Por Lucas Gebara Spinelli
Como estudante do mestrado do programa em ciência política do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] comecei a participar dos espaços de greve com algum atraso. Não por desinteresse ou peleguismo [pelego é o fura-greves], mas por me ver desconectado da vida acadêmica do campus, por já ter terminado minhas disciplinas, por estar trabalhando fora da universidade (pois não tenho bolsa de estudos) e por estar envolvido com outros espaços de militância, que resvalam no pé mais marginalizado do tripé da universidade pública: a extensão comunitária. Este, aliás, nem de perto abordado pelas últimas grandes mobilizações universitárias e, a meu ver, o único espaço capaz de oxigenar novamente as áreas do conhecimento humanista e crítico que dia-a-dia são extintas do campus. Um novo projeto de universidade, que aponte para um novo projeto de sociedade, passa necessariamente pela ruptura com o tradicionalismo da universidade pública: seja como organização, seja como visão de mundo. Para radicalizar e qualificar a nossa mobilização precisamos nos perguntar: Para o quê e para quem serve essa universidade?
Começo por discordar de uma idéia corrente de que as Humanas são a vanguarda da crítica e da transformação dessa universidade. Talvez sejam os institutos que melhor compram o discurso da inutilidade do conhecimento que produzem, e onde os alunos mais sofram em perceber que seu conhecimento não possui um bom valor de troca no mercado de trabalho; e talvez por isso se percebem condenados à revolta, ainda no espaço da universidade. Mas não considero as humanidades como áreas exclusivas do conhecimento crítico. Considero assim todas aquelas áreas marginais que sustentam dentro e fora da instituição universitária formas de pensamento e abordagens cada vez mais cerceadas pelo Estado e pelo Mercado. Aquilo que se define pela sua inutilidade “prática” e técnica: podemos colocar aí estudos de fontes de energia solar, combustíveis alternativos, produção agroecológica, técnicas voltadas a problematizar o produto e o modo de vida hegemônico; outros se esforçando para pensar formas de demonstração que quebrem o domínio da lógica racional-calculadora do homo economicus na produção do conhecimento.
Existem funcionários, professores e alunos espalhados pelos mais variados institutos que, nas suas pesquisas, horas-aula, orientações, atividades de extensão comunitária e administração da máquina, integram uma luta política por um conhecimento transformador. Grupos de pesquisa, linhas e escolas de pensamento que a partir de suas limitações se ocupam com temas clandestinos e marginais. E isso se dá na forma de uma luta por uma certa visão de ciência e pelos meios necessários para impor essa visão. Considero a universidade uma organização complexa, hegemonizada pelos interesses da grande burguesia e do alto escalão do Estado, mas que encerra em suas cercas projetos antagônicos, de universidade e de sociedade. E é para isso que devemos levar a nossa greve até às últimas conseqüências. Para que sobrevivamos dentro e fora da universidade.
Avalio que as áreas resistentes da universidade estão desaparecendo. Ou melhor, estão sendo extintas por definhamento e asfixia estrutural. No nosso Instituto a biblioteca Otavio Ianni, a maior biblioteca de Humanas da América Latina, foi alagada pelas fortes chuvas que atingem Campinas. Funcionários e algumas dezenas de estudantes, presentes em uma festa que acontecia, entraram no prédio e trabalharam noite adentro para salvar o acervo. Em conversa com funcionários lembramos que há alguns anos os funcionários do setor de manutenção do Instituto passavam dos 10, todos concursados. Hoje contamos com 1 heróico funcionário concursado. O resto das funções tem ficado dia-a-dia a cargo de empresas terceirizadas (às vezes propriedade de professores da Unicamp), contratadas por processos de licitação obscuros e super-explorando o dinheiro público e sua mão-de-obra, que por sua vez não tem apoio algum do sindicato dos funcionários da UNICAMP (STU), ao contrário do SINTUSP [Sindicato dos Trabalhadores da USP].
Podemos recolher milhares de histórias como a da biblioteca do IFCH nas áreas resistentes da universidade e lembrar que não apenas os prédios, mas o pessoal que administra os institutos (funcionários públicos ou CLT) está sendo sobrecarregado e impossibilitado de gerir os processos cotidianos necessários para o funcionamento de alguns ramos do conhecimento antagonista. Se não existem funcionários, algumas secretarias deixam de existir na prática. Se deixam de existir, a produção do conhecimento é diretamente afetada pela falta de pessoas que encaminhem notas, provas, avaliações, defesas de tese, pedido de bolsas e verbas para CAPES, CNPQ, FAPESP [as várias burocracias de financiamento da pesquisa], reitoria, etc.
