Por Mahmud Mamdani
Aqueles de vocês que não são de cá talvez tenham ouvido falar de uma nova forma de protesto social chamada “ida a pé para o trabalho” [1]. Tanto a oposição que iniciou esse tipo de marcha como o governo que está determinado a fazê-la parar são guiados pela lembrança de um acontecimento singular.
A lembrança da Praça Tahrir alimenta as esperanças da oposição e fomenta os receios do governo. Para muitos dos oposicionistas, o Egipto acabou por significar a terra prometida, no sentido proverbial. Para muitos dos governantes, o Egipto representa um desafio fundamental ao poder, que exige que se lhe resista a todo o custo.
As coisas chegaram a um ponto em que o mínimo sinal de protesto desencadeia a máxima reacção do governo. A tal ponto que o governo, que há apenas poucas semanas chegou ao poder com uma maioria arrasadora, parece agora carecer não só de flexibilidade mas também de estratégia de saída.
Os civis, tanto os apoiantes como os cépticos, ao verem os meios militares saírem à rua para manter a ordem civil nas ruas, veem esbater-se a distinção entre polícia civil e tropas militares uma vez que os que estão no poder insistem em tratar qualquer mero acto de protesto civil como se fosse uma rebelião armada.
Enquanto o governo está a perder a coerência e a unidade que aparentava nas eleições, a oposição está a conseguir ao menos um vislumbre da unidade e da visão que perdera durante o período eleitoral.
Se pensarmos que muitos destes [agora] opositores, muitos dos que tinham estado no anterior Parlamento, foram capazes do pior quando lhes coube governar, então esta inversão torna-se ainda mais espantosa.
Como é possível que alguma dessa mesma oposição, que ainda ontem via no Parlamento um passaporte para o clientelismo e uma licença para a pilhagem, esteja agora a descobrir a determinação e a coragem moral mesmo sem haver eleições à vista e sendo os tempos actuais bem duros? Este pensamento, por si só, é fonte de noções contraditórias na população, ao mesmo de cepticismo e de optimismo, quando se trata de política.
Não pretendo, agora, nem celebrar a oposição nem demonizar o governo. Apenas quero falar dessa lembrança que parece ser um impulso para muita gente na oposição e um pesadelo para muitos dos governantes. É a lembrança da Praça Tahrir. Não será exagero afirmar que a grande revolução egípcia começou em Túnis. Onde irá acabar? Daqui a dez anos vamos lembrar-nos disso como um acontecimento local, continental ou global? Como devemos perceber, agora, o seu significado?
Os historiadores admitem que não existe uma narração objectiva única de qualquer acontecimento. A narração depende, em parte, da posição do observador. Para muitos na Europa, os acontecimentos de Túnis e do Cairo foram uma prova de que as revoluções coloridas que se iniciaram na Europa de Leste com a queda da União Soviética começaram finalmente a espalhar-se para fora dessa região.
Na África Oriental, deu-se um alvoroço de discussão acerca da Praça Tahrir, sobretudo na imprensa. Muita gente se questionava se a revolução egípcia iria espalhar-se para sul do Saará. E respondiam, sem hesitar: “Não!” E porque não? Porque, dizem os manda-chuvas da comunicação, as sociedades subsaarianas estão tão divididas por questões étnicas, tão desunidas pelo tribalismo, que ninguém consegue atingir o grau de unidade necessário para enfrentar com êxito o poder policial.
A meu ver, esta resposta não faz muito sentido. Porque essa resposta parece uma caricatura. Em caso algum, na história das lutas vencedoras, se encontrará um povo já unido antes de haver movimento. Pela simples razão que uma das coisas que assinalam o êxito de um movimento é a unidade. A unidade é forjada por meio da luta.
Para provar este aspecto, e alguns outros, olhemos agora para a revolução democrática no Egipto no contexto histórico mais amplo, a história da luta pela democracia neste continente. Quero começar com um acontecimento que ocorreu há mais de três décadas na África do Sul. Refiro-me ao levantamento do Soweto em 1976, o qual se seguiu à formação de sindicatos independentes em Durban, em 1973. Estes dois processos, no seu conjunto, inauguraram uma nova era na luta anti-apartheid na África do Sul.
[A revolta d’] O Soweto foi uma sublevação da juventude. Numa época em que os adultos haviam concluído que só pela luta armada se poderiam conseguir mudanças significativas, [a revolta d’] o Soweto inaugurou uma forma de luta alternativa.
