Por Passa Palavra
A relação entre futebol e política é evidente e de uma maneira geral esse esporte foi usado amplamente para os mais diversos interesses. Isto se dá, muito provavelmente, pelo inegável potencial de mobilização popular que o futebol tem manifestado por suas torcidas, por um lado; e pelo crescente poder econômico que os clubes vêm acumulando, por outro. Cabe então analisar qual é a ação política realizada por estas torcidas e quais as contradições desse processo.
A torcida de futebol é percebida como espaço de dissolução das classes, nas arquibancadas somos todos iguais, unidos pelas mesmas cores. Evidentemente existem diferenciações dentro dos estádios, afinal alguns setores são mais caros que os outros e, por vezes, uma ou outra polêmica divide os torcedores. Tal diferenciação chega a ser enxergada pelos próprios torcedores, causando um certo desconforto, mas nada que ponha em cheque o sentimento de união em torno de algo maior: o time. O fator de união entre os que estão ali presentes se dá com o time e não com a situação produtiva aparentemente, rompendo todas as barreiras da fragmentação imposta na sociedade atual.
Digo aparentemente porque cada vez mais o ócio e a cultura se transformam em mercadorias, incluindo o futebol e todas as outras formas de lazer no âmbito da produção capitalista. Além de todas as contradições já impostas ao futebol, cada dia essa nova característica ganha força e se hegemoniza. Os clubes se transformam em empresas e os torcedores que têm influência nos rumos do time são, na maioria dos casos, um pequeno grupo de empresários, isso quando o time não se torna totalmente apêndice de uma outra empresa qualquer. Portanto, o que era um equívoco falar há cerca de duas décadas atrás, “o torcedor é um mero consumidor”, se torna cada vez mais real. Isso influencia completamente na composição das torcidas e nos seus comportamentos, já que o consumidor vale pelo seu poder de compra, passando os clubes por um processo de elitização das torcidas, a ponto de eliminar dos estádios as gerais – espaços das arquibancadas vendidos a preços reduzidos. Transformam os estádios em shopping centers, cobram preços absurdos pelos ingressos e afastam assim as camadas mais populares das arquibancadas, para pôr no lugar pessoas que podem consumir futebol e, desta forma, ter uma postura “menos apaixonada”, deixando de exigir a participação na gestão do clube através dos gritos e da força para participarem de forma pacífica, mediada pelo poder do dinheiro, ou melhor, participando somente de forma ilusória.
Por outro lado, as torcidas perdem a ligação com o espaço geográfico de forma cada vez mais intensa. Essa ligação com o espaço geográfico, que determina a origem de diversos clubes de futebol, começa a se perder a partir de meados do século passado, com a criação da cultura de massa, que impôs a criação de torcidas nacionais a custo da eliminação de torcidas menores e de times de regiões periféricas sob a ótica do desenvolvimento capitalista. No Brasil isso é ainda mais verdadeiro, perceptível nos grandes times do Rio de Janeiro e de São Paulo, que possuem torcidas em todo território, às vezes até maior do que a dos times locais. Já na virada do século passado para o atual, com a efetivação da globalização, ou melhor dizendo, com a transformação dos clubes de futebol e empresas transnacionais, o futebol avançou ainda mais no processo de ruptura das fronteiras, sejam elas locais, nacionais ou continentais. Assim, já se é possível torcer por um time de um outro país que não o seu, não pela identidade que formou com ele, mas pela imposição dos meios de comunicação. Entretanto, é só olhar a localização dos estádios em Londres ou Buenos Aires e analisar a composição das torcidas dos clubes de menor expressão econômica-midiática, e ver que os bairros ainda exercem influência direta na formação das mesmas.
Mas esses processos de ressignificação (ou eliminação) das identidades das torcidas ainda está longe de se efetivar. Mesmo os gritos que exaltam determinada condição social do torcedor, como é o caso da torcida do Corinthians (“é festa na favela”), são afirmados enquanto discurso identitário, tentando expressar que todos os corinthianos são favelados, o que não condiz com a realidade, mas reforça os laços entre aqueles que vestem as mesmas cores. Vale destacar aqui a contraposição feita entre Corinthians e São Paulo, pois os são paulinos se identificam enquanto elite e os corinthianos enquanto povo (oposição explicada em parte pelas origens dos times). Mas essa dualidade vale para outras rivalidades regionais existentes no Brasil e, provavelmente, no mundo. Assim, os torcedores anulam as diferenças internas da sua própria torcida e transferem este conflito para o âmbito externo: o outro time é o inimigo, especificamente o seu torcedor. As diferenças entre as torcidas, portanto, por mais que expressem de alguma forma uma parte da realidade, não explicam o todo, e se transformam mais em ideologias para justificar a rivalidade do que como explicação real para o conflito.