Para piorar temos uma estrutura de pesquisa e ensino sustentada pela ótica aristocrática. No IFCH cursos de graduação e pós-graduação sem bolsas legitimam a pesquisa acadêmica como profissão de fé (vamos sobreviver do quê? De celulose?); cursos em período integral e assistência estudantil capenga [de má qualidade] impossibilitam na prática que membros da classe trabalhadora possam estudar na Unicamp. Onde estão os cursos noturnos na graduação e na pós-graduação? Faltam professores e funcionários? Por quê? Porque a natureza do nosso conhecimento é INÚTIL, pois não-mercantilizável. Inútil, pois não funcional à administração pública. A universidade direciona os recursos para as áreas mais importantes, eu diria “rentáveis”. Concentra, não-distribui. Esse é o projeto dominante de universidade.
Alunos de pós-graduação não têm bolsas e desistem dos cursos ou lutam pela sobrevivência conciliando trabalho e estudo. Professores acumulam funções docentes (orientação, produção e ensino) e administrativas, nos “espaços de representação da universidade”. Administram a miséria, mas acumulam funções de chefia. Sobrecarregam os funcionários. Travam guerras interdepartamentais pelos parcos recursos existentes: querem professores e bolsas. As querelas não funcionam. O IFCH contava em 1994 com 128 professores. Hoje conta com algo em torno de 85 e nosso currículo tem se adaptado a isso. Lutam para aumentar o critério quantitativo dos seus programas de graduação e pós-graduação junto às agências financiadoras (FAPESP, CAPES, CNPQ) e sem os quais as atividades de pesquisa param.
E estão parando, não importa mais o quão competentes sejamos na entrega dos nossos relatórios. Em 2007 lembro do comunicado da CAPES enviado à secretaria de pós-Graduação do IFCH, que estabelecia um critério de utilidade às pesquisas científicas: biocombustível, desenvolvimento sustentável, etc. Nada contra ambos, embora saibamos que estão colocados em consonância com o discurso da ética social empresarial. Para todos os efeitos, a CAPES assim se justificava por estar fechando as linhas de financiamento para as humanas: mais corte de bolsas. Também lembro do parecer da FAPESP ao meu projeto de pesquisa: “risco de apologia ao objeto de estudo e direcionamento ideológico da pesquisa”. Sou um inútil ou sou um apologista?
Retornemos à greve da Unicamp. A greve dos funcionários se iniciou com uma pauta clara baseada na campanha salarial própria do mês de maio. Diferentemente do SINTUSP, onde a data-base foi articulada às pautas políticas contra a demissão do funcionário Claudionor Brandão e as punições em andamento por processo interno na USP e contra a Universidade virtual do estado de São Paulo. Aqui no IFCH os estudantes entraram em greve no dia 2 de junho, sustentando a pauta do SINTUSP. E a assembléia dos docentes do IFCH decidiu por entrar em greve no dia 10 de junho, centrada na condenação da presença da Polícia Militar no campus. A condenação da presença da PM no campus da USP tende a centralizar o debate nessas semanas vindouras. E sua fácil retirada da USP por parte do governador Serra ou da reitora Suely é capaz de cindir as greves das três categorias.
Estaremos condenados a retornar à normalidade patética e agonizante das áreas crítico-humanistas da universidade pública mais elitista do Brasil? Sim. Tendemos a ser apagados do mapa porque não sabemos dialogar com a sociedade, não enxergamos o porquê existencial da nossa produção do conhecimento. Apenas colocamos a engrenagem para funcionar e ignoramos o efeito dela, o alcance crítico e potencialmente transformador que as áreas, setores e conhecimentos críticos humanistas das Humanas, Exatas, Tecnológicas, Biológicas detêm quando articulados com o poder popular.
Não podemos mais sustentar nossa pauta grevista no vazio dessa autonomia universitária. Porque essa autonomia não nos possibilita liberdade de crítica e pensamento. Não nos possibilita democracia e liberdade administrativa. Não nos possibilita autonomia em relação à gestão monopolista dos meios de produção e reprodução (material e imaterial) centralizadas e insuladas na alta burocracia estatal e empresarial. E acima de tudo, engessa [congela] possíveis articulações transformadoras entre universidade e sociedade. Por hora sabemos apenas o que não queremos. Precisamos entrar em greve e levá-la até o fim para que, quem sabe, algum dia respondamos afirmativamente à pergunta: para quê e para quem serve essa universidade?
Desenhos: M. C. Escher.
Fotografia do thumbnail: Cindi Trainor.
Tem que fazer greve, mas não para esvaziar a universidade, porque assim ela já se encontra. Tem que fazer greve para dar vida à universidade. Fazer greve para ter tempo livre para sair da dinâmica do capital e pensar no que fazer de agora pra frente. Ocupar a universidade, não abandoná-la. Fazer dela um instrumento de luta dos trabalhadores. Ou seja: inverter toda a sua lógica. Usar da universidade para produzir conhecimento, não só teorias críticas — mais do que necessárias –, mas tecnologias, ferramentas práticas, que possam melhorar a vida dos trabalhadores, mas também potencializar suas lutas.
