Christophe Callewaert entrevista Malalai Joya

 

Capa da autobiografia de Malalai Joya, Raising My Voice (Levantando a minha voz), que foi escrita em colaboração com o escritor Derrick O’Keefe e publicada nos EUA e Canadá sob o título A Woman Among Warlords (Uma mulher entre os senhores da guerra)

A autobiografia da jovem mulher afegã, activista dos direitos humanos e da política, Malalai Joya, é um grito de cólera [1]. Ela sobreviveu a cinco atentados e vive na clandestinidade em Cabul. Mesmo assim mantém a esperança. «Parem os bombardeamentos e não deem mais apoio aos senhores da guerra. Só então os democratas farão ouvir a sua voz.» Eis a entrevista.

Malalai Joya tem um aspecto cansado ao apertar-me a mão num hotel de Bruxelas. É difícil acreditar que esta mulher, pequena e frágil, é o alvo prioritário de todos os extremistas do Afeganistão. Desde que se exprimiu livremente na Loya Jirga – a grande assembleia de líderes tribais encarregada de elaborar a constituição – ela tornou-se, no dizer dos seus inimigos, “uma mulher morta ambulante”.

Já sobreviveu a cinco atentados. De uma das vezes viu explodir prematuramente uma bomba que destruiu a ponte por onde teria de passar pouco depois. E no entanto ela permanece no Afeganistão.

Malalai Joya (MJ): «Vivo em Cabul, mas infelizmente não posso levar uma vida normal. Estou sempre a mudar de uma casa segura para outra. Nunca fico mais de uns poucos dias em cada casa. Não tenho um escritório onde possa receber as pessoas. Até tenho guarda-costas, mas mesmo assim é perigoso. Agora que escrevi este livro, as ameaças dos extremistas irão aumentar. Eles sabem que nunca aceitarei compromissos com eles e por isso me querem eliminar. Mas eu faço o que posso para o evitar.»

Christophe Callewaert (CC): Ainda consegue ter actividade política?

MJ: «Sou frequentemente convidada para ir a províncias distantes ou para actos públicos em Cabul, mas é demasiado inseguro. A minha vida é clandestina. Encontro-me com pessoas em locais secretos, mas não permaneço no mesmo sítio mais de três horas. Se os meus inimigos me querem silenciar, só estão a conseguir o contrário disso. Cada nova ameaça só mostra a sua fraqueza política.»

«A minha situação deveria alertar as pessoas,» continua Malalai Joya. «No regime dos talibãs, eu ainda conseguia dar aulas clandestinas às raparigas. Agora não posso ir a lado nenhum, mesmo com guarda-costas. Isso mostra que toda esta guerra ao terrorismo é uma farsa. A libertação das mulheres não passou de um bom pretexto para invadirem o nosso país.»

O mundo começou a ouvir falar de Malalai Joya em Dezembro de 2003. Foi eleita como representante na Loya Jirga para a elaboração de uma nova constituição. Malalai Joya tinha apenas 25 anos, mas tornara-se muito conhecida enquanto dirigente de serviços de saúde. Regressara ao Afeganistão nove anos antes, vinda dos campos de refugiados no Paquistão, onde cresceu. Ainda adolescente durante o regime dos talibãs, deu aulas clandestinas a meninas e mulheres.

CC: No seu primeiro discurso na Loya Jirga, você atacou fortemente alguns dos seus membros. Porque é que estava tão zangada?

MJ: «Os senhores da guerra receberam milhões de dólares da CIA e do ISI [os serviços secretos paquistaneses, NDR] durante a guerra fria. Nessa altura eles não eram bem conhecidos pelo povo. Toda a gente, incluindo intelectuais e partidos progressistas, lutou contra a ocupação russa. Mas, quando a União Soviética se retirou do Afeganistão, eles mostraram a sua verdadeira face. Hekmatyar, Massoud, Hatim, Rashid Dostum… todas essas marionetas dos EUA cometeram crimes horrendos.»

«Vocês pensam que tudo começou com os talibãs, mas isso é mentira. As atrocidades começaram com os senhores da guerra. Em nome do Islão, aboliram os direitos das mulheres. Nem as meninas mais pequenas estavam a salvo desses violadores. Saquearam museus. Incendiaram livrarias. Assassinaram mais de 65.000 pessoas. Pregaram pregos na cabeça dos opositores. Cortaram os seios às mulheres.»

