Proudhon e sua contribuição ao Brasil

A grande questão levantada por Proudhon foi a da propriedade, que para os anarquistas do Brasil estava ligada à da educação. Os anarquistas no Brasil fundaram diversas escolas modernas e duas universidades populares, e publicaram e distribuíram livros didáticos destinados às crianças, sempre dentro da orientação de que os trabalhadores e seus filhos não deveriam receber sua formação dentro de escolas ligadas ao Estado, à burguesia e a credos religiosos. Por Milton Lopes*

A 15 de janeiro de 2009 transcorreram 200 anos do nascimento de Pierre-Joseph Proudhon, ocorrido na cidade de Besançon, em França. Militante e pensador anarquista, Proudhon foi considerado por Bakunin o “mestre de todos ao anarquistas”, tendo exercido imensa influência sobre os movimentos sociais já a partir da década de 1840. Operário, tipógrafo e autodidata, desenvolveu teorias sobre a sociedade baseadas na cooperação, no mutualismo e no federalismo. Em 1840 publicou seu famoso livro O que é a Propriedade?, respondendo à interrogação do título com a declaração de que “toda propriedade é um roubo” e onde pela primeira vez se declarou anarquista no sentido com que esta palavra é compreendida pela teoria política contemporânea. Karl Marx elogiou este livro até o momento em que Proudhon, em 1846, recusou juntar-se ao grupo de correspondência socialista liderado por Marx, já criticando seus métodos dogmáticos, o que levou este a escrever uma crítica à obra de Proudhon Sistema das Contradições Econômicas ou Filosofia da Miséria com livro que invertia o título proudhoniano: a Miséria da Filosofia, de 1847. Proudhon também foi alvo das críticas de Marx porque reagia a idéias de hegemonia do movimento social pelos socialistas alemães. Em 1848 Proudhon, no contexto da revolução proletária de fevereiro de 1848 na França, esmagada em junho pela reação burguesa, foi eleito deputado à Assembléia Constituinte, tendo apresentado um único projeto antes de renunciar ao mandato. Tal projeto previa o fim da propriedade e foi apresentado por Proudhon através de um discurso em que expunha a oposição entre operários e burgueses. Em 1849 Proudhon tenta organizar um Banco do Povo, sem sucesso.

Seus artigos na imprensa lhe valeram vários processos, sendo obrigado a exilar-se na Bélgica. Voltando à França é preso em 1849, cumprindo pena de 3 anos. Algum tempo depois de sair da prisão a publicação de seu livro Da Justiça na Revolução e na Igreja lhe vale novo processo, tendo que exilar-se novamente na Bélgica. Antes disso publicara outro livro, Da Idéia Geral da Revolução no Século XIX, em que demonstra como os remédios para os males sociais não devem ser buscados no nível político, já que têm suas raízes na economia. De volta do exílio publicou outros livros, defendendo que o proletariado deve emancipar-se sozinho. As idéias de Proudhon foram fundamentais para o desenvolvimento posterior do pensamento libertário. Morreu em 1865, pouco depois do início da Associação Internacional dos Trabalhadores, também conhecida como a Primeira Internacional (1864-1877), que deveu grande parte da iniciativa de sua fundação a operários franceses seguidores seus [1].

A idéia central de Proudhon sobre a propriedade, exposta em seu livro célebre, está na demonstração de que a apropriação individual da riqueza, que é um produto social do trabalho coletivo da humanidade, é um crime social. Com a publicação de sua primeira grande obra, O que é a Propriedade?, Proudhon conseguirá visibilidade no cenário político, social e acadêmico. E é nesta mesma década, portanto em breve período, que sua influência chega ao Brasil. O desembarque de suas idéias no país parece haver ocorrido na região nordeste na Insurreição Praieira de 1848-49 em Pernambuco. Acontecida na onda das revoluções que sacodem o mundo naquele momento, tendo a França como epicentro, nela podemos encontrar um cunho de crítica e revolução social, com um discurso já dirigido contra oligarquias latifundiárias. Esta influência sobre os praieiros teria se dado através de ideólogos como Antonio Pedro de Figueiredo, em que podemos vislumbrar um eco de Proudhon quando escrevia em anos anteriores à Insurreição: “Matai o despotismo na pessoa da grande propriedade territorial” [2].

