisas não expressas nos termos do debate e aponta também para pontos cegos; o “não expresso” é o que o próprio Habermas veio a chamar depois de “pós-secularismo”, que nada mais é senão a afirmação do “agnosticismo prático” combinado com a centralidade das religiões na formação de valores éticos, e o “ponto cego” está em que mesmo eles, representantes a seu modo de instituições muito sólidas (a universidade e a igreja), foram incapazes de sair dos puros termos lógicos da argumentação, incapazes de olhar para as instituições sociais e verificar, na vida prática e nas relações sociais, a validade do que afirmavam. E assim vamos, de polêmica simbólica em polêmica simbólica, a perder o essencial.
O pós-modernismo é o liberalismo extremado. Extremado porque o liberalismo, ao menos, concebe o Estado, ainda que mínimo, e também o mercado, como instâncias de mediação entre indivíduos. O pós-modernismo, nem isto. Indivíduos absolutamente livres, expressando-se de forma absolutamente livre, sem saber o que fazer quando as liberdades se entrechocam, pois qualquer restrição às liberdades, ainda que voluntária, é “autoritária”. Prefiro trancá-los todos numa casa de BDSM para que vivam felizes para sempre. Porque aqui fora — ah!, aqui fora! — há coisas mais comezinhas e importantes a tratar.
Enquanto escrevia esta resposta no celular, tinha ataques de risos. Estes flashes foram dois entre muitos que a mensagem deste amigo me provocou. Cada qual mais ridículo que o outro. Mas entretanto chegou o ponto, e tive de parar por aqui.