Por Marina
Acabo de concluir o bacharelado e a licenciatura em um curso oferecido pela denominada melhor Universidade do país. Tendo estudado em uma instituição pública e cursado a licenciatura, acredito que o mínimo que posso fazer é ministrar aulas em uma instituição pública de ensino. A minha vida inteira estudei em instituições públicas e, ainda que a experiência no ensino básico não tenha sido satisfatória, o que recebi no ensino superior tem que ser retribuído. Não por um voluntarismo ou porque admiro mártires, mas sim por responsabilidade com a coisa pública. Disposta a enfrentar todos os desafios que sempre escutamos dos professores que lecionam na rede pública e que lemos nos textos de vários autores que compõem o programa das diversas disciplinas ministradas na licenciatura, me inscrevi para dar aula como OFA (Ocupação de função atividade – sigla do Estado de São Paulo que designa professores contratados por um ano letivo), visto que o Estado de São Paulo não abriu concurso para a minha disciplina.
Nos textos (e nas reclamações) o desrespeito de alguns alunos, o autoritarismo de alguns diretores e coordenadores compunham um quadro onde via uma categoria de profissionais desrespeitada, muitas vezes despreparada e bastante humilhada. Mas, me inscrever para dar aulas fez com que eu descobrisse que a humilhação não começa na sala de aula, se é que a sala de aula é o lugar onde esta realmente ocorre.
A inscrição:
Inscrevi-me para dar aula em novembro de 2008. Como terminaria o curso em dezembro do mesmo ano, foi-me informado que poderia entregar o comprovante de colação de grau [comprovante do término do ensino superior] até o dia 15/01/2009. Entreguei a colação de grau no dia 13/01/2009 e, ao pedir um comprovante da entrega dos meus documentos recebi a seguinte resposta da funcionária do protocolo: “Nós já estamos fazendo um favor em pegar estes documentos…”. Após a minha insistência ela me encaminhou à supervisão, que prontamente assinou no verso da minha ficha de inscrição que eu havia entregado os documentos. Ah! Quando isso aconteceu já havia realizado a tão polêmica prova, mas isso é assunto para outro texto que pretendo escrever.
A atribuição:
Ninguém sabia quando seria a atribuição. Desde janeiro consultei os sites, liguei para as diretorias de ensino, mas a resposta era sempre a mesma: “Ainda não sabemos”. Uma semana antes, sai a notícia. A atribuição de professores OFAs seria no dia 05/02. Neste mesmo dia sai no diário oficial que a atribuição estava cancelada. Procuro na internet, nos sites da secretaria estadual e nas diretorias de ensino, nenhuma informação. Tento ligar, só ocupado. Com bastante insistência, consigo confirmar: atribuição foi remarcada para o dia 10/02, “mas não sabemos os horários ainda”. Pergunto sobre a minha inscrição, pois não conseguia encontrar o meu nome na classificação do site da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Resposta: “Você tem que ver isso logo!”. “Onde?”, pergunto eu. “Na comissão de atribuição”, responde ela. Mas, pergunto, “o que é isso?”. Ah! É a comissão que fica na escola onde realizarei a atribuição de aulas. Ligo na escola e pedem para que eu espere até às 17hs do mesmo dia, pois sairá uma nova lista. A lista saiu, meu nome também. Mas me inscreveram em um nível abaixo da minha formação. Tive que recorrer.
Vou à escola no dia 06/02, após alguma demora e algumas explicações, pedem para que eu escreva o recurso. Mas ninguém acha a minha inscrição. “Onde será que ela foi parar”? Perguntam os funcionários. “Eu que vou saber?!”, respondo. Perguntam se eu realmente entreguei os documentos. Penso: que bom que insisti para que me dessem um comprovante de entrega da colação. Pedem para que eu faça uma cópia do meu recurso para que eles assinem comprovando que realizei um pedido de retificação da inscrição, além de anexar todos os documentos novamente. Quando saio me dizem: “procuraremos a sua inscrição!”.
Dia 09/02 ligo na escola: “Que horas será a atribuição?”. “Às 9hs, mas estamos pedindo para os professores chegarem bem mais cedo”. No dia 10/02 eu e muitos professores chegamos às 8hs. Surpresa! Meu nome não está na classificação colada na parede. Mais transtornos, mais pressão, ninguém sabe onde está minha inscrição, me procuram nos indeferidos, fazem caras de que não sabem o que fazer. Digo: “tenho todos os comprovantes que realizei corretamente a inscrição e que entreguei todos os documentos”. “Alguém vai resolver o meu problema!”. Resolvem. Como a classificação para quem não tinha pontos foi por idade, encaixaram manualmente o meu nome na lista.
