Para Paulo Cesar Marques da Silva, professor da UnB na área de transportes, recente decisão tomada pelo Comitê de Mobilidade do Conselho das Cidades pode abrir caminho para uma política voltada ao benefício do transporte público: a tarifa zero. Por camarada d.
Trinta e sete milhões de brasileiros sem acesso ao transporte coletivo, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), por conta dos preços das tarifas; incentivos do governo federal à produção de automóveis, contribuindo para o aumento dos congestionamentos nas grandes cidades do país e, consequentemente, ampliando a crise de mobilidade urbana e as restrições ao direito de ir e vir. Na contramão deste cenário, uma decisão tomada pelo Comitê de Mobilidade do Conselho das Cidades (ConCidades, Ministério das Cidades) pode abrir caminho para uma política voltada ao benefício do transporte público: a tarifa zero. Esse é o entendimento de Paulo Cesar Marques da Silva, professor da UnB na área de transportes do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental. Trata-se do entendimento de que o custo do sistema de transporte não precisa ser pago pela tarifa cobrada dos usuários. Para Paulo Cesar, “o transporte é um serviço público e, como tal, não deve ser financiado por seus usuários diretos”.
Representante da Associação Nacional de Pesquisa e Ensino em Transportes (Anpet) dentro do Comitê de Mobilidade, Paulo César participou desta reunião, cuja pauta era discutir modificações do Projeto Lei 1.687/07, o Estatuto da Mobilidade Urbana Sustentável – uma espécie de versão do Estatuto da Cidade para o segmento da mobilidade. Apesar de o transporte coletivo ser uma atribuição municipal, o professor acredita que o Estatuto poderá ser aplicado por conta de repasses federais: “só Estados e municípios que estiverem de acordo com a lei poderão receber recursos da União para o setor de transportes”, sentencia.
Confira a entrevista:
d. – Como foi esta reunião em que o Comitê de Mobilidade decidiu pela distinção entre a tarifa e o custo do sistema de transporte?
Paulo Cesar – Eu pensava que o Projeto de Lei 1.687 havia sido abandonado, tal o descaso com que o governo vinha tratando do tema. Portanto, não sei qual foi a motivação da SeMob (Secretaria Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana) para discutir os ajustes do projeto, nem sei de quem foi a iniciativa. Para nossa surpresa, nesta reunião a SeMob apresentou algumas sugestões. Foi aí que apareceu a diferenciação entre a tarifa de remuneração e a tarifa pública. Digamos que a essência dessa distinção já constava do texto original, mas de uma forma muito discreta e com todas as conseqüências que a imagem negativa do subsídio traz. A meu ver, a redação agora proposta tem o mérito de desvincular a tarifa (pública) do custo.
d. – As decisões do Comitê são automaticamente inseridas?
Paulo Cesar – O ConCidades se reúne ordinariamente a cada trimestre. Normalmente, o primeiro dia é destinado a reuniões dos Comitês Técnicos e os dois dias seguintes às reuniões plenárias. O Conselho aprova resoluções e outros documentos, quase sempre depois de discutidos nos comitês técnicos. Muita gente questiona o caráter não impositivo das resoluções do ConCidades. Quase sempre fica no nível de recomendações. Mas também foi lá que foram aprovados os projetos de lei de Saneamento, de Habitação de interesse social, o próprio programa habitacional atual do governo.
d. – Que resultado prático teria o Estatuto, já que a própria Constituição atribui aos municípios a administração do transporte coletivo, por exemplo?
Paulo Cesar – A Constituição, de fato, atribui aos municípios a gestão do transporte urbano, mas também manda a União (art. 21, inciso XX) “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos”. No processo da 1ª. Conferência das Cidades e desde o início do funcionamento do Comitê, a idéia de cumprir o dispositivo constitucional ficou marcada com a vontade de elaborar um Estatuto da Mobilidade Urbana Sustentável, a exemplo do que é o Estatuto da Cidade. Creio que o principal efeito prático de uma lei de diretrizes, respeitando a autonomia dos entes federativos, será o condicionamento do repasse de recursos federais – só Estados e municípios que estiverem de acordo com a lei poderão receber recursos da União para o setor de transportes.
d. – Que avaliação geral pode-se fazer do projeto de lei como ele está?
Paulo Cesar – O Estatuto da Mobilidade é ainda um projeto de lei, portanto não produz efeitos. Se vier a vigorar, creio que o Estatuto não favorecerá qualquer setor em particular. Ele criará, sim, um ambiente de negociação para permitir a pactuação do Plano de Mobilidade. Fazendo um paralelo, é mais ou menos o tipo de mecanismo que o Estatuto da Cidade prevê com os Planos Diretores, sem ferir a autonomia dos municípios. O Plano de Mobilidade tem uma série de requisitos que podem assegurar conquistas para a população. Por exemplo, há exigências de controle social que são avançadas em relação ao que existe hoje nas cidades. Mas tudo vai depender da capacidade de mobilização dos setores em suas cidades.
d. – Além desta notícia sobre o debate dentro do Comitê de Mobilidade, vemos pipocar idéias progressistas até mesmo em documentos de associações de empresários de transporte, como a defesa do subsídio às gratuidades (para que as mesmas não sejam cobradas do restante dos usuários diretamente). O que está acontecendo? É uma tática de ceder um pouco para protelar o modelo vigente de concessão privada e cobrança de tarifa ou apenas uma cooptação cosmética do discurso dos movimentos sociais, tais como o Movimento Passe Livre?
