Algumas histórias para uma História da Censura ao Teatro em Portugal. Por Manuela de Freitas
O acto teatral é um acto de liberdade por excelência, sem outros limites que não sejam os da imaginação e do talento. Um espectáculo de teatro é um ritual integrador de todos os presentes numa corrente que une as entidades separadas num único corpo vivo. Por isso, representar para meia-dúzia de espectadores que ali estão expressamente só para julgar, castrar ou matar é uma aberração, como tantas outras impostas pelos que “onde passam se faz silêncio e escuro / seu manto sepulcral varre os espaços / e arrasta por entre os estilhaços / a crença antiga e os germes do futuro”. Assim foi durante o fascismo em Portugal, nos chamados “ensaios de censura”.
Os espectáculos eram submetidos a três censuras: a censura do texto, a censura do espectáculo e a censura depois da estreia, de acordo com as reacções do público, mas que os censores evitavam porque fazia parte da censura fingir que não havia censura. Por isso, preferiam proibi-los antes da estreia e era proibido dizer que tinham sido proibidos.
Para a censura do texto, enviavam-se as peças que eram devolvidas com cortes ou proibidas. A peça O Amante, de Pinter, não pôde ser representada, não porque a tivessem proibido, mas porque a retalharam, tornando-a incompreensível e portanto irrepresentável. Como não se podia dizer a palavra “amante” por ser contra os bons costumes, cortaram o título, depois a primeira fala “O teu amante vem hoje?” e assim até ao fim da peça.
Havia depois a censura do espectáculo, nas vésperas da estreia. Representava-se para os censores que, no fim, iam deliberar para um café vizinho do teatro. Quando regressavam, davam a sentença. Às vezes de morte, como no Teatro Experimental de Cascais, em que se ensaiou durante dois meses a peça A Noite dos Assassinos de José Triana e, no ensaio de censura, foi proibida. No dia seguinte, que seria o da estreia, os jornais anunciavam que, por razões técnicas, o espectáculo tinha sido cancelado.
Em 1972, vários actores formaram um Grupo, a Comuna, para “emergir da noite e do silêncio e, livres, habitarem a substância do tempo”. Para isso, tinham de enganar a censura. E conseguiram – o que lhes valeu, ironicamente, a suspeita de que estavam feitos com o poder, porque faziam espectáculos totalmente impossíveis de serem autorizados e os apresentavam internacionalmente, “dando uma imagem falsa do fascismo que, assim, pareceria não ser tão repressivo como isso”… Criavam à base de textos não censuráveis – Gil Vicente, poemas, textos da Bíblia e do Corão – e, nos ensaios de censura, alteravam a encenação e a interpretação de forma a eliminar tudo o que podia não agradar aos censores.
Um dos casos mais significativos foi o espectáculo A Ceia, estreado em Fevereiro de 1974, dois meses antes da “Revolução dos Cravos”, numa cave da Sociedade Central de Cervejas. Enviaram para a censura o guião com uma colagem de textos da Bíblia, Antero de Quental e Pedro Homem de Melo. Foi aprovado.
Como foi o ensaio de censura? O palco, que era uma grande mesa coberta com uma toalha branca, não tinha toalha. A mesa parecia assim um estrado de madeira, retirando qualquer conotação de banquete. Os dois actores, nos topos da mesa, que representavam a Igreja e o Estado, não estavam maquilhados nem vestidos de vampiros. O actor que servia à mesa, uma espécie de mordomo, em vez de prender o Homem debaixo da mesa, ajudava-o a descer da mesa e ele ia sentar-se na bancada. A Mulher não ficava atravessada no meio da mesa: ia também para a bancada e os senhores, em vez de jogarem com uma bola vermelha que lhe era arrancada do ventre e que ficava presa por um cordão a uma faixa que lhe envolvia a cintura, jogavam com uma bola de pingue-pongue. O terceiro actor não era torturado e ouvia agradado o poema de elogio ao povo que os senhores recitavam, não com crueldade e sarcasmo, mas com deleite e convicção. Os textos do coro eram ditos naquele tom declamatório à “Teatro Nacional” que retira qualquer sentido às palavras. No final, depois de um poema que termina “Não disputeis, curvado o corpo todo, as migalhas da mesa do banquete. Erguei-vos e tomai lugar à mesa”, os três actores juntavam-se sobre a mesa e, em vez de avançarem decididos contra os senhores e de aí se suspender a acção com um blackout, faziam uma alegre dança de roda e acabavam com uma vénia a agradecer os aplausos.
