A greve vem colocando em cena o choque frontal de dois modelos sindicaisPor João Alberto da Costa Pinto [*]

Com o processo de contratações dos últimos anos, milhares de novos professores ingressaram por concursos públicos de provas e títulos nas universidades federais. A exigência do título de doutor tem sido majoritária nesses concursos e hoje aproximadamente 70% do corpo docente é composto por professores doutores. Com o processo de expansão promovido pelo programa REUNI [1], nos últimos cinco anos mais de vinte mil professores ingressaram nas Universidades Federais, sendo a grande maioria portadora do título de doutor. Com o REUNI e com esse processo vertiginoso de contratações, os governos Lula e Dilma mostraram ao país a necessidade de se definir os novos fundamentos estruturais das condições gerais de produção capitalista no Brasil. As universidades federais nesse processo definem-se como elemento-chave. Investir nessa instituição capitalista fundamental é garantir os alicerces da reprodução ampliada do capital, tanto na formação e qualificação da força de trabalho do país, como na garantia do processo de reprodução científico-tecnológica do capital [2].


A expansão física das universidades federais para o interior do país ampliou imensamente as condições gerais de produção capitalista. Essa interiorização garantirá por várias décadas os fundamentos conectores da integração produtiva do país, porque, ao contrário da maioria das faculdades e universidades particulares que pululam como “fábricas caça-níqueis” de diplomas em qualquer cidadezinha do interior, a interiorização das universidades federais significa garantia de expansão tecnológica e formação de mão de obra de alta qualificação. Se as “fábricas caça-níqueis” agregam baixo valor a uma mão de obra que atenderá fundamentalmente o setor de serviços, as universidades federais agregam um alto valor à qualificação da mão de obra que se demarcará institucionalmente junto à produção industrial, assim como à gestão das instituições capitalistas fundamentais (empresas transnacionalizadas, órgãos do poder público e ONGs). A universidade pública deve ser defendida não porque é pública, mas porque é a melhor instituição capitalista na reprodução ampliada de alto valor tecnológico. A universidade pública é o vértice da reprodução e realização da mais-valia relativa, enquanto as “fábricas caça-níqueis” garantem os qualificadores formais de uma força de trabalho perspectivada em níveis produtivos de baixo valor tecnológico, isto é, em níveis de mais-valia absoluta[3]. Defender a universidade pública é defender o êxito de um projeto capitalista de excelência para o país. Nesse sentido, a luta dos professores nesta greve é pela manutenção exitosa do projeto capitalista que os governos Lula-Dilma colocaram em movimento.

Há quase três meses o país assiste a uma das mais impressionantes greves já realizadas pelos professores das universidades federais. 58 das 59 universidades foram atingidas pela greve. Como entender isso? Como explicar que um governo socialdemocrata que agrega em si forças políticas tradicionais no campo da esquerda institucional (PT, PCdoB e PDT, além do PMDB) não consiga minimamente levar a cabo um processo de diálogo com o movimento grevista, e que nos últimos dias volte a fazer do Proifes, uma federação sindical irrelevante, o seu principal interlocutor? O que é, afinal, essa obscuridade institucional chamada Proifes?

O Proifes é uma federação sindical nascida com o processo de expansão das Universidades Federais. A sua composição política é oriunda de quadros associados aos mesmos partidos tradicionais da esquerda capitalista que atualmente governa o país, principalmente o PT e o PCdoB, e com vínculos junto a duas das principais centrais sindicais, a CUT (Central Única dos Trabalhadores) petista e a “comunista” CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil) do PCdoB. Das 59 Universidades Federais, o Proifes é o representante sindical em apenas sete delas. Se o Andes-SN (vinculado à Conlutas, central sindical da esquerda capitalista de oposição ao atual governo, centrada por um espectro partidário composto pelo PSTU e frações do PSol) representa um amplíssimo marco sindical no magistério público em todos os seus níveis (federal, estadual, municipal e particular), o Proifes tem como vocação institucional o magistério superior das Universidades Federais; aliás, nasceu em 2004 como “parte derrotada” nas eleições para a direção do Andes-SN. O grupo derrotado nessas eleições organizou nesse mesmo ano a fundação do Proifes.

