Por Leo Vinicius
Para nós zapatistas, o problema teórico é um problema prático. Não se trata de promover o pragmatismo ou de voltar às origens do empirismo, mas sim assinalar claramente que as teorias não apenas não devem se isolar da realidade, mas também devem buscar nela as marretas que às vezes são necessárias quando se encontra um beco sem saída conceitual (Subcomandante Marcos, dezembro de 2007)[1].
Em um colóquio realizado em dezembro de 2007 em Chiapas, o Subcomandante Marcos parece ter aproveitado a oportunidade para tentar desfazer uma imagem ou interpretação equivocada e bastante disseminada da luta zapatista. Primeiro, afirmando que ele não é porta-voz dos zapatistas nem do EZLN, mas comandante militar. Segundo, que todos os avanços do zapatismo, em todas as áreas, tiveram como pressuposto a tomada dos meios de produção.
O gancho [viés] para abordarmos o tema é dado pela citação acima que reproduzimos de Marcos, feita no referido colóquio. Nela ele menciona o pragmatismo (filosófico). Pragmatismo que retomou fôlego nas últimas décadas devido principalmente a um filósofo norte-americano chamado Richard Rorty. De certa forma o pragmatismo de Rorty possui algo em comum com a imagem de luta preponderantemente lingüística que é feita ou dada aos (neo)zapatistas.
O pragmatismo pode ser visto em grande medida como uma formulação de certos procedimentos usuais em atividades científicas. Atividades cuja base é a construção ou formulação de modelos, de conceitos ou de descrições. Sendo apenas sobre tais descrições ou modelos que caberia julgar se são verdadeiros ou não. O pragmatismo se caracteriza assim exatamente pela não preocupação com verdades absolutas, independente de contextos. Como os modelos nas ciências naturais, as descrições e seus conceitos seriam instrumentos para atingir propósitos, e não respostas a dúvidas ou enigmas. Os modelos ou descrições são verdadeiros – e só nesse sentido representam uma verdade – à medida que são bons para os propósitos a que se destinam, e são bons de acordo com as conseqüências práticas e a experiência.
No entanto, dentro do entendimento pragmatista, não se trata apenas de buscar a linguagem e o conhecimento que sejam instrumentos para alcançar objetivos e desejos. Trata-se de conceber que toda linguagem e conhecimento, toda descrição e representação são desde sempre instrumentos, que expressam e encarnam objetivos e desejos; portanto não são “neutros”, não são independentes dos propósitos e relações que os definem. Toda representação da realidade seria, portanto, uma representação para se agir sobre a realidade. Como afirmou Willian James[2], a postura pragmatista se dirige ao concreto e adequado, aos fatos e à ação.
Como bem procura mostrar Thamy Pogrebinschi[3], existem diferenças substanciais entre o pragmatismo clássico de Charles Pierce, William James e John Dewey e o neopragmatismo de Richard Rorty.
O pragmatismo clássico é enfaticamente empirista, algo por sua vez ausente em Rorty. Enquanto para James e Dewey a noção de experiência era central, uma vez que dela viria a sanção ao que valeria a pena acreditar, ou seja, ao que seria verdadeiro, em Rorty a linguagem ganha um espaço que acaba minimizando a noção de experiência vivida e sua relação com a prática social. Tais diferenças, não sem razão, normalmente são tomadas como indicativos de que Rorty foi bastante influenciado pela chamada “virada lingüística” na filosofia.
As proposições de redescrição das narrativas (Rorty) ou de ressignificação das experiências (Dewey) seriam portanto atividades que criariam novos modelos – e obviamente novas descrições – adequadas a propósitos e desejos emergentes de grupos sociais. Rorty bem sugere que tal método ou atividade (a redescrição) estaria relacionado à política utópica e à ciência revolucionária[4]. Nesse sentido ele propõe que o sujeito que se vê numa situação social opressiva, como escravo, por exemplo, não aceite as descrições de seu senhor sobre o real, que saia dos limites de seu universo moral, e que selecione os aspectos do mundo que lhe dêem apoio para seu juízo do que teria valor. Assim, o processo de escravos deixarem de sê-lo por serem concebidos como parte da humanidade passaria por uma redescrição ampliada do “nós” humanos.
Ao tratar das redescrições e seu papel, Rorty expõe uma forte tendência a um idealismo lingüístico ou cultural, presente em sua obra. Essa tendência se apresenta na ênfase dada à determinação do comportamento lingüístico sobre a prática não-lingüística[5]. Sendo assim, Rorty vê o progresso e a transformação social como conseqüência de novas linguagens e vocabulários, de novas narrativas, como o uso de metáforas, onde romancistas e literatos teriam importância maior que, por exemplo, filósofos[6] (quanto aos filósofos e cientistas sociais em geral, podemos até concordar com ele).
No referido colóquio realizado em dezembro de 2007 em San Cristobal de las Casas, México, além de pensadores conhecidos e alguns representantes de movimentos sociais, participou a jornalista canadense [canadiana] Naomi Klein. Ao lado de Marcos, na mesa do penúltimo dia do colóquio, ela salientou a importância e necessidade de se construir narrativas que se contraponham ao imaginário judaico-cristão que sustenta a idéia de salvação, de terra prometida sobre a terra arrasada, de paraíso em meio à catástrofe. Imaginário que ela muito bem mostrava a relação com o que ela chama de capitalismo do desastre. Naomi Klein tocou na importância de novas narrativas por estar ao lado de quem ela mesma considerava ser um dos grandes narradores e contadores de história do nosso tempo, o Subcomandante Marcos[7].