Em torno de 9h20 começaram a chamar os professores. 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16 horas. Todos aqueles professores aguardando no pátio para serem chamados. Havia acordado 06hs da manhã, afinal disseram que eu teria que chegar cedo. Para quê, para ser atendida às 19hs? Humilhação é um eufemismo perto do que passam os professores na atribuição de aulas nas escolas públicas do Estado de São Paulo. Os professores ficam o dia inteiro no colégio, nada lhes é oferecido a não ser alguns bancos de cimento cheios de lodo para sentar, e um chão cheio de mato e poeira que alguns, não suportando mais o cansaço da espera, utilizam para deitar. Após 11 horas de espera é quase impossível atribuir aulas de forma sensata.
Você não sabe onde ficam as escolas, ninguém te informa exatamente, os funcionários estão com pressa e te apressando para que você decida logo. Afinal eles também estão trabalhando desde as 9 horas, senão antes. E você vê uma lousa cheia de quadradinhos e alguns números, que se referem a períodos e não a horários. Você escolhe as aulas, mas não o dia e a hora exata, quem sabe você consiga se ajeitar depois. Muitos voltam para casa sem conseguir nada.
Atribuí aula em duas escolas. No dia seguinte compareço às mesmas. Descubro que terei que fazer um laudo médico [exame médico admissional] e que só poderei entrar em sala de aula quando este laudo sair.
Acontece que este laudo demora. Até lá meus alunos não terão aula e quando o meu laudo sair eu terei que repor as mesmas. Em uma das escolas uma pessoa me informa uma alternativa: “enquanto não sair o laudo você pode dar aula de eventual para as suas turmas”. “Mas você só ganha a hora de aula, não têm direito (penso: aos poucos direitos) que um OFA tem, tudo bem? O bom é que depois você não precisa substituir as aulas”, dizem-me.
Vou ao local designado marcar o exame. “Ah! O quê? Quatro horas da tarde e já fechou?”.
Volto no outro dia. Levo fotos e um formulário de atestado médico que tive que comprar na farmácia. “Que sorte!”, dizem eles, consegui marcar o laudo para o dia 17/02 às 7hs da manhã. Quer dizer, todo mundo que vai fazer o laudo é pra estar lá às 7hs da manhã. “Que hora serei atendida?”. Descobrirei na próxima semana. O laudo demorará a sair. E demorará mais porque sou mulher e, portanto, terei que me submeter a exames ginecológicos. Meu amigo, também professor, que também tem passado por toda esta humilhação, não terá que ir ao urologista.
Ah! Meus horários ainda não saíram. Não sei quando e em que horários darei aulas. Isso se não colocarem as aulas das duas escolas no mesmo horário…
Não consigo conceber como ninguém até hoje havia reclamado para mim sobre isso. Nenhum texto que li na licenciatura falava sobre isso. Sobre o estado de humilhação a que o Estado submete os professores antes deles começarem a dar aula. Será que é algum tipo de preparação? Assim como ocorre no exército e nestas polícias ditas de elite? O Estado de São Paulo já nos informa na atribuição de aulas como seremos tratados por ele, representado na sua burocracia, durante os anos.
Na atribuição uma professora me disse: “Primeira vez? Vai acostumando…”
Não me acostumarei e por isso escrevo este texto. Ninguém merece passar pela humilhação que o Estado perpetua nas atribuições de aulas dos professores do Estado de São Paulo. Sei que esse é mais um dos inúmeros absurdos que acontecem diariamente neste Estado. Mas é por sempre acharmos que é só mais um, e por nos calarmos, que eles continuam existindo.
Marina, atualmente chamada de professora, e com saldo negativo de R$60,00 devido aos gastos com transporte, alimentação fora de casa, xerox de documentos, compras de selo e etc. Tudo para atribuição das aulas.
Imagem em destaque retirada de Assembléia de Professores contra a (des)educação do PSDB em SP
Pois é, Marina. Seu desconhecimento sobre o cotidiano dos professores se deve ao distanciamento entre a categoria e a universidade. O desprezo que a universidade vota aos professores só não é maior que o desprezo da burocracia aos novatos, os recém-formados.