Efetivamente, na década de 1840 os brasileiros já liam as obras de Proudhon e outros teóricos socialistas franceses, tentando aplicar suas idéias à realidade brasileira. O impacto de Proudhon na região nordeste ocorreu por meio da ação de alguns divulgadores,que chegaram a constituir uma presença socialista pioneira no Brasil. O principal deles foi o já citado jornalista e professor Antonio Pedro de Figueiredo, que nos anos de 1846 a 1848 editou em Recife a revista O Progresso, em que foram divulgadas e comentadas as idéias dos sistemas socialistas da época, dentre as quais as de Proudhon [3]. Nascido em 1814, de origem humilde e autodidata por formação, Figueiredo tornou-se professor de Geometria, Português, História e Geografia no liceu de Pernambuco (o equivalente de hoje a um colégio estadual), embora nunca conseguisse ensinar na prestigiosa faculdade de Direito, então em Olinda, cujas cátedras eram preenchidas por membros da elite nordestina [4]. A questão da propriedade, analisada por Proudhon poucos anos antes, já naquela época seria abordada por Antonio Pedro com foco na questão agrária. Propondo a repartição das terras, considerava a grande propriedade territorial uma “entidade terrível, que tem arruinado e despovoado muitos países”. A 24 de abril de 1847 ele escreve noProgresso: “Reconhecemos, numa palavra, que a divisão do nosso solo em grandes propriedades era a fonte maior de nossos males”. Antonio Pedro também percebe o potencial para uma revolução social ao escrever em 1846 “existem certamente mais de um solicitador de emprego, mais de um empregado demitido, mais de um operário sem trabalho, que sonham com revoluções” [5].

Os ideais difundidos por Antonio Pedro vão influenciar a ala mais “esquerda” do então Partido Liberal, que desencadeará a Insurreição Praieira, já que ele publica em sua revista notícias referentes às revoluções de fevereiro e junho de 1848 na França. Além disso, suas idéias têm boa repercussão entre os estudantes da faculdade de Direito, que por diversas vezes manifestam solidariedade aos revolucionários franceses de 1848. Esta atenção por parte dos estudantes vai lhe valer a ira de um professor de economia política reacionário da faculdade, Pedro Autran da Mata e Albuquerque, em 1852. A 31 de julho daquele ano este entra em polêmica com Figueiredo, publicando artigo em jornal católico em que nega ser socialista e acusa o socialismo de se basear na comunhão de bens e de mulheres. Figueiredo, já conhecido como socialista em Recife, rebate o desafio de Autran, desafiando aquele a provar esta afirmativa. Autran responde ainda no jornal católico A União em 7 de agosto citando Proudhon, “um escritor muito do vosso peito, que não é jesuíta, mas ateu, nem absolutista, mas anarquista”, além de outros autores socialistas. A polêmica se encerra em setembro com o Diário de Pernambuco, que veiculava os artigos de Figueiredo, recusando-se a continuar a publicá-los [6].

Mas no jornalismo político de Pernambuco de então não só Antonio Pedro tinha conhecimento dos escritos e da trajetória de Proudhon. A questão da participação na política institucional, criticada por Proudhon a partir, como já vimos, de renúncia a seu mandato na Assembléia Constituinte da França, é analisada por outro jornalista, e depois praieiro, Afonso d’Albuquerque Melo em seu jornal A Reforma. A 2 de agosto de 1848 ele escreve: “já não há partidos políticos no Brasil; pois não se pode dar o nome de partido político a diversas frações da população que, ainda que divididas por ódios mui encarniçados, todavia não professam princípios diferentes”. Ainda no A Reforma (27 de julho de 1848) Albuquerque havia registrado a eleição de Proudhon para a Assembléia Constituinte na França. Nesta mesma edição do jornal, Proudhon é elogiado com entusiasmo. Mais tarde Afonso de Albuquerque irá renunciar a posições revolucionárias, adotando apenas o tipo de republicanismo à maneira do que foi adotado no Brasil em 1889 [7].