Durou 30 minutos. Dos censores, dois eram sempre os mesmos: o Dr. Beckert da Assunção e o Dr. Coelho Ribeiro. Quando saíram para deliberar, o Coelho Ribeiro voltou atrás, como sempre fazia, para tentar que os actores se descaíssem e “confessassem”. Era o quinto espectáculo do Grupo e os actores já conheciam o processo, por isso lhe chamavam “o Pide bom” [a PIDE era a polícia política do regime]. Dizia que os outros não percebiam nada de teatro mas que ele se interessava imenso por essas coisas… “O espectáculo não é nada disto, pois não? Vocês estão a enganá-los”. Os actores garantiam que não. Que não tinham tido possibilidades de fazer melhor. Nessa noite, como de costume, depois de mais uma tentativa falhada, foi ter com os outros e, quando voltaram, o Beckert da Assunção pediu ao Grupo para dar a palavra de honra de que o espectáculo era mesmo assim. Disseram convincentemente: “Ó Senhor Doutor, pelo amor de Deus! É uma encomenda, para levar às escolas textos clássicos”. Acreditaram, autorizaram e o espectáculo estreou.
Dias depois, a administração da Sociedade Central de Cervejas reservou 12 bilhetes para o espectáculo e deu um jantar para os convidados, entre os quais o ministro da Cultura e Informação, Pedro Pinto e o Director da Censura, Caetano de Carvalho. Os directores da Companhia foram ao jantar. Saíram às 20.30 “porque tinham de se ir preparar” e disseram que o espectáculo começava às 22h, em vez das 21.30, hora para que estava marcado. Os espectadores sentavam-se em duas bancadas, uma em frente da outra, de cada lado da mesa. O Grupo reservou uma fila inteira bem à vista no meio de uma das bancadas. Com a sala já completamente cheia, só com aquela fila vazia, o público, às 21.45, começou a agitar-se e quando eles entraram, às 21.55, foram vaiados. No final, quando o público se pôs de pé a aplaudir, hesitaram, mas já se tinham tornado tão notados no princípio que não tiveram outro remédio senão levantar-se também e aplaudir. Estava combinado com jornalistas tirarem fotografias que, no dia seguinte, saíram com grande titulo no jornal República: “A Ceia da Comuna aplaudida de pé pelo Ministro e pelo Director da Censura”. Também isso valeu acusações ao Grupo: “Que gente é esta que está tão orgulhosa por ser aplaudida pelos fascistas!”. O plano tinha resultado: como é que agora podiam proibir o espectáculo?!
Começaram a aparecer, nas sessões, informadores que tomavam notas. Os directores da Comuna foram chamados à Censura para interrogatório. Ensaiaram as respostas. Para eliminar qualquer conotação esquerdista, a actriz foi de capeline e óculos escuros, e sentou-se meio triste meio enfastiada a fumar de boquilha. O encenador, de fato [terno] e gravata, andava para trás a para diante com um ar alucinado, enquanto ela ia dizendo “acalma-te, tudo se resolve” e ia murmurando para o censor: “tem de lhe dar desconto, já temos tantos problemas, tantas dificuldades”. E responderam ao interrogatório sobre as diferenças entre o espectáculo que estava em cena e o ensaio de censura: – Há uma toalha branca dando a imagem de um banquete em que o povo é servido à mesa dos senhores – É porque havia poucos projectores e o branco reflecte melhor a luz. E como o espectáculo se chama A Ceia (um nome bíblico !) fica bem uma toalha. – Os actores nos topos da mesa têm capas e maquilhagem parecendo vampiros – É que, com pouca iluminação, assim sobressaem melhor contra as paredes escuras da sala. – O mordomo prende o homem e mete-o debaixo da mesa – É porque o actor é inexperiente e o encenador, que faz o mordomo, tira-o do palco quando está a arrastar demais a cena e pôe-no debaixo da mesa porque, com a sala cheia de espectadores, não há lugares na bancada. – A mulher fica deitada na mesa com a bola, agora vermelha, presa à cintura por um cordão – Com público, era muito desagradável a bola rolar para debaixo da bancada e a actriz ofereceu-se para ficar lá com a bola presa por um cordão. Já não podia ser de pingue-pongue porque sobre a toalha branca não sobressaía. – E o final? Como os actores não tinham jeito para dançar, o encenador optou por darem só uns passos e suspender a acção.
O censor tomou nota de tudo e no fim pediu para suspenderem o espectáculo. Prometeram que iam ver as marcações que havia e que acabariam logo que possível. Começaram a chegar recados: “seria melhor para todos se suspendessem o espectáculo”.
