O trabalho na área cultural é estruturalmente instável e, por esta razão, o trabalhador é forçado a aceitar e não rejeitar projetos e condições de trabalho que profissionalmente não o satisfazem. Por Passa Palavra

Apertando os pontos da cadeia produtiva

Durante a gestão de Gilberto Gil e Juca Ferreira, no Ministério da Cultura, iniciou-se a fomentação de uma cadeia produtiva de uma indústria cultural nacional através do Programa Cultura Viva. Se num primeiro momento nos debruçamos no discurso oficial, nesta parte analisamos dados da pesquisa “Cultura Viva – avaliação do programa arte, educação e cidadania” (2009), realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

Uma pequena nota metodológica. A pesquisa foi feita numa parceria com a Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), que fez a pesquisa de campo com 229 pontos nas regiões Norte e no Nordeste, enquanto o IPEA entrevistou 297 pontos nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. No total, o universo da pesquisa de campo foi de 526 pontos, que possuíam diferentes níveis: 457 pontos de cultura, 36 pontões conveniados ao Ministério da Cultura, 33 pontos de cultura ligados à rede municipal ou estadual.

Em 2009, o Ministério da Cultura apoiou 2.517 pontos e capacitou 7.407 agentes culturais, totalizando o gasto de R$ 119,6 milhões [1]. Segundo a pesquisa, os pontos foram precedidos anteriormente por associações (55%), grupos artísticos (14%), atividades comunitárias (8%) e por pessoas (5%). Os órgãos públicos também aparecem e representam 2,8% dos pontos. As atividades dos pontos de cultura destacam-se nas áreas de música (68%), manifestações populares (61%), audiovisual (58%), teatro (54%), literatura (52%) e artesanato (48%).

Sobre a origem dessas instituições, 28% delas foram criadas entre 1930 e 1980, 35% na década de 1990 e, nos anos 2000, 37%. A situação dos imóveis onde funcionam os pontos revela que 25% são alugados, 20% têm donos, 22% são cedidos por órgão público, 8% resultam de parceria com ONGs, 7% são espaços de instituição de educação básica, 7% são instituições de classe (sindicatos), 4% são cedidos por pessoas físicas e 3% são associados a instituições privadas.

As condições da instalação do ponto foram avaliadas pelo IPEA com a necessidade de “dotar os espaços de recursos com nível de qualidade aceitável em termos genéricos, a partir de padrões mínimos discutidos. Não se trata de ‘burocratizar’ o programa, e sim de criar parâmetros que permitam estabelecer dispêndios aceitáveis em termos de investimentos.”

O programa também foi responsável em iniciar as atividades e na fomentação de novas iniciativas culturais. Levando em conta o universo da pesquisa, em São Paulo, 15 pontos (23%) não realizavam atividades antes do Cultura Viva, em Minas Gerais, 21%, e no Rio de Janeiro, 15%.

A idade média dos coordenadores dos pontos ultrapassa os 40 anos, sendo apenas 21% jovens, e 76% possuem curso superior ou superior incompleto; apenas 17% possuem ensino médio. Ainda sobre a formação destes gestores culturais, 74% disseram ter capacitação na área. No entanto, essa formação incluía desde encontros e reuniões até mestrados. É interessante notar que 89% dos coordenadores ou gestores dos pontos moram no próprio local, sendo esta uma forma de abater o aluguel das contas pessoais.

Os pontos possuem em média 10 trabalhadores, sendo 60% remunerados e 40% voluntários. Na maioria dos pontos (85%) utiliza-se trabalho temporário de terceiros, como o de educadores em 55% dos pontos, serviços de contabilidade em 35%, suporte técnico em 33%, serviços gerais em 22%, consultoria jurídica em 19%, assessoria de imprensa (comunicação e divulgação) em 19% e apoio psicopedagógico em 11%.

O público atendido diretamente pelas atividades dos Pontos de Cultura foi de 124 mil pessoas, sendo 70% de público local. Indiretamente, o público atingido sobe para 1,2 milhão de pessoas. Para os coordenadores, grande parte do público encontrava-se em condição de vulnerabilidade social.