A greve vem colocando em cena o choque frontal de dois modelos sindicais. O Andes-SN iniciou a greve em 17 de maio e o Proifes, contrário a isso, só se viu em greve quase um mês depois, no dia 15 de junho. Nessa última semana vem se organizando autocraticamente pelo fim da greve, termo esse que vem afrontando dezenas de milhares de professores em greve, que vêm se decidindo pela continuidade da mesma através de assembleias realizadas em todas as universidades federais. O Proifes “entrou” em greve num momento em que 40 universidades já estavam paralisadas e agora, através de manobras “consultivas”, organiza junto com o governo o “fim” da greve. Se o país sempre teve tradição de sindicatos pelegos, o Proifes ultrapassa essa tradição em escala institucional nunca antes vista. Nunca houve na história sindical do Brasil sindicato pelego como o Proifes. Penso que isso não é uma sentença meramente retórica, as práticas institucionais dos últimos dias corroboram com cristalina evidência tal termo. Mas como explicar uma federação sindical tão irrelevante em práticas assim? Talvez pela sua própria irrelevância institucional é que se possa entender o porquê desse grupo obscuro movimentar-se com tanta tranquilidade no colo do governo, afrontando sem qualquer escrúpulo político dezenas de milhares de professores em greve que continuam a lutar por conquistas trabalhistas que vão muito além de cifras salariais. Tenho uma hipótese para explicar a existência institucional do Proifes, apresento-a a seguir.

Proifes: o capitalismo sindical dos pequenos gestores-tecnocratas

Durante muitos anos (da década de 1970 até meados da década de 2000) o acesso à carreira de professor federal dava-se majoritariamente por professores graduados ou, quando muito, por professores mestres. Raros eram os concursos para professores doutores, porque o mercado não tinha profissionais assim qualificados. O ingresso numa universidade federal é que garantiria o percurso de qualificação desse professor graduado à obtenção do seu doutorado. O sentido político-pedagógico de uma universidade federal era o de privilegiar a excelência do ensino nos cursos de graduação, a marca social de uma universidade federal era essa: excelente nível de ensino por causa dos excelentes professores (os melhores do mercado, porque avaliados por concursos públicos); os professores eram os melhores e a instituição, por sua vez, ainda os notabilizava mais pelas condições de titulação que lhes oferecia. Uma carreira no magistério superior se fazia pela excelência do ensino, com um corpo docente em processo de qualificação. Sob essas circunstâncias, obter um doutorado e logo a seguir conseguir ser aprovado como professor titular era a meta central de uma carreira de sucesso. A qualificação desse professor concursado acontecia com afastamentos remunerados de dois a três anos para um título de mestre e de quatro a cinco anos para um título de doutor. Administrar as saídas dos professores para a sua qualificação individual era um dos grandes problemas na gestão dos departamentos e faculdades. Os professores se qualificavam em carreiras individualizadas, a universidade queria deles o título, a qualificação individual. Com os afastamentos remunerados os professores ficavam fora da universidade por esses períodos, os demais colegas no departamento viam-se obrigados a “substituí-los” em sala de aula, e faziam isso porque cada um esperava a sua vez de saída; eram comuns as “listas de saída”. Em linhas bastante resumidas era assim que se caracterizava uma carreira docente nas universidades federais.

Essa qualificação realizava-se em centros de “excelência” estruturados ou fora do país (EUA e França, primordialmente) ou em universidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Exigia-se desse professor o deslocamento periódico da sua moradia de origem (na cidade onde trabalhava) para esses estudos ou mesmo fixar residência no local de estudos pelo período do afastamento. A garantia da remuneração (salários e bolsas de estudos) visava fundamentalmente estimular essa opção. Sair para fazer o mestrado e o doutorado era o ápice da carreira de um professor. Voltar à universidade de origem com o título às costas era o seu grande momento na carreira. Dali em diante administraria o seu novo status de professor titulado (professor-mestre assistente ou professor-doutor adjunto); exceto ministrar as aulas, a universidade pouco lhe exigia em termos produtivos. As principais agências de fomento (Capes e CNPq) organizavam-se para essa qualificação docente; qualificar um professor federal era o grande propósito dessas agências de fomento à pesquisa.