Para a difusão das idéias de Proudhon e outros socialistas franceses em Pernambuco contribuiu ainda a presença em Recife nos anos de 1840 a 1846 de Louis Vauthier, engenheiro francês, contratado pelo governo da então província para a realização de obras públicas. Adepto de Fourier, o engenheiro, no entanto, propôs-se a um diálogo com personalidades locais sobre as questões ligadas ao socialismo, de um modo geral [8]. Neste sentido também é bom lembrar que a difusão destas idéias se deve à ampla circulação do livro francês no Brasil na primeira metade do século XIX. Vauthier, em seu diário, admira-se com a grande quantidade de livros socialistas franceses à venda em livrarias do Recife quando de sua estada naquela cidade. Nos anúncios de venda de livros nos jornais da época a quantidade de livros em francês à venda é superior àqueles oferecidos em inglês ou latim. Não só o livro de literatura, de filosofia, de política, mas também o livro técnico. O idioma francês era a segunda língua da população culta e era da França de onde também vinham as idéias socialistas [9]. Se consultarmos o catálogo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro perceberemos que ali existem vários livros de Proudhon em primeira edição. Os franceses também se estabeleceram no Brasil como livreiros ou mesmo editores. Dentre os livreiros possivelmente haveria exilados da Comuna de Paris, ocorrida em março de 1871, que foram objeto de pedido de deportação do governo de Thiers, sendo tema de debates parlamentares. Proudhonianos haviam lutado na Comuna e é possível que alguns deles chegassem ao Brasil e aqui exercessem influência cultural, política e social [10]. Em relação aos editores temos o caso dos irmãos Garnier, que, embora franceses, estavam longe de ser militantes políticos, sendo, isto sim, refinados comerciantes. Sua casa editora tinha sede em Paris e filial no Rio de Janeiro, na rua do Ouvidor, centro elegante da então capital do Império, de onde seguiam originais de autores brasileiros em português para serem compostos, revisados e impressos… na França. A sede francesa dos irmãos Garnier editaria em 1849 o livro de Proudhon, O que é a Propriedade?[11], no que possivelmente foi uma segunda edição de sua famosa obra. Em um catálogo editado pela mesma Garnier, mas desta vez a do Rio, em 1870, anunciavam-se nada menos do que 28 obras de Proudhon que ali podiam ser adquiridas [12].

Os Garnier durante décadas mantiveram praticamente o monopólio da edição no Brasil. O autor mais ilustre editado por eles foi Machado de Assis, que parece haver feito suas leituras de Proudhon. As virtudes de Proudhon como estilista já foram destacadas, inclusive por autores politicamente contrários a ele, e é possível que Machado o apreciasse neste sentido. Em 1878 Machado cita Proudhon por duas vezes em seus artigos de jornal. A primeira vez em uma crônica e a segunda em uma crítica ao romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós, em que reprova ao escritor português a maneira como transpõe para o romance “reminiscências e alusões de um erotismo que Proudhon chamaria onisexual e onímodo”.

Já no seu romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881, Machado, ao narrar o encontro do protagonista Brás Cubas com Quincas Borba no Passeio Público do Rio, mostra Brás enjoado com a ruína material de Quincas, filho de família abastada. Ao fazer menção de se despedir, Brás é retido por Quincas, que apela para que aquele “Não vá, sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria”. Isto caracterizaria uma menção irônica de Machado à obra Filosofia da Miséria de Proudhon, lançada em 1846. A própria inversão do título da obra de Proudhon, usada por Marx em seu livro Miséria da Filosofia, teria sido utilizada por Machado em crônica de 27 de outubro de 1875 em que este escreve “concordávamos todos com Hamlet, relativamente à miséria da filosofia”. Vale lembrar que a obra de Marx, publicada em 1847, não era conhecida no Brasil, mesmo quase trinta anos após sua publicação original.

Em 1896 Machado também, por duas vezes como em 1878, faz menção a Proudhon em seus artigos na imprensa. Na primeira vez, comentando declarações do presidente da França durante recepção de ano novo, lembra proclamação de Napoleão III, também em um ano novo, em 1863, em que este afirmava que os tratados que haviam regido a Europa desde 1815 tinham deixado de existir. Machado então comenta: ”um socialista, Proudhon, respondeu-lhe perguntando em folheto se os tratados de 1815 poderiam deixar de existir sem tirar à Europa o Direito Público”. Esta era uma referência ao panfleto de Proudhon Si les Traités de 1815 ont Cessé d’Exister? Ainda em 1896 Machado escreve: ”…se a propriedade é um roubo, como quer o publicista célebre…” E finalmente no romance Esaú e Jacó, de 1904, uma frase de Proudhon é citada por duas vezes, mostrando como as leituras do filósofo francês permaneciam na memória do escritor brasileiro, já idoso naquele momento.