Quando, no 25 de Abril de 1974, foi ocupado o SNI (Secretariado Nacional de Informação, sede da censura), encontraram na secretária do ministro um recorte de um jornal alemão, com um círculo vermelho à volta de uma notícia que dizia “a revolução numa pequena sala de teatro em Lisboa” e uma nota para que os responsáveis fossem chamados à Pide. Já não foram a tempo…
Mas também houve censura depois da Revolução dos Cravos. Menos de dois meses depois, a 10 de Junho, no Mercado do Povo, em Belém, enquanto os pintores pintavam um grande painel alusivo à liberdade, a Comuna fez uma cegada [forma de farsa popular] que era uma paródia ao fascismo. Estava a ser transmitido em directo pela televisão. A actriz que fazia de Américo Tomaz, o Presidente da República deposto, vinha com um fatinho à maruja, de calções, com uma caravela numa mão e uma bóia na outra e inaugurava a exposição. Mariz Fernandes, o oficial do MFA [Movimento das Forças Armadas, que conduziu o golpe de Estado] que dirigia na altura a RTP [televisão pública, então a única], quando ela apareceu deu um salto na cadeira e exclamou: “Um oficial superior nesta figura!!!” e deu ordem para cortar imediatamente a transmissão. A equipa que estava a filmar recusou-se. O espectáculo continuou. Alarme e alarde entre a RTP e o ministro da tutela, Dr. Raul Rego [do Partido Socialista]. Até que veio a ordem definitiva do ministro e a transmissão foi proibida. O corte caiu em cima de um discurso do actor que fazia de cardeal Cerejeira [o Patriarca de Lisboa, chefe da Igreja Católica no regime fascista] que ia abençoando as vendas, as mordaças e as algemas com que Marcelo Caetano [chefe do governo deposto] condecorava os artistas. Claro que isso serviu para que – na boa tradição da censura – depois os responsáveis justificassem o corte com o argumento de que o espectáculo “ofendia os sentimentos religiosos do povo português”.
Também se voltou a ouvir falar do Dr. Coelho Ribeiro quando o actor João Grosso, em 1986, foi julgado em tribunal porque num programa de televisão cantou o hino nacional em ritmo de rock. E quando o humorista Herman José, em 1988, viu proibidas as “Entrevistas Históricas” porque num dos programas entrevistava a Rainha Santa Isabel e… “ofendia os sentimentos religiosos do povo português”. Nestes dois casos, era presidente da RTP o Dr. Coelho Ribeiro, o ex-censor, “o Pide bom” que, quando morreu em 2004, teve direito a um voto unânime – “de profundo pesar pela morte de um Grande Homem” – dos deputados da democrática Assembleia da República.
Estas histórias, se podem ser um pequeno contributo para a história da censura, são, com certeza, uma grande homenagem ao Teatro. Uma audiência vive no Teatro uma experiência que só pode ter lugar e sentido naquele momento e nas circunstâncias especiais daquele espectáculo que depende das inter-relações dos intervenientes. A história de A Ceia trata de uma só peça, mas foram realmente cinco espectáculos, pensados e ensaiados conforme as circunstâncias e os intervenientes: o ensaio de censura; o espectáculo com os convidados para comprometer o ministro e o Director da Censura; o interrogatório (em que foram ensaiadas as respostas, os comportamentos e até o guarda-roupa); o espectáculo feito diariamente para o público até ao 25 de Abril, e depois o espectáculo (A Ceia 2) apresentado já em liberdade, em que a primeira parte era o ensaio de censura, para que o público compreendesse o que se tinha passado. E se divertisse, porque além do mais era hilariante.
Perguntar-se-á: como é que foi possível? Foi possível porque os actores tiveram em conta as circunstâncias em que estavam inseridos. Citando Peter Brook, “o actor é um analista do Instante. Uma experiência teatral é a revelação da totalidade do instante”. Tiveram em conta: o mau teatro – que leva a que se ache normal assistir a coisas que não fazem qualquer sentido; o mau público (neste caso os censores), preconceituoso, paternalista e ignorante, para quem o teatro não existe fora das grandes salas e sem vedetas. A má crítica, para quem o teatro não existe sem grandes textos e para quem as “criações colectivas” não eram para ser tidas em conta e que por isso ignorou e levou a que fosse ignorado que aqueles espectáculos eram apresentados internacionalmente ao lado de Ronconi, Bob Wilson, Grotowsky, Living Theater, Dario Fo. Tudo isso fez com que aqueles actores pudessem passar despercebidos, fazendo crer que eram um bando de atrasados mentais indigentes a fazer palhaçadas numa pequena cave cedida por um empresário que achava graça à rapaziada. E assim puderam fazer o teatro que queriam.
Hoje, 35 anos depois, para poder manter a coerência e ser livre, em certas circunstâncias, o segredo também pode estar em perceber o que se passa e passar despercebido.
Excelente texto para que se possa perceber o que eram os limites à criatividade!
O fascismo, além de ser cruel, era essencialmente burro!