Por Uiran Gebara da Silva

 

Rios de tinta e florestas inteiras na forma de celulose já foram gastos para explicar o autoritarismo da sociedade brasileira. E os eventos recentes na Universidade de São Paulo e a reação de alguns setores da sociedade e, principalmente, da mídia paulista, só podem ser entendidos sob esta perspectiva.

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CRUSP durante a Ditadura

Há um paradoxo nos eventos recentes na Universidade de São Paulo. Dia 09 de junho de 2009, uma terça-feira, a Polícia Militar designada pela reitoria para operar uma suposta reintegração de posse reprimiu estudantes, funcionários e professores da instituição. O paradoxo está no fato de que, durante todo o período da ditadura militar, uma repressão policial como esta ocorreu uma única vez: na expulsão da FFCL [Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras] do prédio da Rua Maria Antônia. Como é que num período claramente afirmado como democrático pela mídia oligárquica (pois não há grande mídia, há uma oligarquia midiática com monopólio da televisão e dos jornais impressos) um choque destas proporções acontece?

Repressão policial contra estudantes ocorre rotineiramente nas ditas democracias mais maduras (embora democracias não sejam como bananas para amadurecerem, mas sim processos sociais e políticos dependentes dos projetos intencionais dos atores envolvidos e das contradições resultantes, essa “metáfora” é recorrente nos discursos de intelectuais que escrevem para a mídia oligárquica). Assim, a USP pode ser entendida como entrando no livre jogo democrático da pós-modernidade onde a violência simbólica da barricada se iguala à violência física do cassetete. É assim nos Estados Unidos (manifestações contra o Patriot Act), na França (na greve recente da Sorbonne) e até na Coréia do Sul (onde a polícia coreana recorrentemente apanha de estudantes bem preparados).

CRUSP durante a Ditadura

A Universidade de São Paulo só pode se manter como espaço de não intervenção policial por causa da construção de uma tradição de resistência ao longo da ditadura militar. Mesmo com todas as suas contradições internas, a presença da polícia no campus da cidade universitária durante muito tempo foi vista como nociva ao desenvolvimento da intelectualidade paulista. A entrada ostensiva da Polícia Militar, as infiltrações de oficiais disfarçados de estudantes, as delações realizadas por estudantes, funcionários e principalmente professores que quiseram subir fácil na carreira foram durante muito tempo considerados atos vergonhosos.

Porém, da mesma forma que na sociedade brasileira da Nova República a necessária expiação social da cultura autoritária não se realizou por causa da Lei da Anistia, a Universidade de São Paulo não lidou com a cultura autoritária que floresceu na mesma época. Como é possível que a sociedade brasileira se tornasse uma comunidade política democrática, pressupondo igualdade política entre os indivíduos, se grande parte da elite política e econômica foi favorecida pelo regime militar e nunca teve de assumir isso politicamente? A Lei da Anistia anestesia a memória social do período autoritário, de forma que seja possível que o principal partido herdeiro dos políticos que o apoiaram (antigo ARENA e PFL) se auto-intitule DEMOCRATAS.

O corrimão do sucesso
O corrimão do sucesso

O mesmo ocorre na Universidade de São Paulo. Boa parte dos professores que tinham o cargo de titular quando a USP adentrou o período democrático conseguiram tal posto delatando todos os possíveis concorrentes para o Deops [polícia política]. O mesmo vale para alguns de seus funcionários não docentes em postos de comando. O expurgo e a caça aos subversivos dentro da Universidade de São Paulo construiu uma geração de gestores autoritários que impediram uma mudança real nos seus estatutos, mesmo em meio à cultura estudantil anti-autoritária dos anos oitenta. E foi a cultura autoritária e do medo da ditadura que criou uma burocracia desapegada do sentido político da Universidade.