Os (neo)zapatistas foram e têm sido provavelmente o movimento social – se assim podemos descrevê-los na ausência de termo ou conceito melhor – de maior influência e repercussão no Ocidente nas duas últimas décadas. Não cabe aqui tentar discutir ou evidenciar os motivos. Mas, certamente, seu eficiente e seminal uso da internet, quando ela era ainda uma ferramenta em processo de ser descoberta pelo grande público, seus comunicados, seus contos, enfim, suas narrativas, tanto no conteúdo quanto na forma, tiveram uma importância incomensurável. Inúmeras publicações e teses já foram produzidas focando e priorizando essa característica informativa e comunicativa do EZLN e do (neo)zapatismo. De fato, o próprio Marcos, por diversas vezes, ressalta a importância da palavra na luta zapatista. Porém, no referido colóquio, Marcos fez lembrar que a mudança de vida que as comunidades zapatistas alcançaram após o levante de 1 de janeiro de 1994 teve uma base, digamos, bem mais material…
Marcos frisou que a tomada dos meios de produção, prevista na Lei Agrária zapatista que entrou em vigor no dia do levante, foi a base para a mudança de vida, embora limitada, dos zapatistas. Esta foi a base e condição necessária para que pudessem declarar seus Municípios Autônomos e experimentarem sua autonomia, no sentido profundo de autogoverno (de se dar as próprias leis), através de novas formas políticas como são hoje as Juntas do Bom Governo. Sem a tomada dos meios de vida, ou dos “meios de produção”, na expressão usada por Marcos, não alcançariam a mudança na vida, desenvolveriam suas instituições educacionais e de saúde, experimentariam o poder político e o autogoverno que possuem hoje. A tomada dos meios de produção, geralmente negligenciada nos estudos sobre o zapatismo, e por vezes com cores de um marxismo clássico e enferrujado, foi central, fundamental, para tudo que os zapatistas – que formam esse movimento com ares de guerrilha pós-moderna – conquistaram de concreto. Nas palavras do subcomandante isso fica explícito, através de perguntas e repostas formuladas pelo próprio:
Primeira pergunta: Há mudanças fundamentais na vida das comunidades indígenas zapatistas?
Primeira resposta: Sim.
Segunda pergunta: Essas mudanças se deram a partir do levantamento de primeiro de janeiro de 1994?
Segunda resposta: Não.
Terceira pergunta: Quando foi então que se deram?
Terceira Resposta: Quando a terra passou a ser propriedade dos camponeses.
Quarta pergunta: Quer dizer que foi quando a terra passou às mãos de quem a trabalha que se desenvolveram os processos que se podem observar agora nos territórios zapatistas?
Quarta resposta: Sim. Os avanços em governo, saúde, moradia [habitação], alimentação, participação das mulheres, comercialização, cultura, comunicação e informação têm como ponto de partida a recuperação dos meios de produção, neste caso, a terra, os animais e as máquinas que estavam em mãos dos grandes proprietários. (Subcomandante Marcos, dezembro de 2007, grifo [sublinhado] meu)[8].
Note-se que até mesmo nos avanços na participação das mulheres Marcos aponta como tendo por base ou ponto de partida a tomada dos meios de produção. A sua ênfase parece vir de uma necessidade de frisar a base material do avanço e mudança de vida zapatista em todas as áreas. Na mesma linha seguem outras afirmações do subcomandante zapatista em outro dia do mesmo colóquio:
A destruição do sistema capitalista só se realizará se um ou muitos movimentos o enfrentam e derrotam em seu núcleo central, isto é, na propriedade privada dos meios de produção e de troca. (…) Atualmente não são possíveis os remendos ou as reformas. Em compensação são possíveis e necessários os movimentos anti-sistêmicos. (…) O movimento anti-sistêmico que pretendemos levantar no México parte dessa premissa fundamental: tem que ser com o outro, com o diferente que comparte dores e esperanças, que reconhece no sistema capitalista o responsável por sua situação de injustiça (Subcomandante Marcos, dezembro de 2007, grifo meu)[9].
É certo que o resgate de experiências e tradições, as redescrições e ressignificações, e mesmo a criação de representações coletivas mobilizadoras, foram constituintes do (neo)zapatismo, assim como do movimento operário histórico. Mas como Marcos fez lembrar enfaticamente naquele colóquio, se equivocam aqueles que o chamam de ideólogo do zapatismo ou de porta-voz do EZLN. Como frisou, ele é comandante militar[10]. Sua tarefa fundamental não é escrever comunicados e se apresentar em mesas. Nesse sentido a realidade zapatista corrobora a asserção do jovem Marx de que “a arma da crítica não deve substituir obviamente a crítica das armas”[11]. Parece que Marcos tentava avisar naquela ocasião, em meio a uma ofensiva militar contra os zapatistas, que não se muda a vida (apenas) com narrativas e redescrições, por mais importantes que sejam.