Paulo Cesar – Acho que tem um pouco de tudo. Mas, essencialmente, vejo que a manutenção da situação atual é insustentável. Os próprios aliados de classe dos empresários de transporte devem cobrar algum esforço de institucionalização do setor, porque é certamente difícil bancar a desregulamentação, a resistência a qualquer esforço de realizar licitações, e assim por diante. A concepção 100% mercadológica fica comprometida até pelos casos recentes de intervenção estatal nos mais diversos setores da economia nos países centrais do capitalismo. Alguma dose de atuação do Estado é admitida hoje pelos mais liberais mundo afora. Creio que o que se vê por aqui é reflexo disso. Afinal, para eles o risco maior é o esgotamento das fontes de receita, se tudo ficar dependendo de uma população economicamente frágil (a maioria dos usuários do transporte coletivo) para enfrentar as crises nos marcos do capitalismo. Seria diferente num contexto de ruptura com a ordem capitalista.
d. – É possível dizer que há um racha entre setores empresariais (indústria do automóvel particular versus empresários de transporte)? Hoje nós vemos associações industriais levantando dados sobre as perdas de lucros devido aos problemas de tráfego nos grandes centros?
Paulo Cesar – O capital não é tão monolítico como às vezes é pintado. Há sempre lutas em diferentes graus entre setores da produção. Os capitalistas se unem em torno de interesses gerais, mas não abrem mão de explorar seus setores da economia com maximização dos lucros. Há, sim, uma contradição entre operadores do transporte público e a indústria automobilística. As contradições ficavam menos visíveis quando as cidades ainda não tinham seus sistemas viários saturados. Ficava mais fácil cada setor explorar seu segmento de mercado (as classes médias e altas, motorizadas, e os excluídos, usuários cativos do transporte público) sem interferências um do outro. Nos dias de hoje a disputa por investimentos significa também disputar um mesmo público, uma parcela da população com acesso à propriedade do automóvel, mas disposta a abrir mão do uso dele em favor de modos mais racionais, sustentáveis de mobilidade. Esse pode ser o contorno de uma aliança entre movimentos populares, pela universalização do transporte público de qualidade.
d. – É possível traçar um paralelo entre o papel da crise de habitação nos EUA como estopim da recente crise global (a ausência de uma política pública para o setor, população castigada por arrochos salariais mergulhando em financiamentos para aquisição de imóveis e entrando em processo de inadimplência) com o contexto da produção e consumo de automóveis no Brasil? Apenas como exemplo, como publicado na Folha de S. Paulo no dia 28 de maio deste ano, só o Bradesco aumentou de 60 para 80 meses o prazo de financiamento de veículos novos. O próprio governo federal vem reduzindo sistematicamente os impostos para a produção de veículos…
Paulo Cesar – Não tenho muita dúvida quanto a isso, embora haja diferenças importantes entre a questão da habitação e a da motorização. A falta de políticas públicas habitacionais nos países centrais do capitalismo, especialmente nos Estados Unidos, é uma consequência da visão liberal de que o mercado pode tudo. Deu no que deu. A crise se espalhou por toda a economia e atingiu em cheio a indústria automobilística, cujos lucros, nos países centrais, estão associados ao luxo e não há expansão do mercado, já saturado. Nos países hoje chamados emergentes os índices de motorização são baixos, se comparados com os países centrais. Na lógica do capital, são mercados a serem explorados – e agora, em meio à crise, por uma questão de sobrevivência. O governo brasileiro aceitou cumprir esse papel, promovendo a renúncia fiscal para salvar aqui os lucros que as montadoras não podem realizar em seus países de origem. Uma política absolutamente submissa, irresponsável do ponto de vista da sustentabilidade da mobilidade urbana. Obviamente também há o risco da inadimplência
generalizada, mas creio que como consequência da crise econômica, não como um de seus fatores determinantes, como no caso do mercado imobiliário estadunidense.
d. – O que você pensa a respeito da tarifa zero e da gestão pública do transporte coletivo?
Paulo Cesar – Eu concordo que o transporte público é um serviço público e, como tal, não deve ser financiado por seus usuários diretos. Concordo com a idéia de que a prestação do serviço deve ser garantida com recursos públicos, oriundos da arrecadação de tributos cobrados de toda a sociedade. Concordo também com a criação de contribuições dos beneficiários (setores econômicos que lucram com a existência de serviços de transporte de qualidade) e dos demais usuários da infraestrutura viária (o pedágio pago pelos usuários do automóvel, por exemplo).
Achei bastante lúcida a exposição do entrevistado. Com efeito, trata-se de uma conquista nos marcos legais existentes, assim como foi o Estatuto da Cidade. No entanto, sabemos que as leis não significam mais do que balizamentos entre os quais se movem as forças sociais, as quais ainda a desrespeitam ou a ultrapassam. O Estatuto da Cidade fornece um exemplo emblemático de desrespeito da legislação vigente pelos administradores municipais em benefício do capital. Mas não é por isso que devemos menosprezá-lo, e tampouco menosprezar o Estatuto da Mobilidade Urbana Sustentável (caso ele venha a ser aprovado). O fato é que os movimentos socais ainda precisam dominar esses instrumentos para poder, com a devida mobilização da população, explorar as contradições do sistema. Ao menos com relação aos movimentos em torno da questão habitacional, percebe-se um grande despreparo por parte das suas mais importantes organizações. Espero que o MPL assuma uma postura estrategicamente mais ativa diante do novo marco legal.
Parabéns pela entrevista!