Nas assembleias desta greve uma evidência salta aos olhos de todos: os que organizam os comandos locais de greve são professores bastante jovens (“frangotes” como ouvi outro dia alguém dizer) e a imensa maioria dos que se batem contra a greve defendendo as práticas do “sindicalismo” do Proifes são professores bastantes mais velhos; alguns muito mais velhos do que a própria velhice demonstrada pelos cansados rostos, ainda que sempre firmíssimos nos seus propósitos e intervenções públicas. É preciso ainda dizer que entre os professores mais velhos também há aqueles que se mantêm firmíssimos numa juventude nunca perdida, como também há aqueles muito jovens que conseguem ser muito mais “velhos” do que os professores bastante mais velhos. E como em qualquer situação institucional das nossas vidas, há também uns poucos, jovens ou velhos, que só conseguem ser velhacos, mas esses se asfixiam na sua própria indigência existencial. Por que ressalvo “gerações” de professores? Por uma obviedade: os professores mais velhos estão em cena defendendo interesses associados às suas trajetórias dentro da universidade; muitos dos professores mais novos são recém-contratados, ingressaram na universidade já com os seus títulos de doutor (maioria) e/ou de mestre. A perspectiva da greve para os mais antigos mantem-se dentro de uma esfera meramente salarial; a perspectiva da greve para os mais novos é a do usufruto institucional da universidade para as suas carreiras individuais. São concepções de mundo distintas dentro do universo produtivo interno das universidades. Os professores mais velhos honram nas suas trajetórias o sofrimento dos anos dedicados às pesquisas que os qualificaram externamente à universidade de origem, honram os milhares de horas-aula que ministraram ao longo de suas vidas dentro de salas de aula lotadas de alunos na graduação, aquelas mesmas aulas repetidas todos os anos, durante tantos anos, em disciplinas de formação, raramente em disciplinas de pós-graduação. Esses professores dedicaram os melhores anos de suas vidas à universidade e foi na universidade que construíram tudo o que são e tudo o que possuem. A materialidade institucional da universidade, os prédios, as salas, os corredores, as passarelas, as paredes com aquelas fotografias horrendas de professores ilustres estão carregadas por lembranças quase fantasmáticas de trajetórias assim. Mesmo que não o digam conscientemente, afrontam-se inconscientemente com a presença dos milhares de professores “frangotes” que acabaram de chegar nesse mundo que sempre lhes foi tão particular. Lutaram a vida inteira por uma universidade pública, republicana, enfrentaram ao lado do PT, do PCdoB, do PCB, governos reacionários que se esmeraram em vilipendiar a universidade pública (como os famigerados anos do governo de Fernando Henrique Cardoso); apostaram e continuam a apostar nos governos Lula-Dilma; mas agora se vêm em guerra declarada nas assembleias contra esse outro mundo que ajudaram a criar, o mundo dos professores “frangotes”, a primeira geração-produto da universidade pública federal dos governos Lula-Dilma.

Com uma carreira marcada pelo esforço da titulação conquistada a duras penas, muitos desses quadros qualificados a longo prazo voltaram-se para os cargos internos da universidade. Se hoje uma carreira docente é medida pela quantidade de artigos ou livros publicados, até bem pouco tempo atrás o prestígio de um professor se definia no êxito de sua trajetória dentro dos meandros burocráticos da universidade. Chefes de departamento e diretores de faculdade consagravam o seu poder e sua importância política em cenários como Câmaras de Graduação, Conselhos Universitários e vários outros fóruns deliberativos internos ao funcionamento de uma universidade. Correndo o risco de estar aqui a simplificar uma situação bastante complexa, afirmo que tais cargos e tais ambientes ressaltavam trajetórias individuais de professores com fortes vínculos político-partidários no campo da esquerda capitalista (PT, PCdoB, PCB, PDT). Um detalhe não pode ser esquecido nesta descrição que aqui apresento: grande parte da antiga esquerda sindical (que hoje reitera e compõe a ação institucional do Proifes) é composta por professores que se notabilizaram localmente como professores de esquerda, muitos ainda se dizem “comunistas” (militantes do PCdoB), indivíduos que dedicaram toda a sua vida à Universidade que agora querem defender das “sinecuras esquerdistas” do Andes-SN; foram militantes no movimento estudantil, graduaram-se e tornaram-se professores na mesma universidade e depois fizeram a carreira procurando a titulação fora dessa universidade. Quando voltaram, encontraram uma universidade ainda estruturada apenas em cursos de graduação, tanto que muitos que se titularam como mestres desistiram de sair novamente à procura do título de doutor; afinal, de que lhes valia tal título se poderiam chegar a Adjunto 4 (o topo da carreira antes da reforma de 2005) sem precisar do mesmo? Esse é um detalhe a observar. E os que buscaram o doutorado? Esses, em não encontrando uma pós-graduação organizada na sua área de pesquisa e docência, seguiram adiante no interior da universidade atrás dos cargos. Definiram-se ao longo de décadas como especialistas na burocracia, especialistas na “ciência oculta” do controle institucional, pequenos gestores-tecnocratas que diante dos seus colegas em sala de aula só conseguiam dizer: “Isso não pode!” Essa é a frase do poder do pequeno gestor-tecnocrata universitário, a expressão emasculatória da imaginação. Nada se podia executar dentro das universidades porque lá estavam essas almas saloias de tez pálida a nos dizer: “Isso não pode!”. Ao lado dessas carreiras na burocracia da universidade, preenchida por doutores (uma exigência para os cargos), outra carreira se fez contundente: a do professor-sindicalista, aquele professor (apenas alguns doutores, a grande maioria era de mestres ou graduados) que encontrou nos cargos sindicais o sentido de sua existência acadêmica. Grandes lutas contra governos reacionários (como as do período Fernando Henrique Cardoso) consagraram tais professores; alguns se tornaram importantes referências institucionais no cenário da esquerda capitalista local (da universidade). Dessas práticas de resistência, combate e luta em defesa da universidade e das carreiras construíram-se os sindicatos (antes associações vinculadas ao Andes, mais recentemente transformados em sindicatos locais vinculados tanto ao ANDES [sindicato nacional] como aos sete vinculados ao Proifes federação).

