Por Arthur Moura [*]

 

“Nunca foi difícil censurar no Brasil.”

Carlos Fico

 

De um certo tempo para cá, tornou-se comum o jargão de que toda polícia é política e que todo preso é um preso político. Essa não é uma afirmação incorreta, apesar de generalista e genérica. A polícia exerce diferentes funções a depender do momento histórico e, sobretudo, das necessidades da classe dominante e também de suas próprias questões internas (o que não pode ser ignorado). Esse tom expressa muito mais uma questão de ordem social, onde a condição do preso está diretamente associada a contradições históricas, já que a imensa maioria dos presos e assassinados pela polícia são negros, pobres e oriundos de setores subalternizados que respondem a essa contradição, marginalizando-se e caindo na delinquência e na criminalidade. A prisão, então, faz parte do controle social necessário ao bom funcionamento das cidades capitalistas, que não exclui a prática da delinquência e do crime como reguladoras do seu modus operandi, direcionando a punição a setores específicos como forma de justificar políticas de controle social. O tratamento policial dado aos setores dominantes é notadamente distinto. A punição, quando existe, é branda e inclui todos os direitos colocados formalmente pelo estado democrático, o que gera profundo desequilíbrio entre aqueles que são condenados incluindo os motivos das condenações.

A banda O Rappa, por exemplo, afirma que “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, trazendo à tona também a poesia “O Navio Negreiro” de Castro Alves, obra prima na luta contra a escravidão no Brasil do século XIX. A polícia política a qual se refere Carlos Fico, no entanto, tem o caráter de especializar-se no que diz respeito à neutralização de tendências sociais e políticas de caráter revolucionário. A polícia, nesse caso, exerce o papel fundamental da contrarrevolução permanente. É ela quem garante o bloqueio das forças populares e vanguardas organizadas geralmente em estruturas partidárias, já que estamos falando do período ditatorial de 1964. A polícia que conhecemos hoje está diretamente associada ao desenvolvimento da censura, espionagem, e propaganda da época. Ela apenas adaptou-se a um novo contexto histórico.

É importante notar que qualquer regime de ordem ditatorial ou democrático (institucional ou não) não sobrevive sem um serviço de inteligência política, espionagem e uma polícia política para executar tais ações. No que diz respeito à América Latina, esses serviços careciam de uma estrutura mais sólida. Os Estados geralmente associaram-se às diretrizes das principais potências do pós-guerra. A Guerra Fria foi o ápice da espionagem. Esse desenvolvimento da polícia política acompanha os processos ditatoriais em diversos países como Argentina, Chile, Peru, Colômbia, entre outros. No Brasil, podemos afirmar que a ESG (Escola Superior de Guerra) foi fundamental para melhor estruturar a inteligência do Estado, tendo à frente desse processo o general Golbery do Couto e Silva, sendo o suporte primário os Estados Unidos.

A ESG é criada em 1949. O discurso oficial afirma que a ESG fora criada com objetivos estritamente acadêmicos. Na verdade, ela foi fundamental na formação de oficiais segundo diretrizes centradas na Doutrina de Segurança Nacional (DSN). A segurança e o desenvolvimento faziam parte dos objetivos nacionais permanentes (ONP). A ESG se baseia na noção de guerra total; no pós-guerra, União Soviética e Estados Unidos formavam dois grandes blocos envolvendo interesses econômicos, políticos e territoriais. A ameaça, portanto, envolveria todos os esforços a nível nacional, já que o problema era de ordem mundial, muito maior do que simples distúrbios internos.