O tendencial idealismo lingüístico de Richard Rorty leva a esquecer que ao lado das armas da redescrição, opera uma redescrição armada, ou uma redescrição das armas. Ao lado da prática lingüística opera uma prática não-lingüística para mudar a vida.
Junto aos zapatistas, o MST tem sido o movimento social de estratégia anticapitalista mais significativo e influente nas últimas décadas, na América Latina e no mundo Ocidental. Embora com táticas diferentes, porque também em diferentes contextos, ambos têm como base de transformação e mudança de vida a tomada dos meios de produção. No caso dos zapatistas, de forma mais direta. No caso do MST, através de ocupações de terra para pressionar o Estado a cumprir leis, desapropriando terras, assentando famílias e lhes fornecendo meios para produção (além da terra). Uma das questões que se podem levantar para pensarmos perspectivas anticapitalistas nos centros urbanos é o que poderia significar hoje “tomar os meios de produção” nas cidades. O que significa tomar os meios de produção onde a economia, ou pelo menos o trabalho, se encontra cada vez mais em torno do setor de serviços e onde o subemprego, o desemprego e o trabalho autonomizado e flexível se tornam a regra?
NOTAS
1. Colóquio Aubry – “Parte VII. Sentir el Rojo. El Calendário e al Geografia de la Guerra”. Disponível aqui.
2. Ver o livro de William James, Pragmatismo: Un nuevo nombre para algunos antiguos modos de pensar. Barcelona: Orbis, 1985.
3. Será o Neopragmatismo Pragmatista? Interpelando Richard Rorty. Novos Estudos, v.74, mar. 2006. São Paulo: Cebrap, pp.125-138. Aqui.
4. Rorty quer dizer com ciência revolucionária a ciência cientificamente revolucionária e não a ciência da revolução. Ver, de Richard Rorty. Contingency, Irony, and Solidarity. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
5. Segundo o próprio Rorty, na obra acima citada: “O método [da redescrição] consiste em redescrever grandes porções de coisas de formas novas, até que se tenha criado um padrão de comportamento lingüístico que vá tentar a geração que está surgindo a adotá-lo, fazendo assim que eles procurem novas formas, mais apropriadas, de comportamento não-lingüístico; por exemplo, a adoção de um novo equipamento científico ou de novas instituições sociais” (p. 9).
6. Rorty é antiplatônico por ser antidualista, no entanto se encontra com Platão no status relativo que dão à atividade intelectual. Se Platão vê o filósofo que traz a luz sobre o senso comum, sobre o horizonte estreito da vida cotidiana mostrando a verdade, como rei que por isso deveria ser, Rorty vê o poeta, ou aquele que produz novos vocabulários e linguagens como “a vanguarda da espécie” (op.cit. p. 20). Para um a atividade intelectual funda o reinado do filósofo, para outro a vanguarda da espécie.
7. Os áudios do “Coloquio en memoria de Andrés Aubry” podem ser baixados aqui.
8. “Respuestas simples a preguntas complejas”, aqui.
10. Nas palavras de Marcos: “Algunas de quienes han moderado estas conferencias colectivas me han presentado como el vocero del EZLN, y hoy en la mañana leí que alguien se refiere a mí, además de cómo vocero, como “ideólogo” del zapatismo. ¡Órales! “Ideólogo”. Oiga, ¿y eso duele mucho? Miren, el EZLN es un ejército. Muy otro, es cierto, pero es un ejército. Y, además de la parte que ustedes quieren ver del Sup (quiero decir, además de sus hermosas piernas), como vocero, “ideólogo” o lo que sea, creo que ya tienen edad para saber que el Sup es, además, el jefe militar del EZLN”. (Colóquio Aubry – “Parte VII. Sentir el Rojo. El Calendário e al Geografia de la Guerra”, dezembro de 2007. Disponível aqui.
11. Carta de Marx a Arnold Ruge, maio de 1843. Disponível aqui.
Livro mostra que meios de produção do país pertencem a 6% da população
Vinicius Konchinski
Repórter da Agência Brasil
São Paulo – Os meios de produção de riqueza do país estão concentrados nas mãos de 6% dos brasileiros. É uma das conclusões apresentadas no livro Proprietários: Concentração e Continuidade lançado hoje (2), na sede do Conselho Regional de Economia (Corecon), em São Paulo.
A publicação é o terceiro volume da série Atlas da Nova Estratificação Social do Brasil, produzida por Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e vários economistas do órgão. Do livro, consta um levantamento que revela que, de cada 20 brasileiros, apenas um é dono de alguma propriedade geradora de renda: empresa, imóvel, propriedade rural ou até mesmo conhecimento – também considerado um bem pelos pesquisadores.
Em entrevista coletiva organizada para o lançamento do livro, Pochmann afirmou que a concentração das propriedades no Brasil é antiga e remete aos tempo da colonização. Desde a concessão das primeiras propriedades agrícolas, passando pela industrialização ocorrida no século 20, até o aumento da atividade financeira, os meios de produção sempre estiveram sob controle da mesma e restrita parcela da população nacional.