As gerações que cresceram nos anos noventa e hoje ocupam a Universidade são compostas por pessoas que não têm mais memória do regime militar. São filhos de pessoas que nasceram no final do regime militar. São pessoas educadas pelo espetáculo da violência urbana – que é espetáculo porque a mídia oligárquica o apresenta assim, como show, como alavancagem de audiência escatológica, ao invés de tratar o problema da violência em suas causas sociais: a desigualdade social e os banqueiros e juízes que enriquecem nas sombras com o narcotráfico. São pessoas educadas para ver a política como a defesa de interesses privados e o Estado como aparente árbitro entre indivíduos iguais que na realidade são desiguais. Esse é o legado cultural do neoliberalismo na mídia oligárquica nos anos noventa: desaparecer com a dimensão coletiva das ações políticas. O coletivo é baderna [arruaça], o coletivo é desordeiro, o coletivo (do sindicato, dos movimentos sociais, dos trabalhadores, das mulheres, dos negros, dos índios) é mostrado contrariamente como corporativo, como mesquinho. Essas pessoas foram educadas a ver as ações coletivas como defesas de interesses privados. Não só a mídia oligárquica, mas o próprio discurso político foi se construindo assim. Da mesma forma, essas gerações vêem também os representantes políticos no Estado, em seus vários níveis, como agentes pecuniários e privatizantes. O Estado deixou de ser aquele do regime militar, gerente autoritário de barganhas obscuras com pitadas de política social (para usar a expressão de Inocêncio da Oliveira), para ser o neoliberal: gerente de diferentes barganhas entre seus representantes políticos, difíceis de esconder sem uma ditadura.

Essas pessoas, quando dentro da Universidade, a entendem como etapa transitória e efêmera de sua formação pessoal e individual. A essas pessoas não lhes alcança a ameaça do autoritarismo político de forma que achem bizantina uma discussão sobre a brandura de diferentes regimes militares. Sua compreensão e, principalmente, sua vivência da política é a da política como exercício do indivíduo, e do coletivo como espaço do corporativismo.

Acrescente-se a isso a concepção quantitativista e produtivista de avaliação acadêmica e surgem intelectuais e estudantes incapazes de lidar com a dimensão política da Universidade e que, quando em cargos políticos e de gestão, atuam em defesa de seus interesses privados.

E também a terceirização para alguns serviços mais simples, impedindo uma relação orgânica dos funcionários não docentes com o seu espaço de trabalho e, ao mesmo passo, o uso cada vez mais recorrente de estudantes como mão-de-obra sub-remunerada aprofundam a distância entre as funções desempenhadas por estes trabalhadores e o conhecimento produzido na universidade, resultando, por exemplo, numa reestruturação de carreiras para estes funcionários que é míope às especificidades e às exigências técnicas de cada função.

A transformação das ações coletivas em privadas serve, ao final, à sobreposição dos direitos da coletividade (que podem abranger os interesses individuais) pelos direitos de alguns indivíduos (que só incluem os anseios de alguns particularíssimos indivíduos). Sobreposição de condições de trabalho para funcionários docentes e não docentes, assistência estudantil, distribuição transparente de verbas para pesquisa e extensão para a sociedade, pelo direito individual dos conselheiros, professores titulares, herdeiros do regime estatutário e das delações da Universidade dos anos militares, de deliberarem sobre que parte do orçamento da Universidade vai para quem dentre eles, para dividirem em seus projetos pessoais dentro da Universidade. Sobreposição do direito individual de manter seu cotidiano de aulas e pesquisa, ao direito coletivo da greve, da suspensão temporária das relações do cotidiano universitário como forma de criticar, como forma de explicitação da crise da Universidade.

«Fica PM!»
«Fica PM!»

É também pela sobreposição dos direitos coletivos pelos direitos individuais que se fundamenta o argumento de igualação da violência dos piquetes com a violência do cassetete. O piquete estudantil e de funcionários tem de ser comparado às portas fechadas do Conselho Universitário, ao uso do IPEN para a realização de uma reunião sem Representantes Discentes, não à ação policial. É neste contexto que o uso da força policial contra os estudantes é aceito. A tradição de resistência pôde ser corroída.