Noutro artigo aqui publicado destaquei a ação do sindicato dos professores da Universidade Federal de Goiás (Adufg – mantém-se a legenda original de quando era Associação dos Docentes da UFG), e esse sindicato me parece bastante exemplar do que aqui estou a afirmar. Tem 2200 filiados, que lhe dão uma receita líquida e certa de quase 160 mil reais por mês, quase 2 milhões de reais por ano, com uma sede própria em expansão física; também é dono de uma sede de lazer campestre com ampla infraestrutura patrimonial; enfim, um sindicato que funciona tal e qual uma empresa capitalista de médio porte. Mas qual o motivo fundamental desse sindicato ter na sua carteira de sócios esses 2200 filiados? Certamente que não é por causa do Coral Adufg e muito menos pelo usufruto dos “tanques de água” (como muitos dizem em Goiânia quando se referem a piscinas). O único motivo para que tal conjunto de associados se mantenha sindicalizado é o plano de saúde da empresa Unimed. É comum esta expressão entre os professores da UFG: “sou filiado à Unimed e não à Adufg”. É bastante certo que com os últimos acontecimentos muitos dos professores sequer “filiados à Unimed” querem estar, só para não ter qualquer relação institucional com a ADUFG, tamanha a afronta política que a atual direção impõe aos professores em greve tanto dentro das Assembleias como fora delas.

O que temos com esta sucinta descrição que apresento ao leitor? O que é, afinal, o PROIFES?

As universidades federais passam por um duro processo de transição institucional nas suas funções produtivas basilares diante do atual processo de expansão e integração capitalista mundial, em que o Brasil, como potência capitalista, está envolvido. É um processo irreversível que exigirá lastros produtivos em pesquisa das universidades federais cada vez mais intensificados. Não há mais espaço para a existência da antiga Universidade Federal da excelência pública no ensino; aquilo que era marca da excelência de antes agora é marca que se exige a todas as faculdades e universidades em qualquer lugar do país (e sejam públicas ou privadas). A excelência acadêmica de hoje se determina pela pesquisa. Com a profusão de cursos de pós-graduação nos últimos 15 anos, instituiu-se um ritmo produtivo enlouquecido ao interior das universidades, esse ritmo enlouquecido aterroriza os velhos quadros tecnocráticos, esse ritmo produtivo estilhaça por dentro qualquer possibilidade de existência dos “tempos tranquilos” de antes. No atual momento produtivo de expansão generalizada das práticas de gestão fordistas-toyotistas reproduzidas em todas as áreas do conhecimento, exige-se de um professor o ritmo do gestor-empreendedor. Cada vez mais as carreiras dos jovens doutores se faz pelo gerenciamento capitalista de sua pesquisa com alguma pesquisa em rede, ou um sistema de grande eficiência para a reprodução tecnológica da cadeia produtiva em setores de pesquisa estratégica em redes de pesquisadores on line em laboratórios integrados, movimentando com isso uma quantidade extraordinária de estudantes associados, os futuros “jovens” doutores. E mesmo se não houver esse complexo interinstitucional que remeta a pesquisa acadêmica diretamente à produção capitalista, circuitos institucionais são reproduzidos e ampliados nas práticas dos congressos, simpósios, colóquios, uma gigantesca máquina empresarial capitalista retroalimenta essas institucionalidades universitárias. Se antes um professor doutor esperava dois anos pelo encontro nacional de sua área para apresentar os seus trabalhos de pesquisa, hoje organiza três ou quatro encontros internacionais por ano dentro da sua faculdade, para dizer exatamente a mesma coisa em todos eles. Nessas realidades é que encontramos os professores hoje em greve. Um emaranhado de contradições e armadilhas que nos colocam em choque uns contra os outros, interesses privados de carreiras privadas em choque num espaço institucional cada vez mais privatizado. Mas afirmar isso é também afirmar o óbvio.

