As torcidas organizadas têm um papel político e contestador, para além da festa das arquibancadas. Mas a grande mídia, em particular desportiva, incute na sociedade a imagem do torcedor violento e vagabundo. Por Tatiana Melim

Torcida organizada exerce um papel importante no “jogo de relações” existente na realidade do futebol brasileiro. Seja através do papel político e contestador ou através do apoio ao time com a festa na arquibancada, a torcida organizada se faz sempre presente. Mas, o entendimento que a maior parte da sociedade possui é de que torcida organizada é sinônimo de violência. Cabe, portanto, o questionamento sobre o papel fundamental da mídia – mais especificamente da grande imprensa esportiva – no processo de consolidação de uma opinião pública que faz o torcedor organizado ser entendido como um sujeito violento e vagabundo.

A análise sobre a mídia, feita pela socióloga Maria Gohn, revela o poder que os meios de comunicação têm de modelar a consciência e o comportamento dos indivíduos, fornecendo as bases para a construção de representações, opiniões, sonhos, ódio e amores. No que diz respeito às torcidas organizadas, é perceptível a construção de uma relação hostil. Porém, nem sempre foi assim.

A formação do público popular que acompanha o futebol não se dá logo com a chegada do futebol ao Brasil. Antes disso, contudo, era um esporte praticado fundamentalmente pela elite. Dessa forma, a cobertura da imprensa se limitava a falar das personalidades que assistiam aos jogos praticados nos clubes tradicionais da cidade.

O processo de popularização e profissionalização do futebol brasileiro não demorou a se instalar e se estabeleceu com forte apoio da imprensa, que enxergou, com a transformação das partidas em espetáculos, a possibilidade de fazer do futebol matéria noticiosa. Assim, os jornais, ao tornarem o futebol um tema público, contribuíram tanto para a formação popular das arquibancadas e jogadores quanto para criar no imaginário dos espectadores uma necessidade de informação que passa a fazer parte da vida cotidiana de cada um.

Tal fenômeno e articulação, como sugere Waldenyr Caldas, em seu livro “Ponta pé inicial, Memória do Futebol Brasileiro”, só foi possível devido a crescente urbanização e industrialização das cidades, que resultou na aparição da classe proletária, potencial consumidora do produto rentável que se tornaria o futebol.

Com o surgimento das torcidas organizadas no final dos anos 60, a imprensa passa a dar notoriedade a esse processo de organização através de coberturas que ressaltavam e incentivavam as festas nas arquibancadas. Essa mesma cobertura abriu espaço para a consequente referência e caracterização do torcedor apaixonado, guerreiro, capaz de acompanhar o time em qualquer circunstância.

“Os únicos ânimos que a chuva fina e constante não conseguia arrefecer eram os do Gaviões da Fiel. Quem assistiu a seu entusiasmo (…) no dia da decisão do primeiro turno entre Corinthians e São Paulo não notou nenhuma diferença. O mesmo batuque cadenciado, quase perfeito”. (Folha de S. Paulo – Matéria: “No Pacaembu, o batuque dos Gaviões da Fiel”, 19/12/1974)

A imprensa passa, então, a dar grande destaque aos recursos estéticos e às festividades que a juventude organizada proporciona nos estádios, apoiando o time com uma fidelidade nunca vista antes. Em paralelo, utilizam dos sentimentos e das relações inerentes ao futebol, como paixões e excessos, para estabelecer o tipo de torcedor conveniente à cobertura esportiva. Os torcedores, deste modo, são considerados meros consumidores do produto futebol.

O entendimento que diz respeito ao engajamento político das torcidas organizadas passou despercebido pela imprensa. Como explica o sociólogo Luiz Henrique de Toledo, o fenômeno das torcidas organizadas nasceu da necessidade sentida por alguns de ocuparem um espaço político, reivindicando, cobrando e fiscalizando os clubes, algo que era mais complicado enquanto torcedores comuns.

A partir da década de 90, a cobertura jornalística terá um papel decisivo no processo de marginalização desses torcedores. Como sustenta Camilo Aguilera Toro, em seu artigo “O espectador como espetáculo”, as torcidas organizadas são legitimadas enquanto tributárias de espetáculo, festa, alegria e paixão, mas passam a ser fortemente censuradas pela imprensa enquanto artífices de violência.

A partir de então, as notícias são veiculadas de forma a criar uma opinião pública junto ao público consumidor, e não informar esse mesmo público sobre os acontecimentos. Através dessa lógica, são produzidas reportagens sensacionalistas, espetacularizadas, o que acaba por definir uma opinião pública que enxerga no torcedor organizado apenas a violência.