Estas identidades construídas de forma artificial se expressam com maior intensidade nas ações violentas das torcidas organizadas, sendo fator de orgulho quando elas se enfrentam. É um mérito ter acuado a torcida de outro time, roubado suas bandeiras, seus instrumentos, ter mandando meia dúzia para hospitais e, quem sabe, ter assassinado um suposto adversário.
Essa violência, geralmente, é realizada por membros das classes mais populares, mas nem sempre, já que as torcidas organizadas são divididas em facções (comandos, batalhões, brigadas, etc.), quase sempre segmentadas por bairros, onde alguns pouquíssimos grupos chegam a ser compostos por sujeitos das classes dominantes. O alvo, por sua vez, são os membros e patrimônio das outras torcidas, quase sempre proletários também, ganhando conotação de classe, pelo menos nos discursos, quando são times de torcidas de origens sociais diferentes.
Mas essa violência se expressa também contra os próprios clubes, quando esses não abrem espaço para que as torcidas interfiram na gestão do mesmo; ou contra a polícia, instituição que cada dia mais intensifica as ações contra as torcidas organizadas. E a medida que elas se tornam mais proletárias e, portanto, populares, mais agressiva é a resposta. Por último, a violência contra o patrimônio é a menor, e se expressa em pichações em muros ou depredações de ônibus.
Evidentemente esta violência entre trabalhadores não é uma exclusividade das torcidas organizadas de futebol, sendo presente nos diversos coletivos urbanos (principalmente nos meios juvenis), a diferença é que no caso do futebol esses confrontos ganham dimensões extraordinárias devido a quantidade de pessoas envolvidas e por acontecer ali, bem em frente dos espetáculos midiáticos e, portanto, não mais somente nas periferias das cidades. Esses confrontos entre torcidas organizadas foram amplamente combatidos através dos meios de comunicação, chegando a haver, no Brasil, um movimento para banir as torcidas organizadas dos estádios. Como o apaziguamento das torcidas – ou pelo menos o desvio dos confrontos para regiões periféricas dos estádios – diminuiu bastante o interesse dos espectadores pelo futebol, as torcidas hoje passaram a ser mostradas de forma contraditória, pois a exploração da violência enquanto espetáculo continua, principalmente agora na onda de terror que se impõe à população, mas boa parte das transmissões são dedicadas a expor os gritos que vêm das arquibancadas, isso tudo porque a saúde do negócio é ainda mais importante.
Cabe apenas destacar que esta violência não se volta apenas contra torcedores de outros times, mas dentro da torcida de um mesmo time são proibidas cores identificadas com o time adversário. Mesmo a população em volta dos estádios – tanto em dias de jogos, quanto nos de compra de ingresso – está sujeita a estas ações. E há casos de brigas entre torcidas organizadas do mesmo time, e esses casos, apesar de raros, são os mais emblemáticos da penetração da luta de classes nas arquibancadas, já que esses confrontos se dão pela formação de torcidas por frações diferentes da classe trabalhadora, ou até mesmo de classes antagônicas; ou como é cada vez mais comum, por parte dos torcedores terem comportamentos não aceitos pela maioria, como é o caso das manifestações de racismo que sempre dividem torcedores que carregam a mesma bandeira. Portanto, é incorreto afirmar que há torcidas completamente racistas, mesmo que a maioria dos seus torcedores compartilhem com esse tipo de sentimento; por outro lado, há torcidas onde são completamente intoleráveis expressões do racismo, e isso acontece não por causa da ação político-conscientizadora das torcidas organizadas, mas pela composição étnico-racial dos torcedores em geral, pois da mesma forma que muitas classes podem conviver aparentemente unidas nas arquibancadas, muitas cores compartilham do mesmo sentimento, para além daqueles expressas nos uniformes.
As torcidas organizadas são também organizações coletivas, rompem com a individualização de nossa sociedade e surgem como iniciativa de participação na vida do time. Para a maioria dos seus componentes, formada por proletários das camadas mais populares, quase todos jovens, é essa a primeira e única experiência organizativa. Na medida em que o torcedor é colocado como consumidor do espetáculo do futebol – que deve apoiar o time em todas as situações, comprar os produtos do time, pagar o ingresso sem questionar – as torcidas organizadas podem ser encaradas como uma ruptura com este padrão. Quando surgem, inclusive, a grande maioria segue a estrutura associativa, com participação ampla dos seus sócios. Elas querem influir nos rumos do time, nos preços do ingresso, nas posturas dos dirigentes, técnicos e jogadores, são então uma estrutura de participação coletiva e reivindicação política na sociedade, tentam tomar o controle de algo que lhes parece fundamental em suas vidas: o futebol.