Com a greve definiu-se um fato extraordinário: generalizaram-se dentro das universidades solidariedades que os professores não tinham condição de afirmar na rotina do seu próprio trabalho. Nas assembleias, nas reuniões dos Comandos Locais de Greve, nas passeatas e em muitos outros atos públicos, jovens e velhos professores reconhecem-se como professores de fato. Essas solidariedades jamais serão rompidas e essas solidariedades antagonizam não apenas um governo tecnocrata que perdeu completamente a sua capacidade de interlocução, mas também mostram a todos a soberba dos gestores-tecnocratas como classe dominante capitalista. É como classe dominante capitalista na organização e controle do ciclo produtivo transnacionalizado que os gestores-tecnocratas deveriam ser percebidos por todos, só assim é possível o real entendimento da mecânica institucional do poder capitalista sob o controle de indivíduos e partidos de esquerda. A greve não se faz como luta contra um governo de direita naquilo que se convencionava chamar de representantes ideológico-partidários da “burguesia”. Não. É uma luta contra a esquerda capitalista, contra os gestores-tecnocratas egressos do mundo sindical de antes, gestores-tecnocratas formados numa locução institucional de tempos produtivos de mais-valia absoluta, que pensavam, organizavam e realizavam os controles produtivos do poder individual presencial, o poder dos chefes; no caso das universidades em greve, o poder dos antigos chefes de departamento, dos diretores de faculdade, esses que agora não entendem porque não podem mais exclamar com toda a sua autoridade a velha frase de antes: “Isso não pode!”. Pode, sim senhor! Nas universidades federais em greve, cada vez mais integradas aos ritmos ensandecidos da produção da mais-valia relativa, agora tudo é possível porque tudo já está determinado pelos ciclos globais da produção. Se antes os velhos gestores-tecnocratas nos roubavam a imaginação, agora os gestores-tecnocratas estimulam-nos a realização da imaginação porque sabem que já não é mais possível imaginar nada. Somente quando essa selvageria institucional é interrompida, com solidariedades de novo tipo, como as que acontecem agora com a greve, é que os jovens e velhos professores reencontram novamente a imaginação e a aposta no futuro. Os senhores e as senhoras do “isso não pode!” estão sendo varridos ao esquecimento. O próprio ritmo produtivo do capitalismo acadêmico acabará por eliminá-los em definitivo, mas a radicalidade das solidariedades dos professores em greve no seu confronto político com o governo tem também que enfrentar e destruir em definitivo esse “zumbi” [4] sindical da mais-valia absoluta que é o Proifes.

Esse cenáculo de pequenos gestores-tecnocratas da esquerda sindical capitalista (PT, PCdoB, CUT, CTB), percebendo-se como lídimo sócio do projeto capitalista governamental, tem se apresentado aos professores em greve como antagonista democrata do “sectarismo” sindical do Andes-SN. Como já afirmei, os gestores-tecnocratas do Proifes são o escol remanescente de antigos professores da Universidade Federal do “isso não pode!”, são os antigos capitalistas sindicais que durante muitos anos administraram o patrimônio privado de alguns sindicatos. Esses pequenos gestores-tecnocratas olham para o sindicato não como uma relação social, mas como uma propriedade que cresce a olhos vistos tanto em paredes, salas e carros, como em fundos de investimento, como o que a Adufg administra com as comissões que obtém dos sócios que se vinculam à Unimed (em dados apresentados numa das últimas assembleias, tal fundo totalizava um volume de mais 500 mil reais; disseram à assembleia que esse dinheiro era um “fundo de reserva” para emergências, talvez a emergência de um terremoto que possa pôr abaixo os jardins da sede). Defender o patrimônio sindical-capitalista e continuar a sentir-se “sócio” do projeto capitalista transnacionalizado dos governos Lula-Dilma, esse é o sectarismo desses pequenos gestores-tecnocratas. Acreditam-se à margem do movimento grevista e pensam que o podem solapar porque no seu autismo institucional sempre podem contar, nesta briga, com a ajuda do “irmão” mais forte (o governo). Resta aos professores em greve não temer as práticas institucionais infames que lhes são peculiares e destruí-los politicamente, e isso haverá de acontecer durante a greve que ainda não tem data e tampouco motivos para se encerrar.

Notas

[*] Professor Doutor Adjunto da Universidade Federal de Goiás.