Todo esse caldo de disputas políticas acentuou a construção de memórias sobre esse processo. As memórias foram construídas tanto pela resistência quanto pelos militares. Carlos Fico afirma que “tal memorialística, para o historiador de hoje, constitui-se, a um só tempo, em fonte e objeto da história do regime militar, pois se ela descreve o período e suas mazelas – sendo fonte -, igualmente fornece suas interpretações necessariamente parciais – sendo passíveis portanto de análise histórica.” (2003, p. 170)

Espionagem, Polícia Política, Censura e Propaganda

Chegou-se até a afirmar que a história estava sendo contada pelo lado dos vencidos, o que denota um certo exagero, segundo o autor. A memória está sempre tensionada, já que é construída por diferentes leituras de mundo. Como a memória habita muito o campo da oralidade, há uma dinâmica própria que ao mesmo tempo dá perenidade e maleabilidade das interpretações. A memória está nas artes, tradições, cultura, mitos e estórias, sendo a aprendizagem parte desse processo. A memória, no entanto, principalmente em períodos ditatoriais, é confrontada pela versão oficial da história. Essa versão faz parte da própria visão do Estado, ou seja, dos setores dominantes e classes dirigentes.

Ainda no século XIX, Leopold von Ranke afirmava que a história deve ser construída com documentos oficiais. Segundo ele, os documentos falavam por si, cabendo ao historiador apenas mostrar a história como realmente aconteceu. O conhecimento histórico começa a tomar forma dentro da concepção oficial de Estado. Se pensarmos bem, o que era considerado fonte se restringia aos documentos oficiais, e a memória nesse momento (apesar de existir) não era considerada parte dessas fontes. Sendo assim, que possibilidades tinham os trabalhadores e setores subalternizados em geral a produzir história ou serem ouvidos? As versões da história, portanto, possuem um caráter sempre (e necessariamente sempre) parcial. Ou seja, sempre se está afirmando determinados valores e projeto de sociedade, ainda que a contragosto. Como a construção histórica depende de uma sistematização, trata-se de um movimento consciente pensado de forma deliberada. Segundo Fico (2003, p.170), existe “a dimensão heurística das memórias e o caráter basicamente conflitivo que se estabelece entre os que tentam constituir essa ou aquela versão como verdadeira ou falsa.”

O autor afirma que houve pouca visibilidade das memórias militares por questões editoriais e não por ausência de produção dessa memória. O CPDOC da FGV teve papel fundamental na divulgação dessa memória. No entanto, a questão da tortura não foi assumida por essa memória oficial. Boa parte dos depoimentos dos oficiais-generais apresentou uma versão demonstrando surpresa, como se os excessos não fossem do conhecimento do comando. Carlos Fico categoriza essa versão como “cínica”, já que o próprio Geisel admitiu a tortura como um “mal menor”. Isso tudo funcionou como um estímulo para novas investigações. Esse “tempero especial” (censura, espionagem e polícia política) aguçou também essas novas investigações. Para o autor

Podemos contar a história da ditadura militar (e qualquer outra) de diversas maneiras. (…) Reside no equilíbrio entre teorização e descrição factual a potencialidade explicativa da história. (…) O desafio concentra-se na descoberta de novas fontes, notadamente aquelas oriundas do governo e de caráter sigiloso. (FICO, 2003)

Existem diferentes interpretações sobre o caráter das Forças Armadas. Dreifuss associa empresários e os donos do capital diretamente às políticas empreendidas pelas Forças Armadas. Essas forças então seriam complementares, sendo o exército, as polícias, etc., estando a mando da burguesia nacional e internacional. Por outro lado, há uma interpretação que busca complexificar esse problema afirmando que as Forças Armadas possuem suas próprias demandas e projeto político, não estando simplesmente à reboque dos setores civis e detentores do capital global. Essa interpretação acusa de marxismo vulgar o modo clássico de interpretar a relação entre Forças Armadas e setores civis dominantes, deixando de lado as questões internas e históricas das Forças Armadas. Por outro lado, seria descontextualizar o próprio Estado com relação à sua função primordial, que é fundamentar e garantir a dominação de classe, sendo estruturante a relação entre Forças Armadas e capital uma não sobrevivendo sem a outra. Segundo Mascaro (2013, p.19)

Estabelecendo-se como um continuum estrutural e relacional das ações capitalistas de troca mercantil e de exploração produtiva, a forma política estatal não é, um elemento insólito, neutro ou meramente técnico no sentido de indiferença em face do todo social. O Estado é, na verdade, um momento de condensação de relações sociais específicas, a partir das próprias formas dessa sociabilidade. O seu aparato institucionalizado é um determinado instante e espaço dessa condensação, ainda que se possa considera-lo o fulcro de sua identificação. Mas esse aparato só se implanta e funciona em uma relação necessária com as estruturas de valorização do capital.