É verdade: quando essas torcidas crescem, e passam a interferir na dinâmica do clube, entram em um processo de profissionalização, que significa assumir toda a racionalidade instrumental típica de uma empresa capitalista e, portanto, ao gerar hierarquias internas bastante rígidas, deixam de ser espaços de aprendizado organizativo para os seus componentes, ou pelo menos para a maioria deles. Mas mesmo assim, nunca é uma transição tranqüila e há casos de torcidas que foram nesse caminho e regressaram (após conflitos internos retornaram a uma situação de maior participação dos seus componentes). Esse processo de profissionalização acontece por dois motivos. O primeiro é que a torcida passa a gerar renda com a venda de materiais e com a realização de atividades recreativas – fora o fato de algumas receberem recursos dos dirigentes dos seus times – necessitando assim de uma estrutura administrativa; por outro lado, ao ganharem visibilidade, precisam eleger representantes ou donos, para que as outras instituições da sociedade tenham a quem se dirigir (ou corromper, quando for necessário).
Evidentemente isto não quer dizer que as torcidas organizadas são espaços de formação de uma consciência de classe proletária, mas mostra que há uma contradição interna bastante latente. A torcida do Zenit da Rússia, por exemplo, considera que nenhum jogador negro deve jogar no time, e assim impede através da hostilização violenta a participação de qualquer um que tenha a pele escura e traços africanos. Na Europa, o caso mais característico é o da “Irriducibili Lazio” que tem entre seus gritos saudações a Mussolini e a canção “Facetta Nera”. Mas também dentro das arquibancadas do Lazio há torcedores que negam e combatem essa postura. Por outro lado, mas ainda na Itália, existe uma politização de esquerda, por vezes organizadas diretamente para combater o racismo e o fascismo, chegando a formar organizações comunistas, como é o caso da torcida do Livorno, que leva bandeiras com imagens de Che Guevara e Antonio Gramsci, além de cantar “Bandiera Rossa” e preencher as arquibancadas com cânticos revolucionários e bandeiras vermelhas. O preço, claro, foi descer para a segunda divisão do campeonato italiano… Por vezes estas duas torcidas entraram em confronto físico direto.
Sem querer entrar na composição das torcidas, mas explicitando um caso emblemático de uso do futebol para fins nitidamente políticos, podemos citar o caso do Real Madrid, que durante a Guerra Civil Espanhola foi usado como instrumento de propaganda ideológica do regime fascista, pois o clube mais vencedor do país até então, o Barcelona, era o time dos catalães que lutavam contra a unificação autoritária do país e, ao mesmo tempo, levantavam a bandeira do comunismo. E essa rivalidade é presente até os dias atuais. Isso sem falar nos casos emblemáticos em Copas do Mundo, onde as seleções cansaram de ser usadas como instrumentos de regimes fascistas e/ou autoritários.
Vale destacar as tentativas de organização política de esquerda por parte das torcidas organizadas no Brasil, com destaque particular para a torcida do Corinthians, a “Gaviões da Fiel”, que desde sua fundação tem como marca uma forte atuação política, inicialmente na luta contra a “ditadura” de Wadih Elu, e 15 anos depois na luta pelas diretas já. Nos últimos anos, graças a um grupo que já ocupou sua diretoria, busca um trabalho com movimentos sociais, participando de articulações e ações com a Via Campesina, compondo o bloco “unidos da lona preta”, apoiando as mobilizações contra o aumento da passagem em 2006 e mantendo uma rádio livre on-line.
Cabe alertar que este grupo da Gaviões da Fiel está hoje longe da diretoria da torcida e se organiza internamente no auto-denominado Movimento Rua São Jorge, que realizou um seminário com o objetivo de refletir qual o papel social da torcida, que contava entre os debatedores convidados representantes do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Acenam desta maneira com uma ação política radical de esquerda com movimentos transformadores, por vezes buscando uma maior integração com as torcidas rivais; porém, convive com a enorme contradição que é a retomada dos gritos de incentivo à violência (ausentes na Gaviões desde os anos 90) por entenderem que estes representam a contestação principalmente à atual diretoria.
Um exemplo menor, mas já bem conhecido, é o da torcida do Ferroviário do Ceará. Considerado o terceiro time da capital do seu estado, com torcida significativamente menor que a dos outros dois primeiros, o Ferroviário é um time de origem operária que possui uma torcida organizada, a Ultra Resistência Coral, assumidamente anti-capitalista, que leva como lema essas duas frases: “Nem guerra entre torcidas, nem paz entre classes” e “Nada diminui nossa paixão incendiária. Ferroviário, orgulho da classe operária”. A torcida, assim, nega-se a se confrontar com outras e direciona suas forças contra aqueles que realmente merecem.