Na dimensão econômica, os pontos dependem do recurso do Ministério da Cultura e, segundo a pesquisa, nenhum deles acessou crédito ou empréstimos de instituições financeiras. Mais da metade dos pontos afirmou que obtinha receitas com venda de artesanato, o resto vendia DVDs ou obtinha receitas através de apresentações musicais. E quando os pontos se articulam com outras instituições, 43% deles tornam-se parceiros de instituições privadas. Segundo o IPEA, isso “reflete suas possibilidades de adquirir autonomia em relação aos recursos de fundo perdido, advindos do ministério”. Diante dos atrasos nos repasses de recursos – apontado como a principal reclamação pela maioria dos coordenadores –, além da dificuldade no pagamento das despesas, os pontos atrasam suas atividades e o público evade, prejudicando a manutenção da programação [2]. Uma crítica recorrente dos coordenadores é à burocracia e nos atrasos do repasse dos pagamentos.

Em síntese, o programa Cultura Viva, determinado pelas ações e formulações da gestão do Ministério da Cultura de Gil e Juca Ferreira, estimulou a criação de uma cadeia produtiva a partir de agentes culturais previamente existentes, injetando recursos para “oxigenar” a produção cultural local. É a transformação do tecido cultural em chão de fábrica, sendo fundamental nesta fase inicial a utilização de subsídios. Segundo a pesquisa do IPEA trata-se de explorar e aprofundar “a capacidade de geração de renda pela própria atividade desenvolvida nos pontos de cultura, mediante remuneração da atividade realizada ou comercialização dos produtos e produções culturais”. Consolida-se e adota-se o discurso de incentivar a busca por outras fontes de recursos como, por exemplo, os novos modelos de negócios, representando assim a transformação da lógica das associações culturais em empresas culturais [3].

Por outro lado, a precariedade do trabalho nesta rede é vista em vários aspectos como a formação difusa dos agentes culturais, a mudança de prazos no repasse dos recursos, a subcontratação de oficineiros, os contratos temporários, a terceirização dos serviços, a ausência de direitos trabalhistas e a utilização de voluntários para cobrir as atividades. Trata-se de um programa de estímulo ao trabalho cultural; uma política pública de cultura que transformou diferentes agentes culturais em profissionais precários, sendo assim um programa de prospecção e profissionalização de iniciativas culturais. A precarização está ainda presente no discurso quando se aplica o termo de “sevirismo”, isto é, da população periférica estar acostumada a “se virar”, sendo esta mentalidade acolhida não como uma denúncia, mas como uma política de Estado.

A quantidade de atendidos e beneficiários no Cultura Viva deve-se à repartição dos recursos. Fez-se muito com pouco. É semelhante à mágica operada pelo Programa Bolsa Família, no qual, com um custo que jamais ultrapassou 1% do PIB, se atingiu 12,7 milhões de beneficiários.

Empreendedores culturais, o ativista dos negócios & o novo espírito do capitalismo

No Brasil e no mundo, nas últimas duas décadas o capitalismo, em sua versão neoliberal, impactou todas as esferas da vida social e, atualmente, passou a prospectar nichos exploráveis economicamente. No âmbito da política cultural testemunha-se essa herança através dos mecanismos de renúncia fiscal – como a Lei Rouanet [4] –, mas também na produção cultural esse percurso é trilhado dentro da “economia criativa”, enquanto uma tendência de um novo modelo de gestão do trabalho, na qual os empreendedores – sejam eles culturais, criativos ou sociais –, passam a ser elementos fundamentais para o crescimento econômico. Um impacto tardio do neoliberalismo, mas com um poder de capilaridade que se coloca diante dos movimentos sociais.

A origem do tipo ideal de “empreendedor cultural” deriva da teorização da indústria cultural para as indústrias criativas. As indústrias criativas abrangem todo o trabalho que desfruta da criatividade, talento ou habilidade individual, o qual se vincula com a propriedade intelectual. Essa indústria é composta pela publicidade, marketing, design, moda, audiovisual, programação, games, etc. Incluem-se assim setores produtivos emergentes. Diversos autores e políticos superestimam a capacidade dessa indústria de serviços da cultura colocando-a como substituta da “indústria pesada”. Trata-se de uma adaptação do discurso de prosperidade econômica tendo em vista a realidade, a qual revela um processo de desindustrialização das economias centrais, e, assim, o crescimento econômico da “sociedade do conhecimento” e dos seus derivados teóricos (“Era da informação”, “pós-fordismo”, “Sociedade em rede”, etc.) dependeria agora cada vez mais dos serviços.