Ainda no campo literário poderíamos citar mais dois escritores brasileiros do século XIX influenciados por Proudhon. Os dois pertencentes à ala mais jovem do Partido Republicano, fundado em 1873. Um deles, Euclides da Cunha, expulso da Escola Militar no Rio, passa uma temporada em São Paulo, iniciando uma série de artigos no jornal Província (hoje Estado) de S. Paulo sob o pseudônimo de Proudhon [13]. No primeiro deles, publicado em duas partes a 29 de dezembro e ao início de 1889, Euclides afirma que o republicano deve ser um revolucionário, jogando com o conceito proudhoniano de “Destruir para Construir” (Proudhon usava a epígrafe em latim Destruam et Edificabo em suas obras). Ainda no mesmo jornal em 1889 Euclides recusa aos republicanos a pecha de anarquistas no sentido que lhe é dado durante boa parte do século XIX como de desordeiros e inimigos de qualquer tipo de ordem, postulando, no entanto, que estes poderiam reivindicar o título no sentido proudhoniamo, bastando para isto, “um apelo à lógica invencível do pensador mais original do nosso século – Proudhon” [14]. Esta tendência ao proudhonianismo e ao anarquismo parece, no entanto, haver sido apenas de caráter sentimental e temporário em Euclides. Posteriormente ele adotará idéias de cunho socialista e não anarquista [15].

Raul Pompéia é outro escritor da época a sofrer influência de Proudhon. Pompéia, é bom lembrar, publica em 1888 sua maior obra, O Ateneu, romance que contém uma grande crítica ao autoritarismo da sociedade de sua época, embutida na instituição educacional representada pela escola. Em 1883 Pompéia, ainda estudante em São Paulo, escreve suas Canções sem Metro, só publicadas postumamente em 1900. Ali cita frase de Proudhon sobre a necessidade de ação. Com um ideal republicano-igualitário, Pompéia apaixonadamente junta-se a manifestações de rua promovendo arruaças, expondo-se a conflitos. Tendo nos primeiros anos da república aderido ao chamado jacobinismo de apoio a Floriano Peixoto, advogou um nacionalismo extremado. Suas ações e escritos denotam um conflito interno entre o revolucionarismo de Proudhon e o pessimismo de Schopenhauer. Sua morte prematura por suicídio em 1895 não nos permite conjeturar como teria sido sua trajetória política futura [16].

O fato é que os filósofos libertários da França, entre os quais se encontrava Proudhon, agitaram os rumos de um classicismo místico que orientava o pensamento colonial provinciano brasileiro, formando duas gerações de escritores, poetas, artistas e revolucionários, levando-os aos ideais republicanos e socialistas, dentre os quais, mais tarde, o anarquismo.

O anarquismo, como é sabido, surgirá no Brasil a partir do final da década de 1880, em um período econômico de industrialização, com a vinda de grandes contingentes imigratórios da Europa e um pouco mais tarde da Ásia. Terá como conseqüência a formação de expressivos núcleos operários nas grandes cidades, principalmente Rio e São Paulo e mesmo em alguns locais do interior do país. Um dos efeitos da formação dessa classe operária brasileira será o aparecimento de uma imprensa não só especificamente ideológica (anarquista ou socialista) ou sindical, mas também de periódicos dedicados aos operários, de maneira geral. Mesmo essa imprensa dedica elogios a Proudhon, como o jornal Voz Operária, de Salvador, que em sua edição de 6 de maio de 1894 exalta as idéias do filósofo anarquista francês, dentre outros teóricos socialistas [17].