«Mas o pior é que eles podiam ter dado cabo da nossa unidade nacional. Cada um deles combateu em nome de um grupo étnico. Era tão mau que o povo até sentiu alívio quando, em 1996, os talibãs puseram termo ao império dos senhores da guerra. Mas isso não durou muito tempo. Um novo gangue de assassinos chegou ao poder. Em 2001, quando os talibãs foram expulsos, de novo se criaram esperanças, por um momento. Mas essas esperanças depressa foram enterradas. O dia 28 de Abril foi declarado Dia da Vitória dos Mujahedin [o dia em que a guerra civil começara em 1992, NDR], quando, para todos os afegãos, deveria ser um dia de luto nacional.»

CC: Você considera Ahmed Shah Massoud um senhor da guerra. Ele não é um herói nacional do Afeganistão?

MJ: «Massoud é um belo exemplo do “ontem terrorista, hoje herói dos EUA”. No Afeganistão, chamamos a esse herói “o carniceiro de Cabul” porque ele cometeu inúmeros massacres e provocou uma enorme destruição. Em Cabul existe uma rua com o nome dele, mas ninguém a chama com esse nome, de tão odiado que é. A CIA e o governo francês incitam-nos a aceitar Massoud como um herói, mas os heróis crescem nos corações do povo, não nos ministérios dos Negócios Estrangeiros.»

CC: Não deveria ter-lhes dado uma hipótese? Talvez eles se mostrassem arrependidos?

MJ: «Oito anos foi o suficiente para ficarmos a saber como eles lidam com os direitos do povo. Quando os talibãs chegaram ao poder, os senhores da guerra esconderam-se. Com os milhões de dólares que tinham recebido da CIA, esconderam-se em cavernas. A seguir ao 11 de Setembro, saíram dos esconderijos, de novo como lobos que são, mas agora vestidos com peles de cordeiro.»

«Agora até estão prontos para negociar com os talibãs. De facto não existem problemas entre eles. Há quem, quanto a isto, faça a comparação com a África do Sul: Mandela também apertou a mão aos seus adversários? Pois sim, há vítimas que perdoam aos seus carrascos. Mas no Afeganistão é um terrorista que aperta a mão a outro terrorista.»

CC: Em 2005 você foi eleita para o parlamento. Dois anos depois foi suspensa porque alegadamente terá ofendido os membros do parlamento. Exigiram-lhe um pedido de desculpas. Por que não o fez?

MJ: «No Afeganistão vigora a lei da selva. Será assim tão errado eu ter comparado o parlamento com um zoo? É certo que todos os deputados caminham sobre duas pernas, mas os senhores da guerra que se contam entre eles são mais cruéis do que os animais selvagens. A nossa sorte é que os animais não podem fazer queixas nos tribunais, dizem os meus apoiantes, porque poderiam processá-la a si por os comparar com aqueles criminosos.» (risos)

«Eu estava ali sentada no meio de assassinos em massa. Não há possibilidade de eu chegar a compromissos com eles. Nem sequer sabem o que essa palavra significa. E que pensariam de mim os meus eleitores se eu não erguesse a minha voz? Ai, ai, será que a nossa Malalai também se deixou subornar? Não, acontece que eu não podia pedir desculpa pela simples razão que eu tinha dito a verdade. As eleições são um sinal de democracia, mas infelizmente, depois de oito anos, os afegãos veem que as eleições não passam de um instrumento nas mãos das forças de ocupação e dos senhores da guerra para darem alguma legitimidade aos seus crimes.»

CC: O presidente afegão Hamid Karzai disse uma vez que concorda consigo. Você concorda com ele?

MJ: «Hamid Karzai é uma marioneta sem vergonha. Fez acordos com os terroristas mais cruéis e permitiu que eles dominassem o seu governo. Agora também quer incluir os talibãs neste governo.»

CC: Você lamenta que o adversário dele, Abdullah Abdullah, tenha retirado a candidatura às eleições?

MJ: «Abdullah Abdullah também é um bom amigo dos senhores da guerra. Acho que é ainda mais perigoso do que Karzai. Abdullah é também um defensor do federalismo, que poderia provocar um desastre no Afeganistão. O país seria mais facilmente balcanizado. Não percamos tempo com gente dessa, que gosta de falar de democracia mas são na realidade nossos inimigos.»

CC: Parece que não se pode confiar em ninguém. Não acha que está a ser demasiado dura?

MJ: «Há muitas pessoas progressistas e intelectuais no meu país, mas vivem na clandestinidade por causa da guerra. Se pararem os bombardeamentos e deixarem de apoiar os senhores da guerra, os democratas atrever-se-ão a levantar as suas vozes. Agora não têm oportunidade para isso. Isto também se deve ao facto dos médias [a mídia] dominantes não relatarem o que está realmente a acontecer no Afeganistão. Alguma vez viu manifestações de professores mal pagos na televisão?»