“A urbanização aumentou o número de propriedades e de proprietários, mas não acompanhou o aumento da população. A concentração permanece. Nós [brasileiros] nunca vivemos uma experiência de democratização do acesso às propriedades no nosso país”, disse.
De acordo com o livro, os proprietários brasileiros têm um perfil específico comum. A grande maioria tem entre 30 e 50 anos de idade, é de cor branca, concluiu o ensino superior, e não tem sócios.
Para Pochmann, o quadro da distribuição das propriedades brasileira é grave. O Brasil tem seus meios produção de riqueza mais mal distruídos entre os países da América Latina, por exemplo. E isso não deve mudar em um curto prazo, segundo o economista.
“Estamos fazendo reforma agrária desde os anos 50 e nossa distribuição fundiária é pior do que a de 50 anos atrás; nossa carga tributária onera os mais pobres; a única coisa que vai bem é a educação”, afirmou ele, citando dados que apontam que o percentual dos jovens que frequenta a universidade passou de 5,6%, em 1995, para cerca de 12%, em 2007.
Pochmann disse porem que mesmo com o aumento dos índices da educação, ele ainda está muito aquém do encontrado na Europa, onde 40% dos jovens têm diploma universitário. Ressaltou também que a mudança da distribuição das propriedades por meio da educação é a forma mais lenta de justiça.
http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/04/02/materia.2009-04-02.0921959486/view
Prezado Léo,
Você nos trouxe mais um bom artigo, parabéns! Eu gostaria apenas de chamar a atenção para o problema da ênfaze. Com efeito, Marcos pretendeu nesse colóquio trazer de volta as pessoas à terra, mostrando todos os avanços dos Neozapatistas na tomada dos meios de produção, lembrando ainda que a guerrilha não era só “informacional” (sobretudo em um momento em que sofriam investidas militares). No entanto, é preciso evitar que se volte ao reducionismo “clássico” que consiste em achar que tudo o mais é conseqüência da apropriação, pelos trabalhadores, dos meios de produção. Sei que não é o seu caso, mas há muitos que ficam à espreita de intervenções como essa do subcomandante para estufar o peito e dizer: eu não falei que esse negócio de internet e máscaras e festivais não são mais que meros acessórios!
Creio ser necessário desfazer de vez a busca pelas “determinações últimas” do ser social, se é o trabalho ou se são as representações/significações/discursos. É evidente que um movimento que invista magistralmente em palavras e na informação não terá conseguido nada se não resolver iniquidades concretas, mas a recíproca também é verdadeira! Penso, desta forma, que as perguntas feitas por Marcos poderiam ser rebatidas com estas outras:
1) Os Neozapatistas teriam resistido à superioridade militar do Estado mexicano se somente tivessem se levantado e se internado com armas na floresta Lancadona? Acho que não.
2) A utilização horizontal dos meios de produção e a gestão autônoma dos seus territórios seriam viabilizados somente pela tomada dos meios de produção e pela declaração da sua autonomia? Acho, mais uma vez, que não!
3) A formulação de uma nova representação social daquelas comunidades indígenas, do imaginário autogestionário e a criação incessante de novas instituições não foram fundamentais para consolidar o que hoje conhecemos como os Neozapatistas? Sim! Afinal, quantas não foram as revoluções que apenas significaram uma troca de senhores e que permaneceram reproduzindo opressões de toda a sorte?
Ora, a não ser que acreditemos numa suposta “prioridade ontológica do trabalho” como solo a partir do qual toda subjetividade seria fundada, não faz muito sentido tentar encontrar o que é mais importante num processo revolucionário, se é pegar em armas, democratizar radicalmente os meios de produção ou forjar novas significações. A ruptura desse nó górdio foi feita exemplarmente pelos Neozapatistas: investir em todas estas frentes.
Tudo bem, Léo, você polemiza com o Rorty, o qual, de fato, é idealista. Mas há vários outros pensadores e correntes no âmbito da “virada lingüística” que têm justamente enfatizado a dialética entre o lingüístico e as condicionantes societais não-lingüísticas. Veja-se, por exemplo, um Maingueneau, um Pêcheux, um Halliday ou Norman Fairclough. No mais, Castoriadis já demonstrou o papel do imaginário na instituição da sociedade, e há vários outros que falam em representação com um sentido completamente diferente do de Rorty, como, por exemplo, o pessoal da Psicologia Social. Não se pode, como diz o ditado, jogar fora o bebê com a água do banho, e sei que esta não foi a sua intenção.
Voltei para comentar as questões instigantes que você levanta no final.
É, realmente, um assunto espinhoso definir quais são exatamente os meios de produção no espaço urbano. É por aí, aliás, que têm caminhado pesquisas de importantes Geógrafos, como David Harvey. Na sua palestra no último Fórum Social Mundial, e em sua entrevista recente para o Le Monde Diplomatique, ele não apenas argumenta ser a propriedade imobiliária uma parte fundamental no processo de valorização do capital (o que já é ponto pacífico entre os pesquisadores do urbano), como lembra que as últimas crises foram desencadeadas por isso, e que é fundamental ao movimento contestatório de hoje combater essa faceta da valorização.
Isso nos remete à consideração feita por Negri nesta última coletânea de trabalhos seus que você mesmo resenhou aqui: o espaço urbano em si é uma unidade de extração de mais-valia, e não apenas de reprodução do capital.