De início tomou contato com um grave problema do setor educacional: a péssima qualidade das chefias e dos quadros diretivos, somados, por sua vez, com a péssima qualidade dos funcionários em geral. Temos Diretorias de Ensino em que as informações sobre o calendário escolar são ainda de 2006.
No que diz respeito ao professorado, mais que uma questão de salário, o grave problema são as condições de trabalho e o percentual de trabalho não pago que abunda: tempo gasto com transporte, aulas vagas, correção de materiais, preparação de aulas, participação em reuniões.
Há uma tecnocracia altamente qualificada no topo da Secretaria, em sua direção, mas alicerçada por uma estrutura burocrática, insensível, descompromissada, desqualificada. Nesse conjunto se inscreve um clientelismo feroz, uma apatia professoral enorme, uma desunião tremenda, tanto mais forte quanto são as possibilidades de os professores adquirirem, lutando contra os outros, algumas das migalhas disponíveis.
Os problemas são maiores ainda. Em textos como este seria bom identificar as Diretorias e/ou regiões pois elas variam muito de lugar a lugar. Por exemplo, em Assis, há lugar para se sentar, servem café, chá e lanche nas atribuições de início de ano.
Olá Henrique,Obrigada por comentar o relato. A diretoria de ensino é da cidade de São Paulo e pelo o que conversei com alguns colegas não há muitas diferenças entre as diretorias que ficam na cidade de São Paulo e na grande São Paulo. Ainda assim, agradeço o comentário, pois com generalizações sempre se acaba em erro. Concordo com você que há um distanciamento entre a Universidade e os professores, mas esse distanciamento não se refere à Universidade como um todo. Há setores da universidade muito dispostos ao diálogo. Outra coisa: Não sou uma pessoa que vivenciou a Universidade como se o mundo fora dela não existisse, portanto, acho que a falta de conhecimento sobre o processo se deve também a uma categoria, se é que podemos incluir algo tão diverso no termo categoria, apática. Para dizer o mínimo. As pessoas, muita vezes, se acostumam com os maus tratos e nem falam sobre eles. Não é somente culpando os outros que resolveremos os problemas. Algo que você parece bem saber, tendo em vista o seu texto. Até mais, Marina.
PS: Como deve deduzir pela demora, meu acesso a internet é restrito.
Perdoa-me Marina se passei uma impressão errada. Seu texto é muito bom. Uma grave limitação da cobertura sobre educação na mídia está no fato de ela ser centrada em dados estatísticos e pronunciamentos oficiais, tanto dos governos quanto dos sindicatos. Pouco se dá sobre as condições de trabalho, de exploração de trabalho não pago, de situações torturantes etc. Dessa forma, textos como esse seu ajudam a divulgar um lado não revelado.
Quando falo do distanciamento ele é tão grande que nem sequer um conhecimento sobre a realidade educacional, a organização interna da educação, as condições de trabalho é dado na universidade. E não sei exatamente qual a razão, os estudantes preferem não conhecer o destino que os espera. Há poucos casos de união prática entre lutas estudantís e lutas professorais. Exceto, claro, a posição genérica a respeito de mais verbas para o setor. Abraço!
Com a palavra, o digníssimo Dr. Serra, nosso governador, pronto a querer ser presidente… Então, sr governador, o que representa esta (des)educação? Algo a dizer? Algo a fazer? Ou isso é coisa de somenos importância em seu (des)governo?
Querida chará!
Que bom que você conseguiu aulas. Agora pense na pior humilhação: além de passar por tudo o que vc. passou, ainda estou sem aulas… É, e sem receber como eventual até agora, e olha que tenho alguma pontuação….
para me ajudar: em qual diretoria vc. se inscreveu*
Olá,
Este ano tive uma história parecida. Também formada em uma das melhores Universidades públicas do país me inscrevi para OFA em São Paulo. Realizei uma prova aplicada pela VUNESP, a qual 57% dos professores não passaram, passei, mas meu nome também não constou na lista dos classificados, e após toda a “humilhação” na hora da atribuição pelos ditos educadores, a humilhação continua… continua pelos funcionários da secretária… que nunca sabem ti responder nada… pelo administrativo na hora da contratação… pelo GROSSERIA do coordenador para com os professores na hora da disposição dos horários das aulas… e assim sucessivamente, ainda digo que a parte menos humilhante em dar aula para o estado é no contato com os alunos (olha que é extremamente cansativo e estressante), uma vez que, após toda a situação de stress, o professor chega na sala de aula cansado, e sem mais paciência, a qual foi gasta desde janeiro…