Resta o desafio àqueles que vêem aí um campo fértil para a transformação social, que é o de lidar com a contradição sempre presente nas organizações populares dos trabalhadores (seja elas para fins explicitamente políticos ou não), que ao mesmo tempo que reafirma o capitalismo, questiona-o. Se, portanto, a transformação dos times de futebol em empresas, e dos torcedores em consumidores, tende a diminuir os conflitos entre as torcidas de futebol, a transformação de alguns desses mesmos clubes em transnacionais pode levar de uma vez por todas à destruição da identidade dos torcedores com os seus clubes. E as torcidas organizadas vão ter que identificar seus verdadeiros inimigos, ou deixar de existir enquanto tal.
Fontes Consultadas:
Blog do Pulguinha: http://blogpulguinha.blogspot.com/
Resistência Coral: http://br.geocities.com/resistenciacoral/
Blog do Kadj Oman: http://manihot.wordpress.com/
Site da Gaviões da Fiel: http://www.gavioes.com.br/
Trabalho de Graduação Individual de Danilo H. V. Cajazeira, disponível em: http://www.4shared.com/file/101060888/22b819c5/Geografia_s__do_futebol_-_Danilo_H_V_Cajazeira.html.
Muito bacana o texto, era torcedor do Corinthians, mas como ele virou uma empresa perdi o gosto pelo futebol “televisivo”, preferindo jogar uma pelada com os amigos.
Muito interessante refletirmos as contradições e as possibilidades de evidenciar a luta de classes partindo de algo tão “popular” que é o Futebol.
Abraço, boas lutas e espero as próximas edições.
“Nem guerra entre torcidas, nem paz entre classes”
é emblemático o reflexo de nossa era de permissivo neo-liberalismo pós-moderno nos futebol;
os clubes grandes há mto já estão elitizando o espaço dos estádios com pequenas alterações no funcionamento das coisas. mudanças ordinárias, na venda e no preço de ingresso, nos sistemas de segurança e policiamento, na instalação de camarotes, nas franquias de lanchonetes, linhas de ônibus que atendem os estádios em horário de jogo, etc etc etc.
é triste ver que o sistema é copiado inclusive pelos times menores. estes, por sinal, triturados pelo massacrante poder dos grandes, estão se aproximando mais cada vez mais do amadorismo. daí talvez saia uma boa lição, como a do Ferroviário.
Muito bom o texto, muito importante essa série sobre futebol e a política. Primeiro porque temos de analisar as coisas em sua totalidade, não separando a cultura da ação política. O futebol têm uma história e uma dimensão popular que realmente merece mais dimensão nas discussões. Digo isso porque na cidade onde vivo, Goiânia, é iminente o conflito entre as torcidas do Vila Nova e Goiás Futebol Clube. O número de mortes e conflitos é assustador, e mais assustador ainda é a maneira repressiva com que o poder público lida com os/as torcedores/as organizados/as.
Acredito que as torcidas são um campo privilegiado para um direcionamento político, pela sua dimensão e composição social.
Ferroviário tá ai como um excelente exemplo de como tá acirrada a luta de classes…
Gosto do texto do colega, e como um apaixonado pelo futebol, futebol essência, futebol arte, futebol em minha opinião social e político. Ao mesmo tempo é emblemático pensar o futebol hoje? Torcidas desorganizadas, empresas, interesses, cidadãos, capitalismo… O futebol virou uma caixinha de gerar interesses capitalistas, gerar lucros, lucros muitas das vezes desconhecidos das grandes torcidas organizadas, apaixonadas, e muita das vezes cooptadas pelas diretorias dessas mesmas empresas (clubes). Por outro lado, existem exemplos: Ferroviário (Ceara), Livorno (Itália), que de alguma forma furam as barreiras impostas pelo capitalismo (marqueteiro) do nosso novo futebol Mídia S/A. Parabéns pela iniciativa, conversar sobre futebol, é conversar sobre política também.
Wilq Vicente,
Corintiano.
Excelente o texto! Estou escrevendo um texto sobre os termos de guerra usados no futebol, como artiheiro, matador, ataque, confronto… Acredito que algumas organizadas exarcebam o objetivo de torcer e passam a ter uma visão totalitarista. Claro que há diversos fatores para a violência entre as torcidas, mas acho que a linguagem usada no futebol por vezes alimenta uma certa animosidade entre os torcedores. Muito bom descobrir o site passapalavra. Eu não conhecia mas agora já adicionei aos favoritos! Parabéns pelo texto.