[1] O programa Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) do governo federal (Decreto 6096 de 2007) é a marca institucional da expansão física das Universidades Federais. Para uma descrição do programa consultar:
http://reuni.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=25&Itemid=2 

[2] A minha argumentação neste artigo está inspirada teoricamente pelo conjunto da obra de João Bernardo, especialmente em títulos como Economia dos conflitos sociais (2ª. Edição) (São Paulo, Expressão Popular, 2009) e Capitalismo Sindical (São Paulo, Xamã, 2008 [livro escrito com Luciano Pereira]).

[3] “Mais-valia absoluta” e “mais-valia relativa” são conceitos clássicos na tradição marxista. Ressalvo, contudo, que o uso que aqui faço dos mesmos refere-se única e exclusivamente à obra de João Bernardo, notadamente ao livro Economia dos conflitos sociais (2009). Desse livro, remeto o leitor ao Capítulo 02 – “Mais-valia relativa e mais-valia absoluta”, e especialmente às páginas 139-152 para uma definição geral dos termos.

[4] “Zumbi” sindical é um termo que extraio do artigo de Marcelo Badaró & Roberto Leher – Docentes contra zumbis (2012); artigo que motivou a resposta de Gil Vicente Reis de Figueiredo, Eduardo Rolim de Oliveira e Nilton Brandão – As marionetes do sectarismo serão derrotadas pela história (2012). Os artigos podem ser consultados nos links abaixo indicados:
http://www.adufmat.org.br/index.php/comunicacao/noticias/493-docentes-contra-zumbis 
http://proifes.org.br/artigo-as-marionetes-do-sectarismo-serao-derrotadas-pela-historia/

16 COMENTÁRIOS

  1. João Alberto

    Gostei muito do artigo e em alguns momentos me vi rindo das imagens provocadas por suas escolhas lexicais.
    Em vários outros momentos, muitos “trechos” do seu artigo dialogaram comigo, mas quero destacar apenas esse:

    Com a greve definiu-se um fato extraordinário: generalizaram-se dentro das universidades solidariedades que os professores não tinham condição de afirmar na rotina do seu próprio trabalho. Nas assembleias, nas reuniões dos Comandos Locais de Greve, nas passeatas e em muitos outros atos públicos, jovens e velhos professores reconhecem-se como professores de fato. Essas solidariedades jamais serão rompidas e essas solidariedades antagonizam não apenas um governo tecnocrata que perdeu completamente a sua capacidade de interlocução, mas também mostram a todos a soberba dos gestores-tecnocratas como classe dominante capitalista.

  2. João Alberto, todos os exemplos que você citou da UFG são tão semelhantes ao que ocorre aqui na UFMS, sobretudo a questão do plano de saúde. Sou um dos ‘frangotes’ que está descobrindo as solidariedades.

  3. João Alberto:

    o seu texto faz um análise aguda e interpretativa do nosso presente.
    O PROIFES não nos representa. Temos passado, memória.

    Sabrina Sedlmayer (Letras/UFMG)

  4. Oi Professor João Alberto.
    Seu artigo me fez ter uma visão panorâmica da minha vida acadêmica, desde o meu ingresso na graduação em 2003 até hoje quando ainda me aventuro à pesquisa na pós-graduação. Me lembro dos meus olhos assustados com aqueles professores que mais pareciam figuras de “gigantes”, ali, para sempre, inatingíveis e reverenciáveis, alguns deixaram marcas muito boas, outros, exemplo do que não se deve fazer como professor. No decurso desses anos, vivi um pouco desta transição, ainda como graduanda, vez ou outro algum jovem professor entrava na sala, a Universidade iniciou uma sequência ininterrupta de obras, depois de muitas polêmicas e manifestações geradas pela adesão ou não da Universidade Federal de Goiás ao PROUNI. A transição continua em curso e este artigo permitiu compreender parte da tensão e confusão inerente a esse momento. Hoje fica a sensação de que não precisamos mais esperar algum professor nosso que foi da graduação morrer para que um de nós tenha a possibilidade de ocupar o seu lugar. [Era essa a sensação que tínhamos nos primeiros anos da graduação, rs] E fica também o desejo de que em meio as relações de mercado que envolvem esse processo, haja diálogo e uma valorização dos professores em todos os âmbitos e sim, que a solidariedade entre as “gerações” continue ressoando depois da greve.

  5. Caro João,
    Excelente o artigo. Me fez lembrar de “A parada do velho novo” de Brecht. Penso que esse pode ser o início do fim dos sindicatos amarelos.
    Forte e fraterno abraço

  6. Caro João Alberto e demais leitores – que estão acompanhando e participando do debate,

    A minha impressão ao ler o texto – deixando, desde já, claro que eu posso estar errado e não ter entendido corretamente a abordagem do autor – é que a principal questão enfatizada pelo João Alberto, o tal do PROIFES, é na verdade bem menos interessante do que o dilema que está, pelo que parece, apenas esboçado na argumentação deste escrito.