Esta nova forma de luta substituiu a noção de luta armada pela de luta popular. Deixou-se de pensar na luta como sendo travada apenas por combatentes profissionais, guerrilheiros, com o povo a aplaudir das bancadas, passou a ser um movimento com pessoas normais como seus participantes-chave. O potencial da luta popular assenta em massas de gente, guiadas por uma nova imaginação e por novos métodos de luta.
O significado do Soweto foi duplo. Primeiro, como já disse, substituiu a crença no poder das armas pela descoberta de um poderio maior, o de um povo organizado enfrentando a opressão. Segundo, o Soweto forjou uma nova unidade – uma unidade mais ampla. O regime do apartheid dividira a sociedade sul-africana em diferentes raças (brancos, indianos, negros) e diferentes tribos (zulus, xhosas, pédis, vendas, etc.) submetendo cada uma delas a um conjunto específico de leis, de modo que, mesmo quando elas se organizavam para reformar ou revogar a lei em questão, elas tinham de o fazer separadamente. Neste contexto, apareceu uma personagem nova, Steve Biko, um líder visionário ao leme de um novo movimento, o Movimento da Consciência Negra.
A mensagem de Biko minou o edifício estatal do apartheid. O negro não é um cor, disse Biko. O negro é uma experiência. Se é oprimido, és negro. Isto era uma mensagem revolucionária – porquê?
O ANC vinha falando de não-racialismo desde a Carta da Liberdade em meados dos anos 1950. Mas o não-racialismo do ANC só tocava a elite política. Os líderes individuais de brancos, indianos e negros aderiram individualmente ao ANC. Mas as pessoas normais ficaram confinadas e presas a uma perspectiva política que se limitava às estreitas fronteiras da raça ou da tribo. Biko forjou uma visão capaz de ultrapassar essas fronteiras.
Por essa altura, deu-se um outro acontecimento. Foi outra lufada de ar fresco. Foi a Intifada palestiniana. O que se chamou Primeira Intifada teve um potencial semelhante ao do Soweto. Como as crianças do Soweto, as crianças palestinianas também deram o peito às balas apenas com pedras nas mãos. Mal vista pelos movimentos de libertação, cada um deles reclamando-se único representante dos oprimidos, a juventude da Intifada fez apelo a uma unidade mais ampla.
Apesar de ter chegado mais de trinta anos depois do Soweto, a Revolução Egípcia faz poderosamente lembrar o Soweto. Isso acontece por duas razões pelo menos.
Adoptar a violência?
Primeiro, como no Soweto de 1976, a Praça Tahrir de 2011 foi um adeus ao namoro de toda uma geração com a violência. A geração de Nasser, e a que se seguiu, optaram pela violência como chave para haver mudanças fundamentais na política e na sociedade. À partida, era uma tendência laica.
Quanto mais Nasser foi esmagando a oposição e justificando esse esmagamento na linguagem do nacionalismo laico, mais a oposição se ia exprimindo em linguagem religiosa. A tendência política mais importante que apelou ao rompimento cirúrgico com o passado, agora, usou a linguagem do Islão radical. O seu principal representante era Said Qutb. Eu interessei-me pelo Islão radical após o 11 de Setembro, quando li o livro mais importante de Said Qutb, Signposts. Fez-me lembrar a linguagem dos políticos radicais da Universidade de Dar-es-Salaam, onde fui professor nos anos 1970.
Said Qutb dizia, na introdução do livro, que o tinha escrito para a vanguarda islamista; dava-me a impressão de estar a ler uma versão do Que fazer? de Lenine. O principal argumento de Said Qutb nesse texto é que é preciso distinguir os amigos dos inimigos, porque com os amigos usa-se a persuasão e com os inimigos usa-se a força. Pensei que estava a ler Mao Zedong em Como resolver correctamente as contradições no seio do povo.
Perguntei a mim próprio: como poderei classificar Said Qutb? Como inscrevendo-se numa tradição linear chamada Islão político? Será que se compreende melhor a história do pensamento arrumando-a em recipientes etiquetados conforme as civilizações – um islâmico, outro hindú, outro confuciano, outro cristão – ou, em alternativa, um europeu, outro asiático, outro africano?
A opção de Said Qutb pela violência política não estaria em consonância com a luta armada dos movimentos de libertação nacional dos anos 1950 e 1960? Não seria a concepção de base de que a luta armada é não só a forma de luta mais eficaz mas também a mais genuína?
Quanto mais lia a distinção de Said Qutb entre Amigos e Inimigos, usando-se a violência com os inimigos e a razão com os amigos, mais eu percebia que tinha de compreender Said Qutb no contexto do seu tempo.