CC: Se as tropas estrangeiras se retirarem, o Afeganistão arrisca-se a ser assolado por uma guerra civil.

MJ: «E o que é que você faz à guerra civil que já está em curso? Eles colocam-nos entre a espada e a parede, e chamam a isso democracia. Enquanto as tropas permanecerem no Afeganistão, haverá guerra civil. Os bombardeamentos da NATO [OTAN] matam um grande número de civis, sobretudo mulheres e crianças. As tropas dos EUA gabam-se de que, com o seu equipamento, conseguem localizar até uma formiga, mas não conseguem distinguir entre uma criança e um talibã? É assim que se evita uma guerra civil? É muito simples. Parem de dar milhões de dólares aos senhores da guerra e o seu império cairá. São tigres de papel.»

CC: Os países ocidentais não podem entregar o povo do Afeganistão aos talibãs?

MJ: «Actualmente nós enfrentamos três inimigos: as forças de ocupação, os seus aliados do governo e os talibãs. Por isso, as tropas dos EUA e a NATO [OTAN] deveriam retirar-se do Afeganistão o mais depressa possível. O que nos deixaria com dois inimigos. Seria, de certo modo, mais fácil. E, se os EUA deixarem de bombear centenas de milhões de dólares para os senhores da guerra, o seu império cairá como um castelo de cartas. Estou convencida disso porque eles não têm qualquer apoio entre a população.»

CC: Mas isso não irá piorar a situação dos direitos das mulheres?

MJ: «Os direitos das mulheres não são criados pelo cano da espingarda. Os direitos das mulheres não virão do uso de bombas de fósforo e munições dispersantes e urânio empobrecido, nem do bombardeamento de pessoas inocentes. Nos últimos oito anos, foi muito mais frequente as forças ocupantes matarem cidadãos normais do que matarem combatentes talibãs. Milhões de afegãos sofrem com a insegurança, com a pobreza, com o desemprego e com a injustiça. Nem em Cabul estamos a salvo. Claro que houve a mudança simbólica ocasional. Há 68 mulheres no parlamento, mas a sua maior parte são nomeadas pelos senhores da guerra e pelos fundamentalistas.»

«A insegurança crescente também impede as meninas de irem à escola. Arriscam-se a serem raptadas ou violadas. O filho de um deputado violou uma menina, mas o pai arranjou maneira de ele ser rapidamente libertado. Claro que, com o que lhe mostram nas televisões e nos jornais, você pensa que só os talibãs é que cometem crimes.»

CC: Há tropas belgas que estão a ajudar a treinar o exército afegão. Obama espera que em breve o exército afegão poderá substituir as tropas estrangeiras.

MJ: «O exército afegão é um inimigo do povo afegão. Quem manda nos militares? Os senhores da guerra. É como nomear o coelho para tomar conta do armazém de cenouras. Outrora já tivemos um exército de voluntários, mas os senhores da guerra não irão permitir tal coisa.»

CC: As tropas estrangeiras também estão a participar na reconstrução. Assim podem ganhas as mentes e os corações do povo afegão, não?

MJ: «Infelizmente também há os senhores das ONGs. Muito do dinheiro destinado à construção de escolas desaparece nos bolsos dos senhores da guerra. Muitas ONGs são corruptas. Isso eu vi com os meus olhos. Há escolas a serem construídas com os materiais mais baratos. Então alguém tira fotografias para mostrar nos médias[mídia] dominantes. Mas um ano depois muito poucas dessas escolas subsistem. Em cada dia, os EUA gastam 160 milhões de dólares com a guerra do Afeganistão. Imagina o que poderíamos fazer com esse dinheiro todo?»

CC: Há quem diga que só pode haver uma solução política. Não é boa ideia negociar com os talibãs moderados na esperança de que eles deponham as armas?

Malalai Joya falando na Austrália, em Março de 2009.

MJ: «Sabe, não há talibãs moderados. Só há talibãs bárbaros e alguns deles são agora apontados como moderados por Karzai. O problema é que os médias dominantes estão a enganar as pessoas. Bush anunciou uma recompensa de 25 milhões de dólares pela cabeça de Hekmatyar e, de repente, Obama considera-o um terrorista moderado que poderia acabar integrando o governo? Aí está: uma vez mais estão a brincar com o futuro do meu povo. Receio que a política de Obama seja ainda mais perigosa do que a do criminoso de guerra Bush.»

CC: Como é que os políticos ocidentais reagem às suas opiniões?