Fazer isso é construir a UNIVERSIDADE POPULAR e não é nenhuma novidade pelas bandas de cá, América Latina. Desde Mariátegui, no Peru, se faz. Está presente nas idéias de Paulo Freire, no Brasil. Acontece dentro dos movimentos sociais, seja de forma difusa (nos cursos de formação) ou concentrada (Escola Nacional Florestan Fernandes — MST).
A Universidade Popular é a versão do Poder Popular — em contraposição ao poder populista e o poder elitista — dentro das universidades. É o abandono do “Pública, gratuita e de qualidade” para “a serviço dos trabalhadores”.
Esse greve deveria ter como palavra de ordem: Criar, criar, universidade popular! Trazendo para dentro da universidade todas as frações da classe trabalhadora que querem se apropriar desse espaço – e da produção do conhecimento – mas são bloqueadas pelos próprios trabalhadores que estão dentro dele. E aí sim eu queria ver como ficaria a cara dos donos da USP.
Quem tiver tempo dar uma lidinha nesse texto aqui, de minha autoria: http://universidadepopular.blogspot.com/2009/04/ensaio-para-uma-universidade-popular.html
Daniel Caribé, você matou a pau! Esse é o cerne da questão, aquilo que tá nos debates que aqui tenho visto: ter um projeto! Um projeto para educação, para universidade. Um projeto para movimento, um projeto para sociedade! Um projeto de autogestão e desmercantilização, para sair da defensiva e passar ao contra-ataque!
Os movimentos atuais não tem tido projeto nenhum! Resultado, só levam pau.
Olá pessoas. Devemos tatear esse caminho rumo À tal unversidade popular. MAs toda greve que vem e vai embora deixa o vazio do nosso fracasso zunindo na cabeça… Concordo TANTO COM O cARIBÉ QUANTO COM O rAFAEL. Aliás, baseio ou pelo, menos tento, basear minhas práticas naquela linha do texto Universidade Popular, do Caribé…
Sem grandes pretensões convido aos que se interessarem pelo a tema a contribuir no debate por um novo projeto de universidade, que passa bem longe do tratado de Bolonha (reforma universitária européia que inspirou o UNIVERSIDADE NOVA da UFBA), da nossa falsa e limitada autonomia universitária (UNESP, USP e UNICAMP), pacote pedagógico precarizante da UNIVESP voltado a atender os “desqualificados” professores da rede…
Por um lado se busca massificar o ensino superior da pior forma possível: comprimindo currículos e implementando uma competição salutar na grduação (UFBA/UNIV. NOva, BOLONHA) e sub-contratando tutores (que compõe o exército professoral de reserva formado por…. Nós!!!) para executar pacotes-pedagógicos (UNIVESP)
Por outro as universidades se agarram no isolamento da bolha universitária (USP, UNICAMP) para assegurar sua “excelência” (vazia) no ensino presencial… Cadê a excelência? Onde estão as condições mínimas de vida universitária (bolsas, moradia, espçaos de convívio, assistência, ensino noturno)?????
qualidade de produção acadêmica (professores, tempo, disciplinas, autonomia curricular, autonomia de gestão dos recursos) e de ensino-aprendizagem não-ortodoxo (cadê a extensão, os tópicos, os seres humanos que são nossos objetos de estudo)??????
Aliás cadê a população, que nem arranha as portas do vestibular??? Quem mantém essa merda? De onde vem o dinheiro que sustenta essa “usina” do conhecimento? De que forma devolvemos e contribuímos para a libertação dessa massa que bancou e banca isso aqui????
Voces podem esclarecer melhor o que é a Universidade Popular? Porque a idéia pareceu boa!
Olá Renata, eu não sei como se faz esse troço aí, que eu mesmo proponho (e antes de mim muitos outros) e, para piorar, se eu te disser como se faz uma Universidade Popular ela deixaria de ser. Mas, basicamente, para ser popular, acredito, a Universidade tem que sair da suposta neutralidade e assumir suas posições de classe, como qualquer instituição na sociedade atual. Se a função da universidade é produzir conhecimentos e tecnologias, então que produza para a classe trabalhadora.