    Ou seja, os professores “jovens” – em greve, organizando seus Comitês de Luta e “varrendo” o tais representantes da mais-valia absoluta – serão os principais responsáveis pelo novo período de inserção institucional capitalista das Universidades Federais brasileiras? Tanta luta e relações de solidariedade apenas para consolidar o modelo da mais-valia relativa? Trajetórias acadêmicas individuais agora integradas em redes de pesquisa colaborativa, publicações e congressos – e é esse o avanço que buscavam?

    E, o mais importante: por que a discussão entre os professores universitários é tão intestinal? Alguns integrantes da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SPBC) dos anos 1970 e início do 1980 ao menos discutiam, com todas as suas contradições e alguns poucos avanços (e só lembrarmos da participação de Maurício Tragtenberg em suas reuniões anuais durante aquele período), as questões sociais mais amplas – além de questionarem “para que” e “para quem” o conhecimento era produzido nas universidades e instituições de pesquisa naquele momento.

    Enfim, são apenas questões que me surgiram após a leitura desse novo texto do João Alberto. Mesmo com todos os apontamentos por mim apresentados, parabenizo o autor pela importante reflexão e contribuição aqui exposta.

  7. Vejam que peróla: “Defender a universidade pública é defender o êxito de um projeto capitalista de excelência para o país. Nesse sentido, a luta dos professores nesta greve é pela manutenção exitosa do projeto capitalista que os governos Lula-Dilma colocaram em movimento.” Um texto panfletário e maniqueísta.
    Isso seria exemplo de um texto profundo ou mais um daqueles esclarecimentos de conjuntura elaborados por intelectuais de vanguarda?

  8. Brilhante o seu artigo, João. Algo nele me parece assombroso: a percepção de que todas as lutas na atual institucionalidade política brasileira são lutas entre opostos capitalistas. Isso revela a onipotência de um modelo cujo fim já não pode mais ser previsto.

  9. Caro Xavier,

    Creio que o que você aponta como o mais interessante é com certeza de fato o mais interessante. Essas parecem ser as duas grandes tendências, se o colega João Alberto, e eu com ele, não erramos a mira. Mas o pessimismo resultante não deve se tornar acachapante — deve ser o da lucidez prevenida, porque a história nunca é feita só de grandes tendências.

    O João Alberto, com sutis ironias (se entendi direito) tem o propósito de descrever grandes tendências, e o faz de modo instigante e inteligente. As respostas às suas perguntas estão em parte no artigo (nessas grandes linhas, elas desanimam); mas na outra parte suas perguntas nos levam para fora do artigo. O legal de haver no capitalismo uma contradição insuperável (dentro dele) é que o Capital é incapaz de controle absoluto dos processos históricos — o sentido histórico das coisas lhe escapa. Dentro das grandes tendências sempre há forças inconformes que não são “contabilizadas” e, de vez em quando, se a configuração do momento e do movimento estão no preciso alinhamento que coloque essas forças inconformes em condição de tornarem-se o fiel da balança, aí coisas interessantes e imprevistas podem acontecer — como acontecem aqui e ali, no tempo da História. Fazer revolução não é pra qualquer hora, e ninguém poderá dizer a que hora será — o que não significa que não estejamos aqui, empurrando o prato.

    Concretamente, alguns pontos da pauta da atual greve são bastante consensuais, outros nem tanto. Mas os motivos pelos quais cada professor individual apoia determinado ponto podem variar muito. Dentro da resistência ao novo modelo em vias de implantação (na lógica da mais-valia relativa) podem incluir-se tanto muitos saudosistas do velho modelo quanto muitos frangotes defensores de projetos alternativos para a universidade. Penso que os ganhos dessa greve não serão talvez nada revolucionários, mas o processo da greve modela o próprio movimento docente e pode abrir para ele um quadro mais arejado de possibilidades para o futuro. Já será um ganho. Se vier mais, melhor.