Além disso, o pátio fabril, que por muito tempo foi o espaço maior de sociabilização da classe trabalhadora, foi esvaziado em prol de espaços atomizados (como pequenas confecções que funcionam em apartamentos) ou de uma sociabilidade difusa, como a rua, onde trabalha uma massa significativa de pessoas. É um grande desafio realizar um trabalho político nestas condições, e isso depreende (aqui voltamos à questão de antes) investir tanto em bases materiais geradoras de novas sociabilizações da classe trabalhadora como novas ordens discursivas e representações que viabilizem tal sociabilização.
Falo isso a partir da minha experiência junto ao movimento dos sem-teto no Rio de Janeiro. Por um lado, eles já conquistaram um espaço de sociabilização mais apropriado (as suas ocupações), fazendo frente, mesmo que em uma escala reduzidíssima, à ciranda do capital imobiliário. No entanto, muitos experimentos fundamentais (como a criação de cooperativas) – os quais poderiam fornecer as bases para a sua consolidação e expansão enquanto movimento anti-sistêmico – não deslancham pela condição de grande precariedade dos sem-teto: faltam-lhes dinheiro para comprarem insumos e tempo para se organizarem. Por outro lado, os mecanismos de superação destas deficiências muitas vezes não são alcançados pela introjeção das representações capitalistas referentes ao que seja o processo de trabalho e pela dificuldade de organização por falta de um discurso aglutinador, o qual, diga-se, as igrejas neopentecostais e as facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas parecem conseguir. Trata-se de um dilema que os movimentos urbanos de hoje têm tentado superar. A elucidação do papel da espacialidade urbana (onde vivem mais de 2/3 da humanidade hoje) no sistema capitalista é muito importante para a constituição de novas teorias e práticas revolucionárias. Você tocou mesmo num ponto central, pois tanto o MST quanto os Neozapatistas não estão nas cidades…
Olá Eduardo, obrigado pelas considerações. Novamente mais que enriquecedoras.
Sobre a ênfase no “materialismo” dos zapatistas, bem, as ênfases são sempre políticas. Por exemplo, creio que o materialismo que Marx apresenta em Ideologia Alemã, que ao menos por vezes parece muito redutiva, simplista e dura, tinha um objetivo político, da crítica ao idealismo dos pensadores alemãs. Politicamente é importante lembrar a base material da luta zapatista, porque a ênfase que normalmente é dada a luta deles é do aspecto comunicacional, deixando de lado, quase sempre por completo a tomada dos meios de produção. Até mesmo Marcos parece que tem feito questão de desfazer essa imagem.
Acho que as experiências práticas como a sua com movimentos de sem-tetos que podem nos ajudar a trazer respostas do que seria tomar os meios de produção nas cidades hoje em dia. Uma das questões interessantes que você tocou, e quem tem ocupado minhas reflexões, é a inoperância das “representações capitalistas referentes ao processo de trabalho” para ajudar a mobilizar e organizar os pobres das cidades. Acho que devemos ter um olhar crítico aos conceitos da economia política clássica e de sua crítica clássica (trabalho produtivo, classe produtiva, etc. e até mais-valia). Pois elas surgiram e foram utilizadas porque possuíam um valor prático para grupos sociais. Hoje elas possuem valor prático pra mobilização e valorização dos grupos sociais aos quais nos identificamos e dos quais surge ou pode surgir uma revolta e rebeldia contra o ‘sistema’? Bem, por aí vai, fico por aqui.
Ah, ia esqucendo de uma coisa. Onde discordo é na interpretação de Castoriadis. Não que ache sua afirmação incorreta sobre ele propriamente. Mas do jeito que você coloca parece que a questão para ele é que o imaginário muda a sociedade, o que pode parecer idealista. Acho que a questão para Castoriadis era mostrar que a história é aberta, acabar com os determinismos, seja marxista, funcionalista, estruturalista. A história e a sociedade é criação, o social-histórico não pode ser reduzido ao racional. Uma sociedade diferente implica um imaginário diferente, mas como emergirão novas significações imaginárias sociais, instituintes de uma nova sociedade, é que acho que afastaria Castoridis de um idealismo. Embora acho que Castoridis passa ao lado dessa discussão dicotômica idealismo/materialismo.
Um dos comentários de Eduardo Tomazine suscitou-me algumas reflexões. Não me refiro ao segundo comentário, acerca da necessidade de repensar a localização dos meios de produção e a própria noção de meios de produção, no actual contexto de precarização do trabalho na sociedade urbana. Eu próprio, desde há mais de uma dezena de anos, tenho procurado desenvolver modelos que integram os ócios no processo de produção da mais-valia. E embora me refira mais às funções económicas do que aos espaços, é claro que enquanto funcionar a lei da gravidade não haverá economia sem geografia.
A minha reacção negativa deve-se ao primeiro comentário, porque eu me incluo entre esses que «estufaram o peito», como o Eduardo Tomazine diz, com a intervenção de Marcos. Eu sou um desses com visões «reducionistas», para empregar de novo as palavras do Eduardo.