Porém, uma mudança no objeto não acontece sem uma mudança nas práticas. Para produzir conhecimento para os trabalhadores, ela tem que, primeiro, ser gerida e preenchida pelos trabalhadores. Uma universidade elitista, como foi pensada a maioria das estatais nesse país (Brasil), são preenchidas e geridas pela classes dominantes. Uma universidade populista, a exemplo do REUNI, é uma universidade preenchida pelos trabalhadores, mas nunca gerida por eles. Como as universidades estatais brasileiras vem se proletarizando, nada mais justo que se readéqüem a essa nova realidade. Fazer uma universidade gerida pelos trabalhadores, ou seja, um centro de produção de conhecimentos e tecnologias, é assumir que as relações de produção (a luta de classe) determina as forças produtivas (no nossa caso, a “ciência”). Essa universidade proposta pode acontecer enquanto poder dual por dentro das atuais universidades. A exemplo de Lucas (autor do texto), acredito que os cursos de extensão e outros núcleos podem ser esse poder que se contraponha a universidade das classes dominantes por dentro das próprias universidades. Mas a Universidade Popular pode ser feita também em locais onde nunca existiu nenhum tipo de universidade. Os locais próprios para isso são os movimentos sociais, onde os trabalhadores já compreendem a importância da [auto]organização e da necessidade de produzir conhecimentos a seu dispor.
Na ocupação da reitoria da UFBA, final de 2007, quase ao mesmo tempo da ocupação da reitoria da USP, foram realizados inúmeros debates com representantes dos movimentos sociais daqui e a todos pedíamos que jogassem aos estudantes as demandas dos seus movimentos, à medida que os estudantes jogavam para os movimentos sociais as suas necessidades. Por exemplo: foi pedido a um movimento social, que não vou citar aqui, que ensinasse aos estudantes métodos de resistir a força da polícia. Em troca, muitos estudantes passaram a realizar muitas atividades junto a movimentos sociais, basicamente se procurando em produzir um novo conhecimento, pois o que era apreendido em sala de aulas em nada servia para as lutas.
Mas a Universidade Popular também é uma forma de Poder Popular, pois pode trabalhar na unificação de diversas frações da classe trabalhadora. No meu entender, o Poder Popular se configura pela horizontalidade, pela inversão da lógica disciplinar a autoritária do capital. Por isso é um projeto autonomista/libertário, jamais aceito pelos grupos e partidos ortodoxos. Por isso também é um projeto de unificação negociada, construído de forma dialógica, jamais imposto.
Ora, na lógica do capital há hierarquias dentro da própria classe trabalhadora, onde algumas frações têm mais poder do que outras. A fração que tem mais poder não é aquela numericamente maior, mas aquela que produz mais valor para o próprio capital. Com a proletarização de algumas profissões, a partir da reconfiguração do capitalismo (década de 70 pra frente principalmente), o trabalhador qualificado deixa de ser o operário da industria moderna e passa a ser aquele que realiza trabalhos mais complexos, devido ao acúmulo de conhecimentos e funções que possui. Esse trabalhador, em sua grande maioria, tem sua origem nos meios universitários (ou seja, somos nós).
Por sua longa trajetória junto às classes dominantes (posso te mandar uns textos de Makhaiski, que viveu a revolução Russa e faz críticas nesse sentido desde lá) essa fração citada acaba por se identificar mais com as classes dominantes do que com os trabalhadores. Num processo de transformação radical da sociedade, ou nas simples lutas do cotidiano, essa fração pode submeter (e submete!) o resto da classe trabalhadora a seus interesses, usa de massa de manobra contra as classes dominantes para ascender novamente a esse status, e é esse o perigo de nos aproximarmos dos movimentos sociais: nos transformarmos em gestores das suas lutas.
O desafio da Universidade Popular é, portanto, realizar essa unificação de frações da classe trabalhadora, que têm poder diferenciado na sociedade atual, e construir espaços onde a lógica do capital não impere e sim já seja a lógica da sociedade que queremos.
Eu não sei de que forma prática a Universidade Popular pode acontecer agora aí na USP, num momento de mobilização como o atual. Mas, desconfio, que promover debates sobre a criminalização dos movimentos sociais pode levar a uma identificação ampliada dos estudantes que participam dessas lutas com os trabalhadores que são reprimidos ao se organizarem em outros espaços.
É isso, espero ter ajudado um pouco.
Abraços!
Para Renata sugiro um texto do Manuel Nacimento “Proletarização estudantil e universidade: que têm os movimentos sociais a ver com isso?”
(http://universidadepopular.blogspot.com/search?updated-max=2008-06-24T20%3A17%3A00-07%3A00&max-results=5)
A contrução de uma universidade popular só se dará nos marcos de uma transformação radical das relações de pŕodução. Hoje nos resta cada vez mais lutar com os trabalhadores e com os movimentos populares organizados e não para os trabalhadores e para os movimentos sociais. A relação tem de ser de companheirismo, não assistencialista, vanguardista, ou de mera extensão formal das universidades em prol de uma falsa democracia.
Muito bom o texto do Lucas.
Abraços!