Golbery do Couto e Silva cria o SNI em 1964 com informações do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), sendo que este já reunia informações desde antes do golpe. Mas “se Golbery foi o pai do monstro, Costa e Silva e Portella foram os responsáveis pelo parto.” (FICO, 2003, p.176) Costa e Silva foi ministro da Guerra de Castelo Branco. Jayme Portella foi ministro-chefe da Casa Militar de Costa e Silva. Foi o que tomou a frente e organizou o Conceito Estratégico Nacional no governo Médici. O SNI tinha algo em torno de 2.500 funcionários isso sem contar com um sem número de colaboradores. O IPES, mal comparando, era uma espécie de Brasil Paralelo de hoje. Com as devidas distinções, defendia um projeto de sociedade liberal dentro dos modelos democráticos legais tendo como referência principalmente os Estados Unidos. Denunciava os regimes totalitários equiparando comunismo, socialismo, fascismo e nazismo como igualmente nocivos ao modelo liberal democrático. “O SNI tinha status de ministério e coordenava todas as ações no território nacional.” “O SNI desapareceu formalmente durante o governo Sarney, substituído pela Agência Brasileira de Inteligência.”

O autor expõe a construção paulatina da espionagem política. O SNI aprimora-se, para em 1970 tornar-se Sisni, que subdividia-se em diversos sistemas setoriais. Em 1971, é criada a EsNI, Escola Nacional de Informações. Chamava-se comunidade o aparato de espionagem, censura, polícia política e propaganda política. Havia diferença entre os órgãos de informações e os de segurança. Um organizava as informações e outro executava. Essa organização do poder coercivo visava uma melhor eficiência, ao passo que também preparava o Brasil para possíveis processos revolucionários. Havia, portanto, uma conexão entre essas forças.

Espionagem, Polícia Política, Censura e Propaganda

Toda essa estrutura era realmente grande, complexa e altamente organizada, respondendo em última instância ao chamado comando supremo da revolução, ou seja, presidente, ministros e chefes de estado prioritariamente. A espionagem era a base para que a censura atuasse e a polícia conseguisse por meio de prisões arbitrárias, mas justificadas legalmente, neutralizar organizações, manifestações e setores envolvidos na resistência contra a ditatura militar de 1964. O conhecido massacre da Lapa de 1976 onde foram assassinados dirigentes do PCdoB é apenas um exemplo. Mas como afirma o próprio Fico (2003), “nunca foi difícil censurar no Brasil”, pois já “no final do governo de Juscelino Kubitschek fora criado um Serviço Federal de Contra-Informações (SFICI).” O CIE (Centro de Informações do Exército), o Cisa (Centro de Informações da Aeronáutica) e o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) eram estruturas já presentes nas Forças Armadas há mais tempo. Esses órgãos eram mistos: informação, prisão e interrogatório. “Não se pode falar propriamente no “estabelecimento” da censura durante o regime militar porque ela nunca deixou de existir no Brasil.”

As DSI´s (Divisões de Segurança e Informações) estavam em todos os ministérios civis e “integravam os Sistemas Setoriais de Informações dos Ministérios Civis.” Isso quer dizer que “o sistema de informações penetrou nas autarquias, fundações e demais órgãos públicos.” Segundo Fico (2003), “O que se fazia numa DSI diferia muitíssimo daquilo que se passava num DOI. Um agente de informações, civil ou militar, que trabalhasse numa DSI, nada tinha a ver com a atividade de um capitão que atuasse numa “turma de interrogatório” do DOI.” (FICO, 2003, p.177) “Foi a estrutura da Oban que inspirou a criação do sistema Codi-DOI. (Centro de Operações de Defesa Interna-Destacamento de Operações de Informações)”