É neste contexto que uma gestão universitária que vê a coisa pública como coisa sua, uma reitoria sem apoio político e sem projeto para a universidade como coisa coletiva recorre à violência física dos policiais. Pressionada por um conselho universitário cujo projeto é a partilha da universidade entre os diferentes domínios dos conselheiros, pressionada por um governador do partido liberal paulista (PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira]) querendo mostrar seu pulso firme para a elite e para a classe média paulista. Uma elite e uma classe média educadas por duas décadas pela mídia oligárquica para esquecer o que é o regime de exceção explícito nas ações violentas do Estado e na suspensão de direitos políticos, ansiosos por um regime de exceção implícito no cotidiano da sociedade. Aquele paradoxo é, pois, resolvido por um regime de exceção internalizado, disciplinarizado e condizente com a sobreposição do direito individual aos direitos coletivos e na aproximação semântica da democracia com os regimes explicitamente de exceção, quando democracia e branda ditadura são a mesma coisa.

1 COMENTÁRIO

  1. Achei muito interessante o texto. De certo, a figura dos macacos me lembra o Quintana, num poema curto, mas genial:

    “O que me impressiona, à vista de um macaco, não é que ele tenha sido nosso passado: é este pressentimento de que ele venha a ser nosso futuro”.
    Mário Quintana

    O grande problema que vejo na posição desses macacos é o da maioria das pessoas que vivem hoje a ditadura da imagem, típica do pós-modernismo, que prega o fim da história e a celebração da imagem efêmera, fragmentada. O que estamos passando na USP, tanto nós (os subversivos da FFLCH, FE, ECA e alguns outros), quanto os muitos indiferentes (que também se encontram na FFLCH, FE, ECA, mas estão em peso na POLI, FEA e MED) é apenas a concretização dessa ditadura, pois todos os dias essa porra de Universidade de São Paulo nos reproduz os malditos discursos competentes, que temos de incorporar para nos formar. A questão é que achamos que estamos nessa merda apenas para termos uma medíocre nota no fim de cada semestre e mantermos uma média ponderada agradável aos nossos desejos insanos por conhecimento, sem ao menos pensarmos que esse conhecimento tem em vista instituir uma certa ideologia, a do discurso competente, como forma burocratizadora de formalizar e ajustar a sociedade, tendo no discurso científico o seu viés ilusório de liberdade de pensamento e de valorização do indivíduo, em detrimento do ser político-social, que se perde na barbárie civilizadora que está instaurada em nosso mundo.

    O discurso dos macacos é extremamente formal e superficial, pois a forma sem conteúdo, ou o conteúdo pela forma são outros instrumentos de dominação, esvaziamento e de desumanização do projeto moderno (que agora esta em sua fase pós-moderna, embora alguns questionem se realmente já fomos MODERNOS). Eles falam em representação por números, mas não por idéias. O que queremos então? Uma Universidade com urnas, que não falam nem gesticulam? Abaixo assinados, para nossa “assinatura” nos representar diante de uma crise tão séria pela qual vem passando a universidade (que é apenas um reflexo da crise que a sociedade está passando). As urnas e assinaturas são uma forma bem mais simples de se dominar as pessoas mesmo, pois elas são quietas e escondem a INDIFERENÇA de pessoas que pensam ser democráticas, quando essa democracia é um mito, que esconde o totalitarismo que a elite brasileira incorporou tão bem a partir da ideologia do direito político individual.

    Esse texto exemplifica muito bem essa “democracia do indivíduo”, tão paradoxal, já que quebra com a origem semântica da própria palavra democracia. A indiferença às reivindicações da coletividade é uma violência fascista, que é encoberta por essa falsa democracia que nos herdou. A despolitização é desumanização, e o pior analfabeto é com certeza, como já afirmava Brecht, o analfabeto político.

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