Não há dúvida de que, como todos nós, Said Qutb estava envolvido em conversas com muita gente: estava envolvido em múltiplos debates não apenas com intelectuais islâmicos, contemporâneos ou de gerações anteriores, mas também com intelectuais contendores inspirados por outras formas de pensamento político.
E o enfrentamento mais importante na época era com o marxismo-leninismo, uma ideologia militante laica que influenciou ao mesmo tempo a linguagem de Qutb e as suas formas de organização e de luta. O mais significativo da Praça Tahrir foi ter deixado cair a marca de Said Qutb e o namoro com a violência revolucionária.
A segunda semelhança entre o Soweto e a Praça Tahrir situa-se na questão da unidade. Tal como a luta anti-apartheid na África do Sul tinha reproduzido acriticamente as divisões entre raças e tribos institucionalizadas nas práticas do Estado, também as divisões religiosas se tornaram parte das convenções na política dominante do Egipto.
A Praça Tahrir trouxe uma nova forma de política. Deixou cair a linguagem religiosa na política, mas fê-lo sem por isso optar por um radicalismo laico que banisse totalmente a religião da esfera pública. Nesse sentido, apelou a uma maior tolerância das identidades culturais, que incluísse tanto as tendências laicas como as religiosas. O novo contrato era que, para participar na esfera pública, há que praticar uma política inclusiva e respeitadora dos outros.
Foi uma mudança pela qual se deixou de considerar a identidade religiosa em política, e se deixou de fazer da identidade religiosa uma base para o facciosismo político e a violência sectária. Nos dias que precederam a [revolta da] Praça Tahrir, a violência sectária foi repetidamente desencadeada pelos que estavam no poder, mas sem nenhum antídoto convincente, houve alguma tendência para isso passar para a sociedade. Basta pensar nas violências que houve contra a minoria copta nas semanas que precederam a histórica assembleia da Praça Tahrir.
[A revolta d’] O Soweto obrigou muita gente de todo o mundo a rever as suas opiniões sobre África e os africanos. Antes do Soweto era convencional assumir que a violência era uma segunda natureza dos africanos e que os africanos eram incapazes de viverem juntos em paz.
Antes da Praça Tahrir, e em particular a seguir ao 11 de Setembro, a imagem transmitida pelo discurso oficial e pelos meios de comunicação no Ocidente era determinada pela ideia de que os árabes tinham uma predisposição genética para a violência e para a discriminação contra os que são diferentes. Mas na Praça Tahrir as diferentes gerações e géneros bateram-se e manifestaram-se como dizemos em kiswahili “bega kwa bega” [ombro com ombro]. Foi o que fez gente de pertenças religiosas diferentes.
Que podemos nós aprender com isso?
As novas ideias criam a base para novas unidades e novas formas de luta. A tendência do poder é tentar politizar as contradições culturais que há na sociedade e, então, afirmar que as divisões são algo natural. Para ter êxito, uma nova política precisa de facultar um antídoto, uma prática alternativa que una os que estão divididos pelos modos de governo dominantes.
Antes e depois do Soweto, Steve Biko insistia que a negritude não tinha a ver com a biologia, mas sim com a experiência política. Com isso, ele criou a base ideológica para uma nova unidade, uma unidade anti-racista.
Não tenho conhecimento de algo semelhante a [a ideia de] Steve Biko na Praça Tahrir. Talvez no Egipto houvesse, não um, mas muitos Bikos. Mas acredito que a Praça Tahrir acabou por se tornar um símbolo que alicerça uma nova unidade, a unidade que procura conscientemente desmontar as práticas religiosas sectárias.
No Uganda dos nossos dias, a governança prevalecente procura dividir a população politizando a etnicidade. O mote é: uma tribo, um distrito. Dentro do distrito, um tribalismo administrativo separa os bafuruki [imigrantes] dos que são designados como indígenas do distrito. Como modo de governo, o tribalismo institucionaliza a discriminação oficial contra alguns cidadãos e a favor de outros.
As novas ideias alimentam novas práticas. Com o tempo, até a mais revolucionária das ideias pode tornar-se uma rotina desprovida de sentido. Basta ver-se como nós conseguimos reduzir a prática da democracia a rituais rotineiros.
O que é notável nos acontecimentos que nós conhecemos como “Ida a pé para o trabalho” é que eles vieram na esteira de umas eleições nacionais cujos resultados foram absolutamente decisivos. O que quer que lhe venha a acontecer, a [campanha] “Ida a pé para o trabalho” obriga-nos a repensar a prática da democracia no Uganda.