Entre os que me lêem ou ouvem, ninguém me considera um marxista ortodoxo, creio eu, mas uma das coisas que me leva a reivindicar-me do marxismo é a noção de estrutura hierarquizada que Marx introduziu nos modelos dialécticos. Preocupado inicialmente, como toda a esquerda hegeliana, com a crítica ao fenómeno religioso, Marx concebeu a partir daí a noção de alienação, e para desenvolver esta noção passou da crítica da filosofia à crítica da economia. A noção de mais-valia consiste na noção de alienação transposta para os processos económicos. Foi então que a filosofia da alienação se transformou em filosofia da praxis. E foi por este viés que, na sequência de Büchner − esse mesmo, o autor de Woyzeck − Marx identificou a classe social dos trabalhadores explorados como a única capaz de operar a mudança histórica decisiva e de acabar com o capitalismo.
A ênfase no processo de produção e de reprodução material da vida, que sustenta a noção de uma classe portadora de um destino histórico, é ditada pelas necessidades da engenharia social. Ah sim, eu sei que não está em moda falar disso, sobretudo na esquerda libertária à qual pertenço. É-se contra as ideologias manipulatórias e nada há de mais manipulatório do que os ensaios de engenharia social. Pretender acabar com a sociedade de exploração é, em termos históricos, abalançar-se a uma operação de engenharia social pelo menos tão considerável como foi a implantação das sociedades de exploração. Não percebo como alguém que pensa − notem que não digo um intelectual − pode querer lutar contra o capitalismo sem ser nos termos expostos por Marx na última das Teses sobre Feuerbach, com todas as ênfases que daí decorrem.
Dizer que tudo é importante ao mesmo nível e que tudo interfere em tudo não é cortar o nó górdio. Pelo contrário, é complicar ainda mais a meada. Os intelectuais gostam muito de evocar a importância das palavras, talvez porque seja esse o único plano em que dominam. A linguagem do «politicamente correcto» foi uma cândida tentativa de mudar o dicionário com a esperança de que assim, de algum modo, se transformasse a realidade, mas tudo o que se conseguiu foi ocultar ainda mais a realidade sob novas camadas de hipocrisia verbal.
Teremos avançado um grande passo quando se entender que o pós-modernismo não é mais do que uma intelectualização da futilidade.
Lendo o comentário do João Bernardo e pensando novamente nessas questões, me vem uma pergunta.
Não será também por que se está num momento de dificuldade de se ‘tomar os meios de produção’ nos centros urbanos, por que se está aparentemente distante da existência de movimentos que o possam fazer, que boa parte daqueles que querem mudar o mundo acabam agindo na direção de mudar a linguagem para mudar o mundo, se apegando a aspectos comunicativos e informacionais?
Se a hipótese faz sentido, é importante não confundir o que está a nosso alcance fazer hoje, imediatamente, com aquilo que de fato se deve fazer para mudar o mundo (a vida).
Acho pouco provável que os zapatistas, ou mesmo os sem-terra brasileiros, não dêem maior importância à tomada dos meios de produção na sua mudança de vida. Pode-se imaginar os zapatistas possuindo maior poderio militar e assim podendo dispensar os comunicados do subcomandante Marcos e sua guerra midiática, mas não é possível conceber as mudanças na vida dos zapatistas sem a tomada dos meios de produção.
Espero não entrar falando besteira em cima da discussão. Mas essa questão a respeito dos meios de produção, se temos prática mais importantes ou não, me fez lembrar os quadros de fotografia de firmas, de empresas, ou mesmo o Orkut e outros programas de relacionamento, que possibilitaram uma espécie de universalização da coluna social.
Pois bem, é comum nos quadros de fotografia de empresas ou nos álbuns de fotografia das pessoas elas aparecerem do lado de seus chefes, no ambiente de trabalho, ou de seus patrões. Eu não sei se é possível representar exatamente numa foto o momento em que se recebem as ordens, pois as pessoas, embora apareçam do lado dos patrões/chefes, mesmo no ambiente de trabalho, surgem nas fotos como se não estivessem a trabalhar e de uma forma em que não se vê hierarquizações. Estão lá, ao lado do patrão e do chefe, mas eles aparecem nas fotos como se fossem amigos.
Se na representação de suas vidas cotidianas as pessoas procuram representar o cotidiano de exploração e opressão como não sendo uma exploração nem uma opressão é porque, de alguma forma, elas se envergonham de tudo aquilo. E, curiosamente, envergonham-se das hierarquias no campo de trabalho muito mais do que das existentes na esfera religiosa, cultural, educacional, etc. Há algo de mais incômodo em ter um patrão que ter um papa: óbvio, o papa proibe a camisinha e os brasileiros não o obedecem, mas se não seguem vossos patrões as coisas ficam feias.
Lembrei de um relato que li anos atrás sobre uma visita às comunidades zapatistas de Chiapas.
Destaco aqui uma frase do relatante: “A produção é um dos pilares mais importantes da autonomia zapatista, que, junto e em constante relação com a saúde e a educação, cobre grande parte das necessidades das comunidades.”