De forma semelhante como acontecem com os movimentos sociais, os meios de comunicação tendem a falar das torcidas organizadas de acordo com os interesses político-mercadológicos ou de controle social. E, na maioria dos casos, o “torcedor militante” não é um bom exemplo de torcedor como aquele que leva a família ao estádio. Portanto, para a imprensa, torcedor exemplar é aquele passivo, cheio de emoções proporcionadas pelo futebol, que serve apenas para encher as arquibancadas e ser mero consumidor das notícias sobre o seu time.

No que diz respeito à violência, os próprios jornalistas carregam em seus discursos uma carga significativa de violência simbólica. Ao utilizar expressões sensacionalistas, tais como guerra, batalha, vingança, richa, a imprensa espetaculariza aquilo que deveria ser tratado com mais seriedade. Essa relação se dá, fundamentalmente, naquilo que é considerado jornalismo esportivo de “bancada”, em que muitos jornalistas – ou pseudo-jornalistas – jogam de forma despropositada suas opiniões, sem a mínima responsabilidade sobre os efeitos que podem causar. Assim, estabelecem-se as relações de excesso por parte da imprensa, que poderá acarretar em excessos no espetáculo esportivo, uma vez que os diversos atores envolvidos são conduzidos a agir e reagir de tais formas.

Entretanto, não se estabelece aqui que o fenômeno da violência é causado somente pela cobertura da imprensa. Pelo contrário, são diversos fatores dentro desse contexto, e a imprensa é apenas mais um deles. Mas, a postura tomada pelo jornalismo esportivo, principalmente a partir dos anos 90, é de total isenção sobre as suas responsabilidades. Consequentemente, sempre procura culpados para problemas que são mais complexos e até mesmo constitutivos da nossa sociedade.

De acordo com o que retrata o sociólogo Carlos Pimenta, em seu artigo sobre violência urbana, “a violência entre torcidas organizadas não está desarticulada dos aspectos políticos, econômicos e sociocultural”. Como também fundamenta Toledo, “a violência está enraizada no meio urbano em que vivem, quer seja objetivada nas ações dos órgãos repressivos do Estado, nas relações cotidianas, nas imagens veiculadas pela mídia, nas condutas autoritárias que perpassam as instituições em geral, entre as quais aquelas vinculadas mais diretamente ao futebol (federações, clubes) e que, sob este aspecto, as torcidas organizadas e os indivíduos que a elas convergem não estão descolados dessa realidade”.

Os torcedores fazem parte da relação de sociabilidade estabelecida pelo futebol, que impõe uma série de fatores inevitáveis nesse jogo de diferenças, tais como, preferências, paixões, excessos, conflitos, violência, e, ao mesmo tempo, a afirmação diante do outro. De acordo com Toledo, “estas são características das sociedades modernas ocidentais, de mercado, assentadas no parâmetro da individualidade”.

No entanto, discutir esse assunto e fundamentar as matérias veiculadas tendo como base essas particularidades parece desinteressar à imprensa. É mais viável desarticular esses movimentos e simplificar soluções, assim como o discurso de que “não se pode dar ibope a esses marginais”. Por isso, quando falam das torcidas organizadas, não as tratam como de fato condiz a realidade, mas se referem a elas como facções, reduzindo e criminalizando um fenômeno que a imprensa faz questão de desconhecer – (trabalha-se aqui com a ideia de que os meios de comunicação introduziram no imaginário da sociedade que, quando fala-se facção, logo remete à ideia de facção criminosa, tais como são referidas nos noticiários as organizações PCC, Comando Vermelho, Amigos dos Amigos, entre outras). Como afirma a socióloga Heloisa Reis, “a violência não é a totalidade e realidade das torcidas organizadas”. Ser torcedor organizado reflete em práticas de sociabilidade e valores que vão além do comportamento em estádios de futebol.

Contudo, é importante ter claro que boa parte da violência está dentro das organizadas, porém, simplificar o fenômeno com a ideia reducionista de que todo torcedor organizado é violento e vagabundo, além de negar a realidade, desqualifica a função social que exerce – ou pelo menos deve exercer – o jornalismo, seja ele esportivo ou não.