Entre os socialistas considerados pioneiros do pensamento marxista no Brasil, Proudhon também terá seus leitores. O doutor Silvério Fontes, médico sergipano radicado em Santos, chega ao socialismo após a leitura de diversos autores de esquerda, alguns dos quais anarquistas, incluindo Proudhon. Silvério Fontes será a principal figura na fundação e funcionamento de um Centro Socialista em Santos e na edição da revista A Questão Social. O filho do doutor Silvério, o também médico e, além disso, poeta Martins Fontes, no entanto, será até seu falecimento em 1937 um militante anarquista, ainda a partir de seu entusiasmo juvenil por autores anarquistas entre os quais Proudhon. Acreditamos que tenha travado conhecimento com os livros do pensador libertário na própria biblioteca paterna e pela leitura de um escritor que admirava muito, o romancista português Eça de Queirós, que cita muito Proudhon em seus livros, tendo sido mesmo leitor e divulgador do filósofo em sua juventude [18]. O marxismo não possuía, até após a revolução russa de 1917, muitos adeptos ou conhecedores de sua filosofia no Brasil. Só a partir daí é que Astrojildo Pereira e Otávio Brandão, ex-anarquistas, passam a difundir o pensamento marxista. Esta preocupação em traçar um divisor de águas entre as duas ideologias, representadas nas figuras de Proudhon e Marx, é patente, por exemplo, já na terceira edição da revista Movimento Comunista, editada pelo recém-fundado PCB, que procura em março de 1922 mostrar, com a publicação de tradução de texto de Charles Rappoport, a diferença entre as concepções de socialismo de Proudhon e Marx, ao afirmar que os marxistas também pretendem a abolição do Estado, não de imediato, mas no futuro [19].

A difusão de Proudhon no Brasil no nascente movimento operário ganhou muito com duas edições sucessivas em Portugal (1908 e 1909) da obra O Anarquismo, de autoria de Paul Eltzebacher, em que há todo um capítulo contendo uma exposição do pensamento proudhoniano. Assim, as teses de Proudhon, pelo menos uma síntese delas, passam a ser acessíveis em língua portuguesa [20]. Eltzebacher era um juiz alemão que originalmente publicou este estudo em Berlim em 1900, considerado bastante objetivo até pelos anarquistas.

Mas com ao advento do anarquismo no Brasil quais seriam os temas que Proudhon abordou que mais diriam respeito aos anarquistas daqui? Basicamente dois.

O primeiro deles, está ligado à questão do anticlericalismo e do ateísmo. Proudhon pode ser considerado um dos defensores do chamado livre pensamento, a partir até de sua frase de que a “filosofia é a rebelião contra o jugo religioso”. A Igreja Católica ao final do século XIX e parte do XX esteve bastante ligada a movimentos reacionários. No Brasil o catolicismo era a religião oficial de Estado até a proclamação da República em 1889, que separou a Igreja do Estado. Muitos militantes políticos pretendiam zelar para que esta separação não fosse ameaçada. A Igreja também propagava nos meios operários a doutrina da encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII, que prescrevia aos operários o reformismo sob os auspícios do catolicismo, criando um movimento sindical ligado aos sacerdotes católicos e que contava com as simpatias dos patrões.

No Brasil a luta contra a influência do clero já datava do Império. No entanto, sob a república parece haver ganho maior impulso, com a criação, já a partir de 1901, das chamadas Ligas Anticlericais, que funcionariam até a década de 1930, em que os anarquistas tiveram participação fundamental, mas que também congregavam republicanos, socialistas, maçons, positivistas, além de representantes de religiões que se julgavam perseguidas ou marginalizadas pelo catolicismo, como o espiritismo e igrejas protestantes. Paralelamente começa a ser publicada em vários pontos do país uma imprensa com a mesma temática cujo maior exemplo será o jornal A Lanterna, de São Paulo, editado em quatro períodos diferentes de 1901 a 1935.

Alguns militantes anarquistas dedicaram grande empenho à propaganda anticlerical. O maior expoente desta tendência entre os anarquistas brasileiros talvez tenha sido o operário espanhol José Martins, que ao início da década de 1920 publicou obra bastante pesquisada e erudita em 2 volumes, intitulada História das Riquezas do Clero Católico e Protestante [21]. Martins considerava Proudhon “um terrível iconoclasta e o maior dialético do século XIX (…) Foi ele que no seu livro O Que é a Propriedade? definiu a teologia como “ciência do infinitamente absurdo” [22].