No Brasil, conforme descrito na 4ª parte desta série, destacamos o esforço do governo nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira em modernizar a política pública cultural para prospectar e fomentar as iniciativas de uma indústria criativa com a diferença referente à flexibilização da propriedade intelectual, mas que não chegou a concretizar um caminho dentro dos novos modelos de negócios.

O termo empreendedor, restrito em seu aspecto econômico, como o de agente inovador, foi conceituado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter. Em sua teoria econômica, o empreendedor passa a ter a função de romper as crises cíclicas de estagnação econômica através da inovação. Torna-se assim uma peça chave para o desenvolvimento econômico: “A função de um empreendedor consiste em reformar ou revolucionar o sistema de produção” (1983:181), seja através de uma nova mercadoria, abertura de um novo mercado, nova fonte de fornecimento de matérias-primas e bens ou através de um método novo de organização da indústria.

Nesta concepção, ser proprietário de uma empresa não significa necessariamente ser um empreendedor. Nem todo mundo pode ser um empreendedor, observou Schumpeter, mas apenas uma fração da população poderá sê-lo, pois “não consiste, essencialmente, em inventar algo nem em criar de outro modo as condições que a empresa explora. Consiste em obter êxitos” (1983:181). O empreendedor assume então um papel de ator econômico para o desenvolvimento, cujas tarefas exigem certas características como a de ser “valente”, “corajoso”, “independente”, isto é, ser alguém que não teme os riscos. Mas, ao contrário do que possa parecer, “a interpretação econômica da história não significa que os homens atuam, conscientes ou inconscientes, total ou primordialmente, por motivos econômicos. Pelo contrário, um elemento essencial da teoria e uma de suas mais importantes contribuições está na explicação do papel e da influência dos motivos não econômicos e na análise do modo em que a realidade social se reflete nas psiques individuais.”

Para o empreendedor agir, Schumpeter afirma que não é necessário capital acumulado, mas sim crédito: “diferentemente do referido, não pressupõe a existência de resultados acumulados do desenvolvimento anterior, e por isso pode ser considerado como o único disponível dentro de uma lógica estrita. Esse método de obter dinheiro é a criação de poder de compra pelos bancos […]. É sempre uma questão, não de transformar o poder de compra que já existe em propriedade de alguém, mas a criação de novo poder de compra a partir do nada” (Schumpeter, 1911, p. 53).

Na dimensão do ethos, o autor do best-seller O livro negro do empreendedor (2009), Fernando Trías de Bes, afirma que “empreender é uma forma de se enfrentar o mundo, é uma maneira de entender a vida como a que não todo o mundo se sente confortável.”. O empreendedor que acredita estar neste papel para ser livre, isto é, ele próprio determinar as regras do jogo, é um falso empreendedor, pois “O empreendedor poderia tirar qualquer dia livre. Poderia tirar dias de férias de vez em quando. Mas nunca o faz. O fato de saber que poderia fazer já passa certa sensação de controle e domínio sobre a própria vida, mas a verdade é que o verdadeiro empreendedor geralmente chega à conclusão de que no dia lhe faltam horas para trabalhar”. Desta forma, “um dos motivos mais lamentáveis para empreender que se dão com maior frequência é a busca de um equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional”. Assim, o verdadeiro empreendedor não divide sua vida com os negócios, a sua vida é os negócios. Uma visão instrumental que reflete exatamente o homo economicus do pensamento liberal e neoliberal, no qual o sujeito busca maximizar seus benefícios através de opções racionais dentro do mundo convertido em mercado.

Jacques Antoine Granjon, CEO da Vente-privee.com

Há também, dentro do imaginário social, o tipo ideal dos empreendedores tecnológicos, os quais frequentemente são retratados como cientistas que investem em experimentos em sua própria garagem e, atualmente, estariam encarnados nos jovens geeks que se transformam nos novos mandarins do capitalismo global, com suas empresas de serviços online. Bastaria basicamente uma excepcional idéia na cabeça e trabalho árduo, mas há quem coloque outros ingredientes na receita para o sucesso: a ideologia da pequena e próspera empresa, gerida pelo empreendedor genial elevado ao patamar máximo da civilização como um herói espartano do reino dos negócios, convertida em modelo a ser seguido. Trata-se exatamente do tipo ideal do empresário schumpeteriano.