A grande imprensa, ao marginalizar as torcidas organizadas, limita o direito à informação por parte da sociedade. Os torcedores organizados nunca são fontes, nem mesmo quando são protagonistas ou vítimas de fatos noticiosos. As fontes que servem para a imprensa, geralmente, são aquelas que falarão aquilo o que a imprensa quer noticiar e reforçar no imaginário do espectador: torcedor organizado é violento, marginal, vagabundo, não tem limites e muito menos engajamento político. Com isso, constroem também a ideia de que o torcedor não tem o poder e nem o direito de reivindicar, fiscalizar ou cobrar sobre o que não concordam dentro do clube. Como dito antes, para a imprensa, os torcedores servem apenas para levar a sua família ao estádio e consumir o futebol.

Percebe-se, por conseguinte, que a mídia, especialmente a grande imprensa esportiva, tem um papel importante, e até mesmo definidor, no processo pelo qual se estabeleceu para grande parte da sociedade que torcedor organizado é violento e vagabundo. Portanto, cabe questionar a função tão importante que deveria exercer o jornalismo, na obrigação de legitimar o que deveríamos chamar de democracia, mas, que, segue muito mais uma lógica de ditadura, esta comandada pelo grande capital e o poder da mídia.

Fontes consultadas:
Livros:
“Torcidas Organizadas de Futebol” – Luiz Henrique de Toledo
“Mídia, Terceiro Setor e MST” – Maria da Glória Gohn
“Ponta pé inicial, Memória do Futebol Brasileiro” – Waldenyr Caldas
“O Jornalismo Canalha” – José Arbex Jr.

Artigos:
“Violência entre Torcidas Organizadas de Futebol” – Carlos Alberto Máximo Pimenta
“O espectador como espetáculo” – Camilo Aguilera Toro
“Os espectadores de futebol e a problemática da violência relacionada à organização do espetáculo futebolístico” – Heloisa Helena Baldy dos Reis
“Significado político da manipulação na grande imprensa” – Perseu Abramo

Jornais:
Placar
Lance
Folha de S. Paulo

Internet:
Blog do Pulguinha – Disponível em http://blogpulguinha.blogspot.com/
Blog do Juca Kfouri – Disponível em http://blogdojuca.blog.uol.com.br/
Blog Vai Lateral – Disponível em http://vailateral.wordpress.com/

12 COMENTÁRIOS

  1. Tatiana,

    gostei do artigo.

    Legal ver cada vez mais gente falando sobre essa relação entre mídia e torcida.

    Um abraço

  2. Muito bom o artigo Tatiana!
    É importante que mais e mais artigos e estudos enfoquem as torcidas organizadas, mostrando o movimento como espaço de socialização e não reafirmando discursos absurdos!
    Excelente a pesquisa dos autores, tem um argentino chamado Alabarces que faz essa mesma discussão por lá que é bastante legal de ser lido!

    Abraços

  3. Tatiana,
    mais uma preciosa contribuição aos amantes tão racionais do futebol.
    Como sentimentais torcedores precisamos mesmo é jamais abrir mão de pensar sobre estes “subterrâneos do futebol”. A grande mídia é um adversário terrível, e fortíssimo.
    Abs
    Ripa

  4. Excelente artigo, recheado de citacões de especialistas da matéria. Precisamos para continuar defendendo estas embasadas teses, depurar e sermos “filtros” conscientes das pessoas que participam dessas torcidas organizadas, incluindo-as quando necessário, nesse espírito de torcedor apaixonado, de contestador, mas sempre buscando melhorar seu entendimento enquanto cidadão, e é isso que muitos, como você, estào procurando fazer.
    Parabéns pela riqueza do artigo.

    Adelino

  5. Excelente artigo! Quebrar imagens e idéias “plantadas” para uma sociedade não é fácil. A autora foi audaciosa ao abordar tema tão pôlemico, ao mesmo tempo que de maneira objetiva, limpa e com bases reais administrou com maestria a colocação de cada palavra e pensamento. Talvez o que falta em grande parte da imprensa esportiva seja isto: sabedoria e coragem para encarar os fatos e transmitir a verdade. Parabéns Tatiana.

  6. Tatiana interessante seu ponto de vista, bem parecido com o meu por sinal. Eu sou aluna de História na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e meu objeto de pesquisa é justamente Torcida Organizada (no caso a Mancha Verde). E busco mesmo esse olhar.. o olhar fora da violencia e do clichê midiático.. Parabéns.. Que apareçam cada vez mais mulheres assim.. =D

  7. O Gaviões da Fiel Torcida – Coletivo “Movimento Rua São Jorge” agradece imensamente sua contribuição e olhar crítico do todo.

    Parabéns e Saudações Corinthianas!!!

  8. Muito bom tem tudo o que precisava!!!!!
    Bastante informativo!!!!!

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