Neste aspecto é significativo o testemunho do jurista Joaquim Pimenta, que chega a Fortaleza na primeira década do século XX para estudar na faculdade de Direito. Pimenta estava então na faixa dos 20 anos, bastante convicto das idéias do pensamento religioso católico. De origem humilde, tinha conseguido ingressar na academia graças ao apoio de padres católicos. Ao chegar a Fortaleza, em meio a seus estudos, descobre pensadores anarquistas, dentre os quais Proudhon, de que passa a copiar citações em folhas de papel almaço. E dentro dele “soavam vozes de rebelião. Era Proudhon investindo contra Deus e contra o Estado, repetindo com Brissot, de velhos padres da igreja, que a propriedade é um roubo” [23]. A mudança de orientação filosófica e ideológica de Pimenta o levará a fundar com colegas um jornal anarquista, O Regenerador [24], e é que ele, inicialmente defensor do pensamento clerical, também ajuda a fundar um jornal anticlerical, O Demolidor. Os títulos destas publicações parecem demonstrar, mais uma vez, uma certa relação com o conceito proudhoniano de Destruam et Edificabo.

Mas a grande questão levantada por Proudhon, e que será efetivamente de maior importância para os anarquistas não só no Brasil como em todo o mundo, será a da propriedade, que para os anarquistas do Brasil está ligada também à da educação. Em um folheto de 1912, Semeando para Colher [25], o trabalhador gráfico anarquista Carlos Dias define o proprietário como usurpador e, depois de citar a frase famosa de Proudhon, afirma que “açambarcar o fruto do trabalho alheio, educando adrede as massas para este fim, ministrando-lhes nas escolas ensinamentos que as submetem a todas as explorações, dando a esse ensino um cunho de verdade insofismável é vil e desumano” [26]. Para combater o ensino alienante ministrado pelas elites os anarquistas no Brasil fundarão diversas escolas modernas no modelo de Ferrer em vários estados, tentarão aplicar no país a experiência da escola de La Ruche (A Colméia), do anarquista francês Sebastien Faure. Fundarão em 1904 e 1915 duas universidades populares, publicarão e distribuirão livros didáticos destinados às crianças, ensinando o apoio mútuo e denunciando uma sociedade injusta, sempre dentro da orientação de que os trabalhadores e seus filhos não deveriam receber sua formação dentro de escolas ligadas ao Estado, à burguesia e a credos religiosos.

É interessante observar que, embora a questão da propriedade tenha sido comentada por revolucionários brasileiros pré-anarquistas, ela vai tomar uma nova dimensão na abordagem que dela vai fazer o movimento anarquista. O Protesto, segundo jornal anarquista publicado no Rio de Janeiro [27] (entre 1899-1900), contém, em todas as suas edições, como epígrafes, duas citações. Uma a da frase de Proudhon de que “Toda Propriedade é um Roubo”, outra, de mais um teórico do anarquismo, Kropotkin, que parece complementar a de Proudhon, a de que “a expropriação é uma necessidade”.

A forma como os anarquistas viam a expropriação da propriedade privada dos meios de produção pode ser compreendida por outra citação de Proudhon, também aparecida em jornal anarquista do Brasil. Em 1903 as idéias do sindicalismo revolucionário já haviam chegado ao movimento operário do país. É fundada uma Federação das Associações de Classe, central sindical já com influências anarquistas, início de um processo que levará à realização de três grandes congressos operários em 1906, 1913 e 1920, que consagrarão os princípios de um sindicalismo livre, pautado por objetivos econômico-sociais, não sujeito a tutelas de partidos políticos ou igrejas, combatendo pelo método da ação direta, isto é, sem intermediários na luta social. Neste mesmo ano de 1903, em que há uma greve dos estivadores e outra dos têxteis que paralisa 25 mil trabalhadores no Rio, então uma cidade de pouco mais de meio milhão de habitantes, surge um jornal anarquista com o sugestivo título de A Greve, que a 1º de julho de 1903 cita, de Proudhon: “que o povo, reconhecendo a miséria em que jaz, aprenda a odiar a covardia e a detestar os tiranos. Que a aristocracia (entendida aqui em seu sentido mais amplo, de classes dominantes), fundada em sua incompetência e obscena ociosidade, receba a flagelação de seu parasitismo, de sua insolência e de sua corrupção” [28].