A transposição do empreendedorismo para a área cultural é assumida no cenário brasileiro através de um processo orientado pela valorização da cultura em seu aspecto econômico e como parte de “integração cidadã”, em que caberia dar acesso ao mercado de consumo das artes; um processo muito semelhante ao que ocorre com o Programa Bolsa Família e esta integração social pelo consumo. No livro Emprendizajes en cultura (2010), o autor e consultor Jaron Rowan descreve a passagem exata do discurso de subsídio para a cultura como recurso, uma lógica na Espanha que foi sendo paulatinamente implementada por um processo de introdução da economia na cultura, como afirmou a subsecretaria do Ministério da Cultura do país: “Nunca mais cultura versus economia. A partir de agora a cultura de mãos dadas com a economia”. Essa é mesma visão do gestor cultural do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) – Goiás, Décio Coutinho, “[…] a cultura pode trabalhar junto com a economia, agregando valor cultural a um produto não-cultural […]”, mas, na sua opinião, “ainda não há um entendimento dentro do próprio Ministério da Cultura, do governo do Brasil e dos governos estaduais e municipais, da indústria criativa, dos territórios criativos, das cidades criativas, como eixo central de desenvolvimento.”

Para Coutinho, “O empreendedorismo não está ligado só ao lado empresarial, do lucro financeiro, pode ser também social, ligado a ONGs, a empresas, a associações, a cooperativas, a coletivos” e deve ser entendido como “uma atitude de transformação positiva, de comportamento, de ousadia, de criatividade e de inovação. O empreendedorismo cultural é gente trazendo para a cultura esse tipo de atitude”, citando como exemplo “O modelo do Fora do Eixo é uma rede de referência, a Abrafin também […].”, uma vez que “A gente participou da criação da Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin). Estive também no dia da fundação do Sistema Fora do Eixo, que hoje é um dos coletivos mais interessantes do país. […] O desafio é conseguir fazer o encontro dessas pessoas, e fazer com que elas se engajem”. Do individual para o coletivo, o empreendedor schumpeteriano adapta-se a uma nova realidade.

Milton Friedman

Hoje, a disputa latente na indústria criativa é de saber se a extração de renda deve ser através da propriedade intelectual ou através das licenças abertas – como a Creative Commons e o open business (novos modelos de negócios). Ainda dentro desta última posição, oscila-se entre a adoção dos novos modelos de negócios pelos oligopólios das transnacionais da cultura e a abertura de portas para o reino dourado da economia social, da constituição de microempresas e trabalhadores autônomos. Neste caso, criar-se-ia um “ecossistema” de microempresas de “produtores independentes”, compostas por poucos trabalhadores, mas que unidas operariam como clusters, isto é, fornecedores de trabalho qualificado e fundamentalmente criativo para o mercado. Uma solução não diferente daquela proposta por Milton Friedman, para quem as pequenas unidades independentes sem acumulação oligopolística implicariam na formação de um livre mercado.

O trabalho na área cultural é estruturalmente instável e, por esta razão, o trabalhador é forçado a aceitar e não rejeitar projetos e condições de trabalho que profissionalmente não o satisfazem; a necessidade econômica muitas vezes não lhe dá outra opção. Neste ponto é que se revela a outra face da moeda, de um lado, a autonomia e uma suposta autogestão e, de outro, a dependência e a auto-exploração.

A disseminação de “coletivos culturais” com “projetos coletivos” que buscam “sustentabilidade” para atuar em “redes” de forma “orgânica” é a peça chave dos mecanismos de estruturação desta cadeia produtiva da economia criativa, mas não só, pois implica uma nova ética, um novo espírito do capitalismo. Para Coutinho, a “horizontalização da dinâmica cultural” traz “pavor” para as empresas tradicionais “fechadas, quadradas, brancas e elitistas”, as quais “tendem a sofrer muito com esse processo”, mas que “Com o tempo, elas não resistem. Ou mudam, ou mudam.”