O relato inteiro pode ser lido em: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/01/301908.shtml
Estou de acordo com o arremate do comentário do João Bernardo. No entanto, não vejo a relação entre os meus comentários e o pensamento pós-moderno. Não considero uma postura intelectual e politicamente pertinente taxar todo o pensamento que não se filie ao materialismo-histórico como sendo pós-moderno e/ou merecedor de constar no índex dos militantes revolucionários. Afinal, em nenhum momento dos meus dois comentários propus secundarizar os meios de produção e as relações de trabalho enquanto condicionantes do ser social; apenas foram feitas objeções à tendência de se considerarem meramente acessórias outras dimensões que não se reduzem completamente à produção material.
Castoriadis, para trazer um autor que já mencionei – e que não é, absolutamente, pós-moderno –, propôs ampliar a práxis revolucionária de maneira a se buscar superar as mais variadas relações heterônomas (de classe, de gênero, de geração etc.), ampliando igualmente a noção de alienação, a qual diz respeito, de modo geral, à alienação da sociedade diante das suas próprias instituições (no sentido amplo do termo instituição). Disso decorre não ser suficiente à ação revolucionária apenas superar a alienação no âmbito do trabalho, como se, por si só, isso levasse à superação de todas as relações opressoras. É preciso, portanto, que todos os principais elementos concernentes à instituição da sociedade (e aí se incluem o discursivo e o simbólico) sejam considerados. Não vejo como esse tipo de preocupação pode, de algum modo, se opor à décima primeira tese sobre Feuerbach evocada pelo João Bernardo?
No mais, não me parece que a ênfase sobre as palavras seja mera preocupação escolástica e uma futilidade. Afinal, quem mais as têm dominado são, justamente, os homens de ação, que aquilatam a sua importância política. Embora o subcomandante Marcos tenha realçado a centralidade da tomada dos meios de produção pelos neozapatistas como sendo a ação viabilizadora de todas as transformações operadas em seus territórios autônomos, os neozapatistas não demonstraram, por seu turno, qualquer reticência em investir pesadamente em símbolos e discursos, em criar novas instituições políticas e ressignificar, por exemplo, o papel das mulheres indígenas no que respeita à sua participação nos assuntos da coletividade. As tarefas práticas dos movimentos sociais demonstram não haver uma prioridade entre qualquer destas “dimensões” do real, se são os meios de produzir a vida materialmente ou as maneiras de significá-la. Uma não pode vir antes ou depois da outra, pois apenas são separáveis pelas exigências de categorias intelectuais apriorísticas.
A respeito dos ajustes feitos pelo penúltimo comentário do Leo Vinicius, concordo com eles em parte. É bastante provável, de fato, que as dificuldades que você apontou tenham levado a formulações intelectuais que acabem por abandonar o objetivo de transformar a instituição global da sociedade (abandono que talvez seja a principal característica do pensamento pós-moderno), pois abdicam da necessidade de apropriação dos meios de produção e sua instituição sobre bases autônomas. Não obstante isso, re-enfatizo que a linguagem também é necessária para se mudar o mundo, e que não são apenas os que abriram mão do projeto revolucionário que têm se apegado a ela, mas também os revolucionários. A propósito, tendo o João Bernardo muito corretamente apontado o trabalho de engenharia social como indispensável para se acabar com a sociedade de exploração, desconheço quaisquer destes empreendimentos engendrados pelas sociedades heterônomas que tenham subestimado um esforço lingüístico e simbólico consciente. Para encerrar, meu caro Leo, diria ser possível tão-somente imaginar (no sentido reduzido) estes cenários que você esquadrinhou sobre as ações dos neozapatistas; A realidade concreta, no entanto, tem demonstrado o contrário em todas as experiências revolucionárias durante o período em que elas foram dignas deste nome. Lutar em um front não implica desguarnecer o outro.
Caros, muito bom o texto do Léo e produtivo este debate.
Como também eu estive a refletir sobre ele, coloco abaixo algumas (longas) linhas.
Para mim, me parece que pelo zapatismo ser um movimento complexo e rico em multiplicidades e ambiguidades, isto significa que ele pode ser visto por vários ângulos, a depender da preferência do observador, enaltecendo o que mais convém e esquecendo (as vezes convenientemente) os outros elementos que o conforma. Assim, determinado grupo pode enxergar no zapatismo somente os valores e a cultura libertária, a negação ao poder, a democracia de base, os avanços em um conflito comunicativo e midiático, a cosmogonia indígena, os valores de esquerda, o retorno de uma utopia comunista etc.
Ressaltar a multiplicidade que constitui o zapatismo não significa recair num pós-modernismo multiculturalista onde tudo equivale a tudo e, portanto, não há diferença entre nada. Ao contrário, significa colocar o movimento no plano da totalidade e a partir daí problematizar as suas diversas vertentes, para extrair de forma mais consistente as suas contribuições no projeto de construção de “outro mundo”.
De maneira geral há uma dívida histórica da esquerda, isto é, de seus intelectuais, dos partidos, dos sindicatos, em incorporar diretamente, em sua luta e em seus programas, setores sociais como as mulheres, os negros, os indígenas, setores informais. Este fato é fruto de organizações verticais, mais corporativas – historicamente vinculadas aos trabalhadores “estáveis” –, e incapazes de atuar de forma mais horizontal, com uma maior abrangência categorial.