  10. Prezado Xavier,
    Reitero as palavras de Cássio Tavares. Os jovens professores são um produto das novas formas capitalistas na universidade, mas além de produto são também os principais produtores do processo sistêmico que retroalimenta essas formas capitalistas a patamares tecnológicos nunca antes vistos, esse é um processo irreversível. Esse é o ponto a considerar, o revolucionamento produtivo-administrativo porque passa a universidade brasileira já vem encontrando nas práticas desses “jovens” professores a sua eficiência maior, contudo, com a greve, esses professores desenvolvem uma cultura institucional com outro tipo de práticas, organizam-se em práticas de solidariedade entre si como há muito tempo não se via, esse algo novo se permanentemente reiterado é que poderia ultrapassar a lógica predatória dessa nova universidade, dessas relações de solidariedade de novo tipo que a greve promove é que poderão nascer as condições para que tais professores possam controlar a universidade sob outras perspectivas, e quem sabe assim possam manter-se bastante jovens quando já estiverem velhos; mas, bem sabemos que é impossível interromper a institucionalidade da mais-valia relativa no interior da universidade se essa universidade preservar-se tal como está: como uma das peças fundamentais das condições gerais da produção capitalista.

    Com as ferramentas de mídia hoje disponíveis para qualquer estudante, ferramentas de comunicação, de informação e de exposição de opiniões, a figura central do intelectual crítico de antes tão presente nos velhos mundos das comunicações concentradas, com poucos jornais, nenhuma mídia “social” [sem facebook, sem e-mails, sem internet, etc.], num mundo em que ainda ficávamos na rua em filas de “orelhões” com fichas telefônicas na mão à espera para conversar com as nossas namoradas, num mundo assim o intelectual público talvez ainda fizesse sentido para todos nós; mas, hoje, com tanta informação disponível e com as tecnologias que carregamos nos bolsos das calças, o que se depreende é que não precisamos mais dos velhos oráculos a nos “guiar” e nem eles têm mais alguma coisa a dizer. Noutro dia assisti constrangido a uma entrevista do professor Francisco de Oliveira no programa Roda Viva da TV Cultura, o famoso professor marxista da década de 1970, com a sua saúde bastante debilitada passou as duas horas do programa sem nada dizer, o mesmo silêncio, o mesmo vazio encontramos nos outros poucos marxistas universitários. Com esta greve nacional nas universidades federais, os senhores e as pouquíssimas senhoras do marxismo brasileiro mantêm-se em silêncios e vazios absolutos. E ninguém precisa deles para nada, que se mantenham no silêncio trivial dos cargos que ocupam nas hierarquias das universidades, veja como há uma quantidade expressiva de “marxistas” na direção das universidades públicas. E aqueles outros marxistas que se dizem “à margem” de tudo, mas sempre dentro da universidade, esses então é que nada têm a dizer frente aos acontecimentos da greve porque isso os obrigaria a sair da frente dos espelhos autorreferentes, coisa que jamais farão. Uma miséria, mas uma miséria da qual apenas eles padecem. Repito: o extraordinário da greve é a força da imaginação dos professores na organização da mesma, é impressionante o trabalho, a criatividade e a imaginação em ação desses jovens e velhos professores, umas poucas dezenas que depois em assembleias com várias centenas tornam-se invencíveis pela solidariedade ali construída, em instantes assim, a Universidade volta a ter outros significados históricos para muito além do capital.

  11. Marcos Gean,
    o texto não é uma coisa nem outra, é apenas o texto que você leu. E fico-lhe imensamente grato por isso. Abraço.

  12. Meu caro.

    Ótimo texto esse seu. Senti-me dentro dele frente à estrutura que temos aqui, na UNIFEI, na qual a greve não foi instaurada justamente devido aos “PROEFIANOS” que temos por aqui, embora filiados a ANDES.

    Meus parabéns.

  13. Caro Prof. João Alberto da Costa Pinto,
    Ingressei na Universidade Federal do Tocantins em 2003, dentro desse processo de expansão das universidades federais, e, no nosso caso, trata-se de, literalmente, construir uma nova universidade, permeada por práticas, idéias e perspectivas que impõem-nos muita resistência, imensas cobranças, parcas ferramentas de trabalho e péssima remuneração para uma instituição que se propõe interiorizadora. Me identifiquei com a nova geração (de “frangotes”) indicada em seu texto. Como há muita poeira debaixo desse tapete, creio que profícuo e necessário aprofundar e ampliar esse debate. Aqui no Tocantins também sou um desses “associados a Unimed”. Enfim, essa coisa toda é mais generalizada do que se apresenta inicialmente… Cumprimento-o pelo ótimo texto!
    Saudações tocantinenses!!!

  14. POR QUE OS PROFESSORES NÃO ENTRAM COM PEDIDO DE DISSIDIO COLETIVO E RESOLVEM LOGO ISSO NOS TRIBUNAIS…

  15. olivio, penso na parcialidade que pode haver. agora os antigoes do judiciario com supersalarios mendigam aumento. o stf julga e livra os mensaleiros ao mesmo tempo que se fala em aumento para o judiciário.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here