Mas, como ensinava Proudhon, a questão não se esgota com a exploração do homem pelo homem. Vai além, com a dominação do homem pelo homem. No ano anterior um jornal anarquista de S. Paulo, O Amigo do Povo, (a 24 de maio de 1902), também cita Proudhon: “os povos aprenderam à sua custa que o submetimento do homem ao homem é uma idéia falsa, uma teoria errônea, perniciosa tanto ao senhor como ao escravo (…) Mas a experiência está a terminar” [29]. Lembremos que os anarquistas do Brasil, além de terem contribuído fundamentalmente para a criação e manutenção de um movimento sindical livre de tendência revolucionária, tentaram por pelo menos duas vezes um processo de ruptura social revolucionária. Uma com a tentativa insurrecional no Rio em 1918, em episódio até hoje praticamente ignorado pela historiografia, conhecido como o “soviete do Rio”. Outra tentativa seria planejada em São Paulo logo adiante, tendo sido abortada pela repressão [30].

No entanto, as tentativas de transformação social dos anarquistas do Brasil, como do resto do mundo, nunca se prenderam à questão da tomada do aparelho de Estado. Neste ponto eles também estariam de acordo com Proudhon. Basta vermos a citação de Proudhon reproduzida no jornal anarquista “A Terra Livre”, de 6 de novembro de 1910: “O governo do homem pelo homem é a servidão”. Eles concentrarão todos os seus esforços na prática da ação direta pelos movimentos sociais como uma espécie de “ginástica revolucionária”, até o momento em que fosse possível aos oprimidos implantarem a socialização dos meios de produção, em uma sociedade horizontal e descentralizada [31].

Os anarquistas do Brasil, durante a história de seu movimento no país, procuraram viabilizar uma nova sociedade libertária, seguindo a orientação de Proudhon, citada no jornal Guerra Social do Rio, em 23 de novembro de 1911:

“que uma sociedade antagônica, acabada de sair das cadeias da barbárie e das faixas da superstição, uma sociedade na qual são de guerra e desconfiança todos os sentimentos, tenha feito tais como os vemos o trabalho e o comércio, isto sem custo se concebe: mas que se tome este estado de espoliação recíproca como o tipo indestrutível das leis econômicas, eis o que a razão jamais poderá aceitar” [32].

* Milton Lopes é jornalista, pesquisador do anarquismo e coordenador do Núcleo de Pesquisa Marques da Costa, criado com o objetivo de defender e difundir a memória anarquista. O texto aqui reproduzido é relativo a palestra apresentada pelo autor no Colóquio 200 Anos de Proudhon, realizado a 26 e 27 de maio de 2009 no Rio de Janeiro, na UNIRIO e no IFCS da UFRJ.

Notas:

[1] Para este breve perfil biográfico de Proudhon, o autor consultou as seguintes obras, que também podem ser pesquisadas por aqueles que desejarem se aprofundar mais na vida e na obra do pensador anarquista francês: George Woodcok, O Anarquismo História das Idéias e dos Movimentos Libertários, Editora Meridiano, Lisboa, 1971; J.Hampden Jackson, Marx, Proudhon e o Socialismo Europeu, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1963;Proudhon, Textos Escolhidos, L&PM Editores, Porto Alegre, 1983 (seleção de Daniel Guérin).

[2] Citado por Édson Carneiro, em A Insurreição Praieira (1848-1849), Edições Conquista, Rio de Janeiro, 1960, pág. 19.

[3] O Progresso, Revista Social, Literária e Científica Reedição feita pelo Governo de Pernambuco, Imprensa Oficial, Recife,1950.

[4] Vamireh Chacon, História das Idéias Socialistas no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1965, págs. 108-109.

[5] Citações feitas por Edgar Rodrigues em Socialismo e Sindicalismo no Brasil, Laemmert, Rio de Janeiro, 1969, pág. 27 e 33.

[6] Vamireh Chacon, obra citada, págs. 118-119.

[7] Chacon, obra citada, pág. 63.

[8] Ver o livro de Gilberto Freire, Um Engenheiro Francês no Brasil, José Olímpio, Rio de Janeiro, 1940.