A maior parte dos empreendedores culturais não o é por optar pela receita da ideologia liberal, mas sim por um resultado da reestruturação produtiva decorrente das lutas dos anos 60 e 70. Uma nova ética que restabelece os vínculos entre trabalhadores e empresa, abalados ao final do fordismo. As empresas passaram a sustentar a participação dos trabalhadores, o modelo toyotista, e, para falar em capital nacional, a Odebrecht mostra esse estímulo em sua dinâmica interna.

A horizontalização da produção não implica na autogestão da mesma, pelo contrário, é possível manter uma classe gestorial e dirigente do processo. Ainda que se liquidem as divisões internas, a competição no mercado capitalista irá impor o conflito entre trabalhadores de uma empresa contra outra. Na Bolívia os conflitos entre cooperativas de mineiros financiados por uma e outra empresa não são incomuns.

Neste modelo, a precarização torna-se a regra e o trabalhador é cercado pela incerteza, insegurança e, principalmente, a iminência do desemprego. A flexibilização das relações de trabalho atomiza o trabalhador, o qual passa a ser “empresário de si”, precisando constantemente investir em sua própria formação, colocando assim o capital humano no centro dos recursos da produção. Muitos destes “coletivos”, cujas funções revelam as aptidões e os talentos dos trabalhadores, reinventam um novo espírito do capitalismo, o qual incentiva a entrega total para o trabalho como realização pessoal, de ser feliz – ou pós-rancor – e, principalmente, de ser criativo. Uma época em que a criatividade é um mandamento moral.

Os iludidos e as ilusões

Afinal de contas, como é possível que um número tão grande de pessoas, inteligentes como as pessoas no geral são, se tivesse deixado iludir e mobilizar num enquadramento que tinha como finalidade exclusiva capitalizar a sua mobilização, no sentido literal da palavra — transformá-la em capital. Não se trata aqui de uma questão de idéias ou de linhas políticas com que estejamos ou possamos estar em desacordo. Com quaisquer idéias e quaisquer políticas, as pessoas não gostam de ser tomadas pelo que não são e de serem usadas para outros fins.

Por Arnaldo Branco

Como é possível que pessoas instruídas e experientes citem Foucault e Deleuze e Negri e outros tantos a propósito de um negócio? É certo que os citam a propósito de tudo, mas ainda assim…

É que em geral na vida, tanto na vida privada como na política, nós não somos enganados. Deixamo-nos enganar. O vigarista, o burlão, o mero mentiroso enganam-nos porque dizem algo em que nós queremos acreditar. Neste caso dizem a intelectuais e a profissionais das novas tecnologias eletrônicas:
– que basta a cabeça e já não são necessárias as mãos, quando muito as pontinhas dos dedos no teclado;
– que a realidade supletiva do virtual cobriu a outra a tal ponto que ela já não existe;
– que é possível brincar com o fogo e usar empresas de negócios para fins políticos sem ser usado por elas para finalidades empresariais.

O Fora do Eixo conseguiu capitalizar as Marchas — aquelas que hegemonizou — porque atuou num ambiente envolvido numa espessa teia de ilusões. O Fora do Eixo de pouco ou nada nos importa enquanto empresa singular, e esperamos que neste ponto os leitores já nos tenham compreendido. O problema é que se não for o Fora do Eixo, continuando os iludidos a iludir-se, outra empresa aparecerá para capitalizar e rentabilizar os movimentos.

Foi por termos rompido as ilusões que nos acusaram de tantas coisas, de termos orientações políticas que nenhum de nós partilha, de fazermos o que não fazemos e de não fazermos o que fazemos. Fomos acusados de tudo isto porque quem tem necessidade de ver o seu lado de uma dada maneira precisa também de acreditar que o outro lado é o retrato negativo do seu.

Por Pieter Bruegel, o Velho

Primeiro ficamos perplexos por nos acusarem de coisas que bastaria uma rápida passagem de olhos pelos artigos do site para constatar que são falsas. Mas depois entendemos. Para quê os críticos perderiam tempo com uma vista mínima se já antecipadamente julgavam saber o que nós éramos? Se não somos aquilo que eles mesmos julgam ser, então só podemos ser o inverso! Daí resultou o curioso ambiente de equívocos de que se rodearam os nossos opositores neste debate.