MJ: «Apesar de eu ser uma deputada eleita, só consigo encontrar-me com muito poucos políticos. Uma vez estive na Alemanha e os meus apoiantes nesse país pressionaram o governo para me receber. O governo recusou, “ela já não é deputada, pois não?” Assim, em vez de protestarem contra a minha destituição, aceitam o raciocínio da ocupação. Isso prova que o governo alemão tem medo da verdade. Felizmente, muitos simples cidadãos estão do meu lado.

CC: O que diria você ao ministro belga da Defesa Pieter De Crem, se pudesse encontrar-se com ele?

MJ: «O seu país deveria ter uma conduta independente. Nesse caso, você seria bem-vindo ao meu país para ajudar a reconstruí-lo. Mas, se as tropas estrangeiras continuarem no Afeganistão, vão receber uma lição, como antes receberam os ingleses e os soviéticos. O seu país apoia a estratégia dos EUA. Os EUA querem ocupar o Afeganistão porque isso lhes facilita o controlo das duas potências regionais, a Rússia e a China. E do mesmo passo ficam com acesso mais fácil às reservas de petróleo e de gás natural das repúblicas da Ásia Central. Por certo você não quer participar nisso, não?»

CC: Alguma vez pensou em fugir da insegurança e continuar o seu trabalho a partir de um país seguro?

MJ: «Não quero abandonar o meu povo. Em todos os lados onde vou, sempre digo que um país nunca poderá ser libertado por outro país estrangeiro. A luta pela democracia e pelos direitos das mulheres é da responsabilidade do próprio povo. Seria uma inconsequência eu instalar-me no estrangeiro. Aproveito todas as oportunidades para viajar porque é um modo de suscitar solidariedade pelo mundo afora para com a luta do povo afegão. Mas se eu ficasse em permanência no ocidente, ficaria separada do meu povo.»

«Não posso contar com os médias afegãos para passar correctamente às pessoas a minha mensagem. Antes, alguns movimentos democráticos tinham um jornal, mas tiveram de parar por falta de dinheiro.»

CC: Porque é que você não é filiada em qualquer dos partidos existentes?

MJ: «Vários partidos democráticos me pediram que aderisse, mas eu prefiro continuar independente. Sou uma activista social. Não aceitarei compromissos. Mas continuo a ponderar isso. Talvez seja tempo de juntar forças e de criar um novo partido, ao qual se possam depois juntar os outros partidos democráticos e os intelectuais. Penso nisso seriamente.»

CC: Vai participar nas próximas eleições?

MJ: «Tem-me sido pedido que participe nas eleições parlamentares. Também estou a pensar nisso a sério, mas é difícil porque eu não posso fazer campanha.»

CC: Escreveu na sua biografia que os livros tiveram um papel importante na sua vida.

MJ: «Os livros são como a luz. Eu tive a sorte de o meu pai me dar a oportunidade de ler. Esses livros tiveram um grande impacto em mim. Sobretudo o livro The Gadfly [O Moscardo, da escritora britânica Ethel Lilian Voynich, NDR] foi muito importante. Esse livro mudou a minha vida. Vi o filme, li o livro, e vi o filme outra vez.»

CC: Que livros é que você lê?

MJ: «Eu costumava ler muito depressa. No tempo dos talibãs, às vezes lia três livros numa semana, apesar de ter de consultar o dicionário para quase todas as palavras. O meu irmão mais velho não acreditava e um dia pegou num livro e começou a fazer-me perguntas, mas eu conseguia responder às perguntas todas. De então em diante, a minha família incitou-me ainda mais a ler e a estudar. Mas agora leio cada vez menos. Canso-me depressa. A vida é tão difícil. Deixei de ler romances. Tenho de escrever artigos, preparar discursos, dar entrevistas.»

CC: Acha que algum dia os EUA e os seus aliados conseguirão ganhar a guerra?

MJ: «Eles já perderam a guerra.»

CC: Consegue imaginar um Afeganistão livre e em paz?

MJ: «Muitas vezes penso que não verei isso. Talvez um dia… se eles não me matarem.»

Copyright 2010 Creative Commons

Originalmente publicado em língua flamenga aqui.

[1] Malalai Joya nasceu em 25 de Abril de 1978. Filha de um estudante de medicina que perdeu uma perna durante a invasão soviética de Dezembro de 1979, tinha 4 anos quando a família fugiu para o Paquistão, onde cresceu. Depois da retirada soviética, regressou ao seu país em pleno regime dos talibãs, em 1998. Aí trabalhou como activista social, na OPCMA (Organização para a Promoção das Capacidades das Mulheres Afegãs), uma ONG a que veio a presidir.

3 COMENTÁRIOS

  1. oi, estor passando sò para lè dizer qr você è uma querreira

  2. Gostei da sua história…
    estou torcendo por seu povo e vou orar por vocês.
    abss

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