[9] Freire, obra citada, págs. 84 e 104.

[10] José Nilo Tavares, Marx, o Socialismo e o Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro ,1983, pág. 99 e seguintes.

[11] Qu’est-ce que la Proprieté? ou Recherches sur le Principe du Droit et du Gouvernernemt par P.J.Proudhon, Garnier Fréres, Paris, 1849.

[12] Astrojildo Pereira, Machado de Assis, Ensaios e Apontamentos Avulsos, Livraria São José, Rio de Janeiro, 1959, pág. 214. O que se lê a seguir sobre o conhecimento de Proudhon por Machado de Assis foi retirado das págs. 214-221 desta obra, trecho que contam os ensaios de Pereira Proudhon e Ainda Proudhon.

[13] Para uma descrição do episódio vivido por Euclides na Escola Militar ver Sílvio Rabelo, Euclides da Cunha, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1966, 2ª edição.

[14] Esta série de artigos de Euclides da Cunha está reproduzida em sua Obra Completa, Companhia José Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1966. Volume I, pág. 543 em diante.

[15] Ver Clóvis Moura, Introdução ao Pensamento de Euclides da Cunha, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964.

[16] Vamireh Chacon, obra citada, pág. 354 a 356.

[17] Citado em Edgar Rodrigues, Socialismo e Sindicalismo no Brasil, Lamemmert, Rio de Janeiro, 1969, pág. 78.

[18] Ver Jaime Franco, Martins Fontes, Cavaleiro do Amor, Cavaleiro da Arte, Cavaleiro do Ideal, Edição do Autor, Santos, 1942.

[19] Charles Rappoport, O Comunismo e o Estado, In Movimento Comunista, Ano I, nº 3, Rio de Janeiro, março 1922.

[20] Paulo Eltzebacher, As Doutrinas Anarquistas, Guimarães, Lisboa, 1908, tradução de Manuel Ribeiro; O Anarquismo, adaptação à língua portuguesa por Agostinho Fortes, Edição da Tipografia de Francisco Luís Gonçalves, Lisboa, 1909. A segunda edição é mais bem cuidada do que a primeira.

[21] José Martins, História das Riquezas do Clero Católico e Protestante em Todos os Países Desde os Primeiros Séculos da Era Cristã até os Nossos Dias, 2 Tomos, sem indicação de editora, local da edição e data (acredita-se que a obra tenha sido lançada no início da década de 1920).

[22] José Martins, obra citada, pág. 174 do Tomo I.

[23] Joaquim Pimenta, Retalhos do Passado (Episódios que Vivi e Fatos que Testemunhei), Departamento de Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1949, 2ª edição, págs. 80 a 84.

[24] O Regenerador Publicação do Clube Socialista Máximo Gorki, Ano I, nº 1 (e único), Fortaleza, 22 de fevereiro de 1908. Este jornal está reproduzido em Adelaide Gonçalves/Jorge E.Silva (Org.), A Imprensa Libertária do Ceará (1908-1922), Imaginário, São Paulo, 2000.

[25] Carlos Dias, Semeando para Colher, Biblioteca A Vida, Porto, 1912. Embora publicado em Portugal, trata-se de escrito de militante anarquista brasileiro e foi amplamente distribuído no Brasil.

[26] Carlos Dias, folheto citado, pág. 31.

[27] O Protesto Periódico Comunista Livre. Tirou 11 edições no Rio de Janeiro entre 16 de outubro de 1899 e 26 de julho de 1900.

[28] A Greve, Rio de Janeiro, Ano I, nº 5, 1º de julho de 1903.

[29] O Amigo do Povo, São Paulo, Ano I, nº 4, 24 de maio de 1902.

[30] Ver Carlos Augusto Addor, A Insurreição Anarquista no Rio de Janeiro, em duas edições: Dois Pontos, Rio de Janeiro, 1986 e Achiamé, Rio de Janeiro, 2002 e Everardo Dias, História das Lutas Sociais no Brasil, Editora Alfa Ômega, São Paulo, 1977, 2ª edição.

[31] A Terra Livre, São Paulo, nº 75, 6 de novembro de 1910.

[32] Citação de Proudhon em A Guerra Social, Rio de Janeiro, Ano I, nº 9, 23 de novembro de 1911.