Nós, pelo nosso lado, não deixamos que se apodere de nós a mais nefasta das ilusões — a de que bastam as palavras para dissipar as ilusões dos outros. Quem quer — quer mesmo — deixar-se enganar tem necessidade dos enganos e não pode viver sem eles. Não está nas nossas possibilidades, usando meras palavras, romper aquela necessidade. Para isso é necessário romper o tecido social que torna os enganos imprescindíveis.

Notas

[1] Isso corresponde à utilização de 85,6% do orçamento, sendo o total de R$ 139,6 milhões autorizados. Em comparação entre 2005 e 2009, os recursos aumentaram em 72%.

[2] Por conta dos atrasos nos recursos houve conflito entre os jovens beneficiários de bolsas e gestores dos Pontos de Cultura, uma vez que as bolsas passaram a compor a renda familiar.

[3] Vide o exemplo do Tecnobrega no Pará, apresentado na 3ª parte desta série.

[4] Devido à análise existente a respeito da responsabilidade social e dos impactos da renúncia fiscal, sendo uma discussão que ocorre também internamente no Ministério da Cultura, optamos por analisar o caminho da economia criativa.

Bibliografia

Décio Coutinho, entrevista realizada por Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn, no dia 14 de junho de 2010, em São Paulo, disponível em Produção Cultural.

IPEA, Cultura Viva – avaliação do programa arte, educação e cidadania, 2009.

ROWAN, Jaron. Emprendizaje en Cultura, Traficantes de Sueños, 2010.

SCHUMPETER, Joseph A. The Theory of Economic Development, Transaction Publishers, Londres, 1974.

SCHUMPETER, Joseph A. (1911). A Teoria do Desenvolvimento Econômico. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, socialismo y democracia. Ediciones Folio, Barcelona, 1983.

TRIAS DE BES, F. O livro negro do empreendedor. Best Seller, São Paulo, 2009.

2 COMENTÁRIOS

  1. Olá,

    Para além da extensa, fundamental e importante pesquisa dos dados econômicos e políticas estatais e empresariais que desvelam as condições de produção hoje vigentes no setor cultural do Brasil, resgato uma brevíssima citação de um livro – citação esta que busca expor o posicionamento daqueles que consideram desnecessária e sem potência a crítica à indústria cultural.

    Lembrando dos argumentos de rechaço que foram apresentados pelos que não gostaram da série de artigos do colectivo Passa Palavra, assusta a semelhança dos termos empregados:

    “Acusada de não ter legitimidade e provir de um horizonte fora de moda, a crítica à indústria cultural tornou-se para muitos denuncismo rancoroso e espécie de discurso depressivo, metodologicamente desprovido dos meios para compreender as benesses da técnica e as contradições da sociedade, a cultura no plural e as mediações na comunicação” (p. 10, do livro de Francisco Rudiger – Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural: comunicação e teoria crítica da sociedade, 2004).

    Sei que o Theodor Adorno é por demais contestado por diversos setores e organizações de esquerda. Não acho que seja o caso, de maneira alguma, de defender com unhas e dentes as suas reflexões e propostas de interpretação e crítica social.

    Tirante tudo isso, e ressaltando que também tenho cá minha diferenças sim com Adorno e demais teóricos da chamada Escola de Frankfurt, não deixa de chamar – e muito! – a atenção trecho citado no início deste comentário…

    Abraços.

  2. galera FdE, na boa, conhecendo o que eu já conheço do circuito ( e é mta coisa, não vou ficar me “debatendo” tentando provar veracidade/conteúdo), pós-rancor é esse conselho que lhes dou: – babies, dêem graças a “deus” (ou a qualquer santo/ entidade/ símbolo ou rótulo que acreditam) ao fato do PP não querer ir para o debate “presencial” com vcs- além de já ter ficado bem nítido (ou não?) que esse debate seria apenas mais uma “punhetagem” fora do eixo para exaltar sua “magnificência” em prol da “participação” e “debate público” da “nova juventude” que “sonha” e “age” no país, se ele ocorresse, vcs seriam moídos. na boa… seria tragi-cômico. vai por essa: eu sentiria vergonha alheia. que tal antes, dar um “upgrade” na reflexão e no senso de realidade partindo do princípio que sim, temos uma história social muito mais complexa que deve ser considerada???

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here