Desde logo é-se surpreendido pela onde de cinismo, quer de governantes quer de governados. Uma parte cada vez maior da população vê as eleições, não como o momento para fazer opções significativas, mas como o momento para sacar benesses de políticos que, mais do que certo, nunca mais verão até às próximas eleições!
De modo semelhante, uma parte cada vez maior da classe política acaba por pensar nas eleições como um exercício gerido cujo resultado é decidido, não por quem vota, mas por quem controla a contagem dos votos. O que pensar da democracia contemporânea quando uma eleição em que os que estão no poder podem ter o apoio da vasta maioria da população – cerca de 90% no Egipto e cerca de dois terços no Uganda – não nos dá a mínima ideia do nível de insatisfação que há no eleitorado?
Reparem neste facto notável. Apesar do crescimento das universidades e dos think tanks [centros de investigação] por todo o mundo, os investigadores e os consultores têm sido incapazes de prever a maior parte dos acontecimentos importantes da história contemporânea.
Porquê? Foi assim com o Soweto de 1976, foi assim com a queda da União Soviética e foi assim com a revolução egípcia. Em que estado se encontra a nossa capacidade de conhecimento, quando somos capazes de prever uma catástrofe natural – um terramoto, ou mesmo um tsunami – mas não uma mudança política? Parece que a regra é: quanto maior a mudança, menos provável é a hipótese de ela ser prevista.
Penso que o motivo disto é só um. As grandes mudanças na vida social e política requerem um acto de imaginação. Requerem uma ruptura com as rotinas, uma desligamento das convenções. Por isso as ciências sociais, que se focam no estudo das rotinas, dos comportamentos institucionais e repetitivos, são incapazes de prever grandes acontecimentos. É nisto que reside o desafio da classe política do Uganda.
Não será por haver pouca gente envolvida na campanha “Ida a pé para o trabalho” que se poderá negar tratar-se de algo intelectualmente brilhante. Esse brilho assenta na sua simplicidade, na sua capacidade para conferir à mais simples das actividades humanas, caminhar, um importante significado político: a capacidade para dizer não.
Por ironia, muita gente da oposição, e talvez outra tanta no governo, parece considerar a “Ida a pé para o trabalho” como um atalho para a tomada do poder, o que é muito improvável. O significado real da “Ida a pé para o trabalho” é que ela quebrou a influência da rotina. Por isso se nos apresenta como um desafio. Esse desafio está a surgir como uma nova linguagem política, um novo modo de organização, um novo modo de governo.
Daqui, deste meu posto privilegiado, gostaria de vos dar algumas reflexões à guisa de conclusão.
Deveríamos resistir à tentação de vermos a Praça Tahrir – como, antes, o Soweto – como um roteiro a seguir. Em vez disso, olhemos para o Egipto como uma visão, uma visão democrática, tanto o evento como o processo. Lembrem-se de que foram precisas quase duas décadas para que a Revolta do Soweto gerasse o seu fruto democrático na África do Sul. Quanto ao Egipto, a revolução democrática acaba de começar. Ninguém sabe quanto tempo será preciso para institucionalizar o seu fruto.
Hoje, temos de reconhecer que a Praça Tahrir não levou a nenhuma revolução, mas a uma reforma. E isso não é uma coisa má. A lição do Egipto – ao contrário da sua vizinha Líbia – é a força moral da não-violência. Ao contrário da violência, a não-violência não se limita a resistir e a excluir; também opta e inclui, desse modo abrindo novas possibilidades de reforma, possibilidades que pareciam inimagináveis ainda ontem.
O desafio que se coloca hoje à classe política ugandesa não é o de cerrar fileiras para um combate final, como é tendência habitual. O verdadeiro desafio é criar possibilidades de novas políticas, na base de novas associações e novas imaginações. O verdadeiro desafio não é a revolução, mas a reforma. Ainda não está decidido qual dos dois – governo ou oposição – irá encabeçá-la e proporcionar a iniciativa.
Nota do tradutor
[1] “Walk to Work” é uma campanha lançada pela oposição ao governo do Uganda. Consiste, muito simplesmente, em ir para o trabalho a pé, em vez de usar transporte particular ou público, como forma de protesto contra a subida dos preços dos combustíveis e dos alimentos.
Artigo original (em inglês) no jornal ugandês Sunday Monitor. Também disponível no Pambazuka News. Tradução do Passa Palavra.