Atualmente se alterou o terreno da luta de classes, visto que se ampliou o âmbito da dominação e suas formas de expressão, incorporando ao processo de exploração e reprodução do capital desde atividades que não eram identificadas como produtivas até o próprio ócio. Obviamente, essas transformações trazem consigo implicações tanto na esfera subjetiva quanto material do trabalhador.
Logo, a construção de identidades coletivas em rebeldia frente ao capital se converte em espaços de resistência ou de subversão, quando é a expressão de um movimento dialético que luta no âmbito do pensamento e da prática, que busca no próprio processo de identificação a sua superação, quando não se limita a uma identidade particular que pode ser facilmente absorvida e assimilada pelo capital, em um mundo repleto de identidades fragmentadas, ou seja, quando se trata de uma recuperação da identidade como elemento eficaz de resistência, em detrimento de uma miscelânea pós-moderna em que a identidade já transformada em mercadoria é esvaziada de conteúdos radicais e por isso aceita.
Parece-me que uma das grandes forças dos indígenas zapatistas reside precisamente no fato deles conseguirem compreender como seus interesses não são distintos dos interesses de todos os que sofrem a exploração e opressão generalizada desse sistema social e, portanto, o problema não se encontra apenas – ele também se encontra, mas não tão somente -, no estatuto dos indígenas no capitalismo, mas no próprio capitalismo, que é criticado hoje pelos indígenas na América Latina. Dentro de sua luta, os zapatistas ressignificam instituições, discursos e símbolos, mas concretamente o fizeram a partir do momento em que tomaram em suas mãos os meios-de-produção, para poderem garantir sua subsistência e a partir daí travarem o enfrentamento do ser em prol de uma existência humanizada, isto é, garantirem também o desenvolvimento dos outros aspectos da “emancipação humana”.
A crítica ao capital, enquanto relação social deve apreender a dimensão de exploração presente nas relações capital/ trabalho bem como as opressões presentes em diversas formas de subordinação e hierarquização.
É certo que na contemporaneidade, indubitavelmente, há uma multiplicidade de resistências e heterogeneidades de conflitos, que por sua vez iluminam uma pluralidade de formas de opressão e dominação. Não reduzindo-as a uma relação mecânica entre capital e trabalho, muitas delas se incorpora em uma luta mais antiga, contra o patriarcado, o racismo etc.
Entretanto, por mais que estas formas de luta se constituam como um imperativo para a construção de uma sociedade mais justa e mesmo para a emancipação humana, não podemos perder de perspectiva a questão da desigualdade de classes como um dos pilares básicos da exploração, opressão e reprodução do sistema capitalista. Neste sentido, o enfoque na existência das classes se faz primordial, pois sem o fim da diferenciação de classes, se recolocaria a força da lógica sistêmica e totalizadora do capital, reproduzindo a submissão a um sistema produtor e (apropriador) de desigualdades.
Não esquecendo o peso e nem relegando a um segundo plano essa heterogeneidade de lutas, e apesar de todas as mudanças que elas invocam serem necessárias para um “outro mundo”, que não tenha a exploração, a opressão e o domínio como modo de ser, e ainda sendo certo que a simples tomada dos meios-de-produção não é suficiente para concretizar essa luta anti-sistêmica (entendida a de identidade, gênero, racismo etc.), também essas lutas isoladas da tomada dos meios de produção não se fazem suficientes. Mas aí temos uma relação que não é igual, apesar de ser complementar, pois as mudanças anti-sistêmicas ainda que possam avançar sem uma mudança na detenção dos meios de produção, elas também podem ser assimiladas pelo capitalismo, e não se acabaria com a contradição central desse sistema. Já com a tomada dos meios de produção se pode levar adiante com mais vigor essas mudanças anti-sistêmicas, por isso a luta anti-sistêmica se vincula com a luta anticapitalista. No caso zapatista, estas várias lutas se conjugam sem o abandono da perspectiva de fim do capitalismo, reforçam a necessidade de se expropriar os meios de produção e mantêm a centralidade da luta de classes.
Nesse momento, o que me parece importante reter é exatamente a amplitude do conceito de classe e, mais que isso, a partir da luta da classe trabalhadora, acentuar a possibilidade de se criarem novas práticas culturais, novas formas de sociabilidade, de expressões ideológicas, de instituições e redes de solidariedade que se colocam como antagônicas ao modelo societal capitalista. A partir de uma noção ampliada da classe trabalhadora nos é possível compreender melhor a multiplicidade de dimensões que se expressam em alguns conflitos sociais contemporâneos (que, em certo sentido, não se “encaixam” em formas e reivindicações “tradicionais” da classe operária, camponesa ou dos indígenas e suas instituições), sendo que diversas dessas lutas se inscrevem em uma dialética dos conflitos sociais (que combina diversos tipos de reivindicações), na busca por novas práticas e convergências sociais tendo por norte a crítica às relações de opressão social e exploração capitalista.
Olá, meus caros, bom dia!! Vocês têm informações de algum artigo ou comentário/crítica/análise do Castoriadis sobre o EZLN e o “neozapatismo ” (a partir de 1994….)??
Parabéns pelo trabalho maravilhoso aqui.
Abraços,
Renato