Em 1968 baixa o AI-5 que tinha um diferencial com relação à censura da imprensa. Isso foi uma necessidade do próprio regime militar, e não uma consequência do suposto endurecimento da esquerda ao optar pela luta armada. “Para os militares da linha dura, a opção de setores da esquerda pela luta armada confirmou a necessidade de implantação do Sistema de Segurança Interna (Sissegin).” Esse endurecimento do regime também fora forjado pelas próprias Forças Armadas, que legitimaram suas ações como resposta de alguns setores da esquerda em optar pela luta armada. Assim, o AI-5 é a institucionalização do modelo brutal repressivo. “Antes do AI-5, as tentativas de punição esbarravam na concessão de habeas corpus pela justiça.” Com o AI-5, se centralizou os IPM´s numa Comissão Geral. Com isso, editou-se um novo código de processo militar penal mais rigoroso. É importante ressaltar que tudo fora feito por meio de diretrizes secretas. As atividades subversivas não podiam ser combatidas como crime comum.

A censura já era algo estabelecido no Brasil antes do regime militar. Como o autor afirma no texto, leis de imprensa, classificações etárias e questões relacionadas à moral e aos bons costumes justificavam a censura e atuação policial. Nos anos 1940, existia o Serviço de Censura de Diversões Públicas. Por isso, o papel da ditadura militar foi adequar todo esse montante de proibições e censura aos seus objetivos específicos, desenvolvendo e aprimorando suas estruturas direcionando-a a grupos específicos. Sem contar que uma expressiva parcela da população apoiava políticas repressivas dessa natureza devido ao forte apela conservador da população. A censura se estabeleceu de maneira feroz no governo Castelo Branco com a lei de imprensa. Havia a censura prévia e a fiscalização para impedir publicações contra o regime. Tratava-se de regular a “liberdade de manifestação de pensamento e de informação” e atuava diretamente na censura. Essa censura se direcionava à música, livros, teatro, cinema, “de modo que tudo poderia ser censurado, bastando ao governo lançar mão desta ou daquela dubiedade de legislação”. (FICO, 2003) Nessa dinâmica, os próprios donos dos meios de comunicação colaboravam com a ditadura. A tese principal do autor é de que todo o aparato de censura, propaganda, espionagem e polícia política agiam de forma coordenada e altamente organizada burocraticamente em repartições públicas especializadas em cada área articulando e agilizando as condenações.

Em 1969, no governo Médici, a propaganda política ganha mais peso. Foi criado o Aerp em 1968 (Acessoria Especial de Relações Públicas) para trabalhar a imagem do Costa e Silva. “À frente da Aerp, Hernani d´Aguiar estimulou e patrocinou a produção de campanhas, de forte cunho oficial, que enalteciam o país de maneira ufanista. Mostravam o “Brasil Grande” e um governo empreendedor.” Os objetivos da propaganda era:

Motivar a vontade coletiva para o esforço nacional de desenvolvimento, mobilizar a juventude, fortalecer o caráter nacional, estimular o amor à pátria, a coesão familiar, a dedicação ao trabalho, a confiança no governo e a vontade de participação. Queriam contribuir para a afirmação democrática do país e também pretendiam atenuar as divergências que sofre a imagem do país no exterior. (FICO, 2003)

O contexto era de desenvolvimento dos meios de comunicação. A função principal da propaganda eram duas: construir a ideia de uma país grande e único pelo desenvolvimento e, talvez o principal, amparar a repressão e encobrir os crimes praticados. Havia uma guerra psicológica.

 

[*]  Doutorando em História Social pelo PPGHS (FFP-UERJ)

 

As artes que ilustram o texto são da autoria de  Albert Tucker (1914-1999).

1 COMENTÁRIO

  1. Fui eu quem leu rápido demais, ou o nome do texto resenhado/comentado não aparece no texto?

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